DESVENTURAS DE MENTIROSOS – PARTE 2: UM DESENLACE PÓS DRAMÁTICO

DESVENTURAS DE MENTIROSOS – PARTE 2: UM DESENLACE PÓS DRAMÁTICO

PERSONAGENS
LAILA (princesinha nariguda)
EDUARDO (beleza exótica; macho alfa)
JOICE (mãe cansada)
BRENO (criança atentada) - BRENO (jovem ator)
GUSTAVO (vizinho sexy)
CELSO (policial cristão)
CAMILA (coadjuvante biscate)
ROBERTSON (negro)
UM DUENDE
ATRIZ (mãe)
VOZ (Afrodite, secretária)

PRÓLOGO

TODOS
(cantam)
Você é um puta de um mentiroso! 
Sabe o que significa um puta de um mentiroso? 
Quando a pessoa é tão mentirosa que a gente tem que 
(Tem que ter!)
O som e a potência da palavra “puta”
Ou qualquer outro palavrão!
(Pra descrever)

Uma puta de uma mentira! 
Um puta mentiroso! 
Uma porra de um caralho de confiança nas criança
nas minhas, nas suas, nas nossas 
Lembranças e lambanças
Que no fim das contas 
chega a se tornar verdade! 
Cê acredita? 
São tantas mentiras, 
que no fim, cê balança e acredita
(Acredita, acredite)
Todo mundo pensa que é verdade
(Afrodite, Afrodite!)

A verdade não é nada mais que a própria filha da puta. 
A verdade não é nada mais que a própria filha da puta. 
A verdade não é nada mais que a própria filha da puta. 

E vai descendo
E desce mais
Mexe esse bumbum
E ninguém, nem eu, nem você, nem ninguém 
Desce, desce, desce
Até o chão
Vai!
Desce
Pro buraco do poço
Vai! 
Mexe esse bumbum

Você é um puta de um mentiroso! 
Sabe o que significa um puta de um mentiroso? 
Quando a pessoa é tão mentirosa que a gente tem que 
(Tem que ter!)
O som e a potência da palavra “puta”
Ou qualquer outro palavrão!
(Pra descrever)

(os personagens desaparecem, ficam apenas Joice e Eduardo num foco)


CENA 1: CONTINUAÇÃO PÓS DRAMÁTICA

(quando as luzes acendem, Joice e Eduardo estão na mesma posição do final da primeira parte, "O Homem Verde, o Dramalhão e a Injustiça; o Duende entra)

DUENDE
Olha, vamo parar com essa porcaria aqui. Tá todo mundo cansado. Vocês querem ver o homem verde? Aqui estou eu. Pronto, sem neura. Eu não sou maléfico e nem sou uma assombração. Minha função aqui é a de palpitar e de ser o alter ego do inventor. Faço também boa parte da complicação da história, mas isso sempre existe a necessidade de acontecer, então... Bem, eis me aqui. Olá! Ficaram chocados? Relaxem que eu estou aqui só pra encher linguiça.

(eles observam completamente chocados; com a boca arreganhada e os olhos esbugalhados de terror)

DUENDE
E aí? Ninguém vai me oferecer um café?

JOICE e EDUARDO
(gritam) AAAAAAAAAAAAAAH!

DUENDE
Merda de realismo. Se bem que faz mais sentido um medo aterrorizador assim desse jeito do que de repente eles já quererem trocar uma ideia com um ser que supostamente não deveria existir. (para eles) Deem tempo ao tempo. Vocês se acostumarão com a minha presença.

EDUARDO
Que porra você é?

DUENDE
Lembre-se que da porra todos viemos. No meu mundo também é assim. Papai comeu mamãe.

JOICE
Você é um duende! Você é a porra de um duende cabeludo e orelhudo!

DUENDE
Aposto que você acha que eu nasço em árvores, né? Típico. Isso é preconceito!

JOICE
Ah, meu deu do céu! Santa Maria Mãe do Senhor.

DUENDE
(se empolga) Em dia de vigília ela chega a se tornar real, sabia? A Santa Maria. É a fé das pessoas, sabe. Quanto mais cabeças eletrificadas, mais real a mentira vira. Não é legal?

(silêncio)

DUENDE
Eu devo ser um chato de galocha.

EDUARDO
O que você quer?

DUENDE
Cérebros.

(silêncio)

DUENDE
Brincadeira. Não quero nada. E vocês?

(Laila entra saltitante)

LAILA
Eu quero sinceridade! Seguir o combinado. Podemos adquirir isso nesse mundo filho da puta pós moderno?

JOICE
(baixo) É ela?

EDUARDO
É.

JOICE
O nariz...

(silêncio)

EDUARDO
Cale essa boca.

JOICE
Ela é do tipo que fala "pós moderno" no sentido pejorativo.

LAILA
Eduardo, você tem que me prometer que nunca mais se encontrará com essa vagabunda.

JOICE
Ô, sua mocoronga! Nós temos um filho, tá bom? Nosso vínculo será eterno.

LAILA
Eu estou grávida.

(suspense novelístico)

EDUARDO
Oh!

(Camila entra correndo)

CAMILA
Eu também estou grávida!

(o mesmo suspense)

EDUARDO
Santo deus!

JOICE
E quem é essa, agora? Nossa senhora?

LAILA
Essa é minha amiga Camila. Ela é recém-convertida. Segunda amante dele.

CAMILA
Eu costumava ser chamada de Camila Chuteira. Eu dei pra alguns ali do clube. Ninguém tem nada com isso!

JOICE
Eduardo...

CAMILA
O Eduardo era meu caso sofisticado. (pausa) Como eu só entrei em cena agora, eu ouvi tudo o que aquele duende contou ontem na primeira parte. Eu tava junto com ela (Laila) ali na coxia, ajudando de contra regra, e me odiei sabendo que eu seria a amante biscatinha da história. Eu tive que fazer alguma coisa. Eu ia só ajudar as meninas na maquiagem, mas aí alguma coisa me chamou pra entrar. E quando eu entrei, o homem verde me abriu os olhos para a verdade. O homem verde nada mais é que satanás querendo nos desviar do caminho, gente. Olha que coincidência incrível: o uniforme do time de futebol lá do clube que eu frequentava é de que cor? Adivinhem. Verde, pasmem.

(silêncio em busca de coerência)

CAMILA
Tem outra explicação melhor? Todo essa complicação, todo esses problemas que estão sendo apresentados têm a ver com o meu descobrimento pessoal com o senhor deus todo poderoso. Eu decidi: eu não serei mais nenhuma vadia e nem garota do backstage. Nunca mais! Agora eu vou ter um filho e eu quero ser uma mulher das direitas. Viver pelo meu filho e pelo meu marido. Eduardo, vamos.

(ele vai)

LAILA
Calminha aí, colega! Todas temos agora o vínculo eterno.

JOICE
Eu tenho prioridade porque meu vínculo já fez treze anos! E é um capeta!

LAILA
Tem prioridade porra nenhuma! Ele me tirou a virgindade.

CAMILA
E eu sou menor de idade!

(silêncio; a cena congela)

DUENDE
Um modelo de complicações nos é apresentado com a ficção. Sério. Como vivem os burgueses, como vivem os miseráveis, como deve viver o branco, o negro, o japonês. Nos apresentam até como se deve sofrer se você é burguês ou se você é pobre. Porque pobre e burguês choram diferente. E aí a novela de ficção passa a se tornar real, pois no fim acreditamos que a verdade de uma rotina é aquela. "Essa é a verdade e como as pessoas vivem", pensamos. A diferença é que na ficção, a música, a iluminação fazem o trabalho mais difícil. Deixa poético e sentimental. Na vida real, um caso idiota como esse apresentado, tem mais absurdos, piadas negras e mentiras que a gente nunca imagina, e não terá um final enquanto a morte não chegar. E acontece o tempo todo. Das coisas mais doidas que se possa imaginar. Será sempre, repito, será para sempre um belo de um eterno ponto e vírgula. 

(black-out)

INTERLÚDIO

(Todos os personagens aparecem em focos separados; o menino Breno é substituído em cena por um ator um pouco mais velho; antes de sair, Celso faz o ator menino assinar alguns papéis do sindicato dos atores, dando visto em diversas páginas; uma ATRIZ (mãe) entra para assinar como responsável pelo menino; os dois se abraçam e saem; os personagens e o novo Breno se olham muito desconfiados um do outro; todos se movimentam em cena, trocando de lugar, se distanciando e se aproximando dos outros personagens e demonstrando com o movimento da troca os segredos de suas relações pessoais; o Duende tira o mesmo espectador (se o espectador retornar a ver a continuação) da plateia e faz ele se relacionar com alguns personagens; forma-se um jogo dançado; por fim, todos gritam:)

TODOS
Seu puta mentiroso! Você é um puta de um mentiroso! Sabe o que significa um puta de um mentiroso?

(um foco)

CELSO
Eu tô de bom humor, rapaz. Eu sou cristão. Penso no bem do próximo. Vamos esquecer que tudo isso aconteceu. Fechou? Vai ser a minha caridade do ano.

ROBERTSON
Puxa, senhor. Deus te abençoe.

CELSO
Amém. (pausa) Olha, uma mão lava a outra, certo?

ROBERTSON
Com certeza, cara.

CELSO
Eu curto uma cocaína de vez em quando. Sabe onde eu consigo sem dar bandeira?

(outro foco)

LAILA
(desesperadíssima) Você não pode fazer isso comigo! Você não pode! Não pode, não pode!

EDUARDO
Laila, tente entender...

LAILA
Eu não entendo! Não pode! Não pode! E o seu filho, Eduardo? Você vai me abandonar agora, Eduardo? Ele pode virar um gay se não tiver a figura masculina convivendo diariamente.

EDUARDO
Não use o Dudu.

LAILA
Uso! Uso! Uso, uso! Eu uso sim! E eu vou começar a usar drogas, você vai ver! Vou cheirar, vou até injetar! Você quer seu filho sendo criado por uma mãe nóia, Eduardo? Quer? E não me venha dizer que eu tô fazendo chantagem emocional porque você não sabe como é que tá o meu emocional por dentro! (chora)

EDUARDO
(desiste) Nosso vínculo é eterno, Laila.

LAILA
(instantaneamente apaixonada) Você jura? Jura? Fala que jura.

EDUARDO
Eu juro.

LAILA
Ai, como eu amo você, seu corno filho da puta!

(outro foco)

DUENDE
Experimenta. (dá um baseado para Breno)

BRENO
Eu nunca fumei.

DUENDE
Por isso eu disse “experimenta”.

(Breno fuma)

BRENO
Nossa.

(outro foco: Gustavo come Joice realisticamente por alguns instantes; outro foco: Celso come Camila; outro foco: Gustavo come Camila; outro foco: Eduardo come Camila; outro foco: Eduardo come Joice; outro foco: Robertson come Joice; outro foco: Breno sozinho)

BRENO
Nossa.

(outro foco: Eduardo come Laila; outro foco: Robertson come Camila; outro foco: Joice come Camila; outro foco: Robertson e Celso se trombam e se assustam; outro foco: Eduardo come Gustavo; outro foco: o Duende come Camila)

(o Duende goza)

CAMILA
Viu como eu tenho mais importância do que pareço?

DUENDE
Realmente. Os laços de sangue que vão à merda. A novela de dentro da memória é que é, e deve, e pode ser completamente surreal todo o tempo. E na maioria das vezes sanguinária e injusta. E mentirosa, claro. Sempre. Não teria tanta graça se tivesse uma porra de um desenlace feliz e comum.

(black-out)


Cena 2: DESTINADO À MENTIRA

(Breno está sentado com um figurino bem elaborado e grande; ele se maquia em frente a um espelho; Joice entra)

JOICE
Que lindo, meu filho.

BRENO
Ai, mãe. Vai pra lá. Não posso conversar agora.

JOICE
Tá bom. Tá bom. Quis só vir desejar boa sorte. Como que se diz mesmo? Merda. (ri)

BRENO
Merda, mãe.

JOICE
Ai, ai.

(silêncio)

BRENO
Vai lá, mãe.

JOICE
Seu pai veio.

BRENO
(para tudo) Oi? O que?

JOICE
Ele tá na terceira fileira.

BRENO
Mentira.

JOICE
Juro.

BRENO
Mãe! Na estreia?!

JOICE
Ai, o que tem?

BRENO
Mãe, pelo amor de deus!

JOICE
Ele vai te amar, filho! Ele está muito ansioso pra te ver, meu bem.

BRENO
Mas assim...? Mãe, eu dou um beijo na boca de um menino em cena.

(silêncio)

JOICE
Ué. Seu pai é cabeça aberta, filho.

BRENO
Ai, que puta que o pariu, viu. Você devia ter me avisado antes. Não posso me estressar agora. Por que ele teve que aparecer justo hoje? Hoje? Você tem noção da minha cabeça, mãe? Você tem noção? Não devia ter falado agora, caramba. Devia ter falado no final da peça, mãe, poxa!

JOICE
Isso, não se estresse. Vai dar tudo certo. (pausa) Merda.

BRENO
Merda, mãe.

(Joice sai contente)

BRENO
Caralho.

(ele volta a se maquiar um pouco nervoso; Joice volta puxando Celso)

JOICE
Olha, filho. Esse é seu pai.

(um silêncio horrivelmente constrangedor)

BRENO
Mãe...

CELSO
Oi, filho.

BRENO
(contendo-se) Mãe, sai daqui.

JOICE
Ele queria te desejar merda, também, Breno.

CELSO
Merda, filho. Boa interpretação.

(silêncio)

BRENO
Merda.

CELSO
A gente conversa depois, tá bom? Quero saber sobre tudo de você.

JOICE
Ele tá nervoso porque é estreia.

BRENO
Mãe.

CELSO
Vamos voltar pra lá.

JOICE
Sim. Merda, filho! Merda, merda, merda, seu fofo!

(eles saem rindo, abraçados; Breno se amarga em silêncio)

BRENO
Eu não acredito. Um encontro de vida. Assim?

(black-out; terceiro sinal)

(o Duende surge com sua mesma roupa de duende, mas com mais enfeites; ele sapateia e faz um número solo de ballet contemporâneo (?); não forçando comédia, realmente uma apresentação de dança bacana, pop; ele finaliza com um passo grandioso e pede aplausos; Breno entra canastrão, faz uma voltinha idiota e beija a boca do Duende; Celso, na plateia se levanta inconformado; Joice tenta acalmar Celso; além do beijo, o Duende recita esse texto tocando o corpo de Breno:)

DUENDE
As mãos. Os corpos. O sangue. O cacete. A gengiva. A língua. A cobra. A mentira. A mulher. A santa. O macho. O sexo. A trepada. Deus é uma mulher! (ele esfrega o rosto no pau de Breno)

JOICE
Santo deus!

CELSO
Parem essa porcaria!

(luz de serviço)

DUENDE
Continue o texto, Breno. Continue o texto.

CELSO
(toscamente decepcionado) Meu filho...

JOICE
Pelo amor de deus, Breno!

BRENO
(tenta continuar; nervoso) Os brotos. As virgindades. A santidade. Existe?

DUENDE
Não enquanto eu estiver com meu corpo próximo ao seu.

(eles se beijam novamente)

CELSO
Eu falei pra parar com essa invocação demoníaca! Isso aqui não é teatro! Isso é que é teatro? Acende essa luz aí!

(Joice, desesperada e envergonhada, sobe no palco pra tirar Breno)

CELSO
Vocês tudo são o que? O que que é isso? O que é? É alguma seita, isso daqui? É? Porque se for, esse tipo de coisa é proibido por lei. Eu sou policial.

DUENDE
É pra consumo próprio, senhor.

CELSO
(para Breno) Esse seu personagem, rapaz, apareceu criança aqui. Você já ouviu falar de censura? Sabe se por um acaso alguém vai autorizar um menor de idade fazer parte disso tudo?

(Breno se desvencilha da mãe, e sai chorando de raiva)

DUENDE
Breno! Desculpem, espectadores. (afiado) Tivemos um problemão. (ele sai)

(silêncio)

JOICE
Lembre-se, Celso. Você não é o pai dele de verdade.

CELSO
Mas se é pra fingir, vamos fazer direito, né? Que pai que aguentaria? Eu não sou pai. Mas acho que esse tipo de coisa é mais comum de acontecer do que a gente imagina.

JOICE
O escândalo que a gente fez, é isso?

CELSO
Exatamente.

JOICE
Mas foi bastante emocionante, não foi? Numa estreia de teatro! Parecia que você era mesmo o pai dele porque você envergonhou ele, descaradamente.

CELSO
Verdade. Ele nunca vai desconfiar.

(Breno entra subitamente)

BRENO
Desconfiar de que?

DUENDE
(surge) É ótimo quando esse tipo de introdução súbita surge numa situação suspeitosa. (desaparece)

JOICE
Oi, meu filho! Parabéns pelo espetáculo. Merda.

BRENO
Vocês destruíram a minha vida.

CELSO
Imagina, filho. Estávamos prezando pelo seu bem.

BRENO
Eu nem te conheço! O que te dá esse direito? Só porque gastava um pouquinho a mais no natal? Se liga, babaca. Depois de hoje não espere que eu te aceite como pai. Nunca mesmo.

JOICE
Filho, pelo amor de deus. Ele é seu pai, não importa o que você quer. Tá no seu sangue.

BRENO
Foda-se! (profundo) O mundo todo tá no meu sangue.

JOICE
Oi?

BRENO
É, mãe. Uma hora a gente tem que se livrar de alguns amores e seguir em frente pra amar outras pessoas. Foda-se o vínculo de sangue.

JOICE
Breno!

BRENO
Eu amo você, mãe. Vou te amar sempre. Mas não me obrigue a aceitar esse...

CELSO
Esse o que, moleque? Olha o desacato.

JOICE
Filho...

BRENO
Mãe. Puta papelão. Eu vou ser lembrado por essas pessoas que vieram assistir pro resto da vida delas. Tomara que não comentem. Ou se comentarem que não inventem. Ou se inventarem que meu nome desapareça da história. Eu tô fudido. Um belo de um fracassado antes mesmo de começar minha carreira direito.

CELSO
Antes lembrado que é de uma família direita, que lembrado como prostituto que deixa um outro homem (!) esfregar a cara no próprio bilau. Isso é um absurdo, menino!

BRENO
E depois de séculos, descubro que meu pai é homofóbico.

CELSO
Eu não sou homofóbico, moleque. Minha esposa tem uma prima que é sapatão, tá bom? Só pra você saber.

(silêncio)

JOICE
Breno. Ele não é seu pai.

(suspense)

BRENO
O que?

JOICE
Eu menti.

BRENO
O que? Como assim mentiu?

JOICE
Ele não é seu pai, Breno. Eu inventei.

BRENO
E o que significou tudo isso, mãe?

CELSO
Ela me deu quinhentão.

(silêncio)

BRENO
Mãe, vai pra puta que te pariu, meu! Que porra de sacanagem que você tá me falando?

JOICE
Eu estava desesperada. Seu verdadeiro pai é um alucinado mentiroso. Ele tem três filhos com mulheres diferentes. E trabalha com... Coisas internacionais...

BRENO
(grita) Não interessa! Eu...

(silêncio)

JOICE
Desculpe. Estamos quites agora.

BRENO
E onde é que ele está?

JOICE
Oi?

BRENO
Onde é que tá meu verdadeiro pai?

CELSO
Na cadeia.

BRENO
Na cadeia? Por poligamia?

CELSO
Por assaltar um branco. Na saidinha do banco. Um celular e quinhentos reais.

(uma luz introduz Robertson grandiosamente)

ROBERTSON
Filho.

BRENO
Vocês tão de sacanagem, né?

JOICE
Por isso seu cabelo é enroladinho, Breno.

(o foco se apaga; Robertson entra em cena)

ROBERTSON
Eu fui um injustiçado! Eu nunca roubei nada na minha vida! A câmera de segurança não comprova nada! Eu lembro! Eu lembro, tá bom? Foi legítima defesa, a faca! Tem que ficar esperto quando se mora na rua. Eu não fiz nada daquilo!

CELSO
Ah, cale a boca, vagabundo.

BRENO
Ele é meu pai?

JOICE
Ele é um homem super inteligente, meu filho. Olhe, você tem os olhos dele.

BRENO
Nada a ver.

JOICE
Meu filho. Esse é seu pai, meu filho. Dê um abraço no seu pai, Breno.

(Robertson se aproxima e dá um abraço em Breno)

ROBERTSON
Menino, eu fui preso injustamente. Acredite no seu pai. Sua mãe nunca te deixou passar fome, não é, Bruno?

BRENO
É Breno.

ROBERTSON
Breno.

BRENO
Minha mãe te deu quinhentão.

ROBERTSON
Ah... eu não sei do que está falando.

BRENO
Ela te deu. (vira-se) Mãe, cacete, mãe!

JOICE
Filho, não! Agora é verdade. Ele é mesmo seu pai. Eu emprestei quinhentão pra poder tirar ele da cadeia.

BRENO
Ele não tem nada a ver comigo!

JOICE
Filho, você que não percebe. Eu vejo muitas semelhanças. O seu “coisinho” aí é igualzinho o dele, viu. Igualzinho.

BRENO
Mãe! Faça o favor!

JOICE
Mas é.

ROBERTSON
(orgulhoso) Parabéns, garoto.

BRENO
Vai te fuder. Não te conheço. Não sei. Quero um teste de DNA.

JOICE
O que?

BRENO
Eu quero. Já que é pra ter drama, vamo esculachar. Eu não sei acredito que ele é mesmo meu pai. Eu desconfio. Quero realizar o teste imediatamente.

(o Duende entra com um carrinho com vários instrumentos musicais e um gorro de enfermeiro; vagarosamente ele entrega um instrumento pra cada, e ordena algumas instruções apenas com gestos, sempre pedindo silêncio; por um longo tempo, com muita calma e lentidão, ele se prepara para tocar com a banda; ele acerta a posição dos atores/músicos com precisão, limpa algum trombone, afina algum violão, etc; finalmente ele se posiciona como maestro, pede silêncio e...)

JOICE
É mentira! É mentira! Ele não é seu pai.

BRENO
O que?

JOICE
Não. Ele não é seu pai. Seu pai é o Gustavo.

(Gustavo entra)

GUSTAVO
Amado!

BRENO
Mãe!

JOICE
Não! É mentira também!

GUSTAVO
Uma a menos.

(Gustavo sai)

JOICE
Eu não sei. Eu não quero dizer. (ela desiste chorando)

(longo silêncio; o Duende retira todos os objetos, bravo pelo serviço perdido, mas mais uma vez com muita calma e tranquilidade, longo silêncio)

JOICE
Seu pai é um homem maluco. Eu não queria que você tivesse que conviver com ele.

BRENO
Eu não sei se eu quero conviver com ele. Mas, porra, depois disso tudo você não quer saber qual vai ser a minha reação a hora que eu descobrir quem ele é?

(silêncio; as portas do teatro se escancaram; Eduardo entra grandiosamente, com luz e música)

EDUARDO
Breno, eu sou seu pai.

(música de final feliz; Breno finalmente se emociona; ambos se olham e se amam instantaneamente)

JOICE
Não! É mentira! É mentira também. Na verdade isso tudo também é uma mentira. Eu sou prima da esposa dele (aponta para Celso). Eu sou a prima sapatão dele. Eu não sou mais sapatão. Eu me converti no nome de Jesus. Você é fruto de um amor que eu tive com uma garota, Breno. Ela queria ter um filho, eu fiz tirar um óvulo dela, procurei um doador, e eu me engravidei. Nem fiquei internada. E aí esse filho da puta começou a atormentar a nossa vida. Ele entrava de madrugada no seu quarto e te chacoalhava! Ele é um traficante internacional!

CELSO
O que?

EDUARDO
Ela tá variada.

CELSO
Eu não acredito em mais ninguém nesse mundo.

JOICE
E aí um dia nós nos separamos. Eu e sua mãe número dois. Antes de você nascer. Ela não queria mais saber. Ela ficou com medo, eu acho. Eu só aceitei as coisas dele porque eu fiquei sozinha.

BRENO
Mas meu pai de sangue é ele mesmo, então?

JOICE
Sim, mas você mesmo disse que foda-se esse negócio do sangue. Você não tem pai. Pra mim, você tem duas mães.

EDUARDO
O espermatozoide era meu.

JOICE
Infelizmente!

EDUARDO
Você já disse que me ama uma vez, Joice.

JOICE
A gente diz isso pra todo mundo. Não é?

EDUARDO
Nosso sexo era sensacional. Sapatão é o caralho, não é?

JOICE
Isso se chama tesão pós decepção amorosa.

(silêncio)

BRENO
E quem é minha segunda mãe, mãe?

JOICE
Ela não vai aparecer. Ela não gosta muito de teatro.

BRENO
Mas eu quero conhecer ela.

JOICE
Um dia. Mas não nessa sessão. Talvez num episódio três, se houver.

(Joice se ajoelha e põe seu filho em seu colo; o Duende, com um cajado, aparece e veste uma capa azul em Joice; os três pais, Eduardo, Robertson e Celso entram com presentes; Gustavo entra como uma ovelha; eles formam a famosa manjedoura)

(black-out)


INTERLÚDIO

(o Duende entra)

DUENDE
Atenção moralistas e ditadores de regras artísticas. Venho através desse comunicado informar-lhes que foda-se. O dramalhão veio da necessidade de mostrar que – sim! – nós somos obras primas de nosso próprio drama existencial e artístico. O drama é diário e é tão absurdo na ficção como na realidade. O surrealismo veio da necessidade de mostrar que – sim! – o diabo realmente existe e ele é verde e ele atazana a vida de quem deixar ele atazanar, no simples poder de acreditar. A justiça... bom, a justiça é um bom assunto pra se discutir quando falamos de mentira? (instantaneamente ele se exalta monstruosamente irritado com o espectador de sempre) É? Eu fiz uma pergunta? É, ô, idiota? É um bom assunto, caralho? Eu tô perguntando pra você. (ele chacoalha o espectador) A porra da justiça direita tá longe de ser realmente de esquerda. E eu e você vamos sempre se fuder nessa merda! E agora? E agora? (pausa) Sorte que ninguém é racista quando vê um cara que é verde. Porém, o cara que é marrom...

TODOS
(cantam)
E vai descendo
E desce mais
Mexe esse bumbum
E ninguém, nem eu, nem você, nem ninguém 
Desce, desce, desce
Até o chão
Vai!
Desce
Pro buraco do poço
Vai! 
Mexe esse bumbum


Cena 3: E A MENTIRA MORRE NAS OUTRAS BOCAS

(quando a luz se acende, Eduardo está sentado com muitos artefatos e drogas; uma fumaça invade o palco e Eduardo fuma ervas especiais em um bongue)

DUENDE
A mente. Os raios. Os choques.

(Robertson entra tropeçando)

ROBERTSON
Caralho de degrau que eu sempre esqueço. Manda tirar essa merda daí.

EDUARDO
Cale a boca, mau educado. Pega a mercadoria e vaza.

ROBERTSON
Olha, eu só queria avisar que não faço esse tipo de coisa, viu. É que eu acabei de sair da cadeia e tô precisando arrumar um dinheiro e...

EDUARDO
Pega a mercadoria e vaza.

ROBERTSON
Ok, senhor.

(ele pega duas mochilas, confere e sai agradecendo com a cabeça)

EDUARDO
Quinta-feira!

ROBERTSON
(em off) Quinta-feira!

EDUARDO
E não vai cheirar toda essa porra, hein!

(silêncio; Eduardo continua fumando; o telefone toca)

EDUARDO
Sim.

VIVA VOZ
O cliente de codinome Homem Verde gostaria de conversar sobre a compra que ele fez. Ele tá no telefone.

EDUARDO
Uhum.

VIVA VOZ
Quer atender?

EDUARDO
Quantos milhões, Afrodite?

VIVA VOZ
Três e meio. É um russo.

EDUARDO
Hum. Pode passar a linha e mande comprar um presentinho.

VIVA VOZ
Aquele?

EDUARDO
Aquele mesmo. Pode passar.

(Laila entra raivosa e arrebenta o fio do telefone)

EDUARDO
Você tá louca? Eu posso perder um cliente super importante, sua vagabunda!

LAILA
Eu não quero saber. E o nosso combinado?

EDUARDO
Ainda com essa história?

LAILA
O nosso combinado era de que o pó era de graça, Eduardo! Pro resto da vida! Você já se esqueceu? Você lembra?

EDUARDO
Olha como você já tá nóia, Laila. Eu falei pra você não entrar nessa merda.

LAILA
Viu como eu nunca minto? As drogas foram a fuga pra depressão que você me deixou com um filho. Eu tive um filho seu e a porra da sua pensão não dá pra merda! Não dá pra comprar nem aquela garrafinha – da pequena – de whisky, que vende nos postos de gasolina.

(Camila entra)

CAMILA
É verdade. Isso daqui é uma porra. Não dá nem pra comprar...

LAILA
(grita irritadíssima) Vaza daqui que você é uma coadjuvante!

CAMILA
Caralho. O que é justo é justo.

(Camila sai)

LAILA
O pó. O pó, Eduardo. Eu sofri de amor por você. É só o que você pode fazer por mim. Eu sabia que ia ser assim, sabe. Eu super sabia. Quem é a vagabunda da vez?

EDUARDO
Não tem mais vagabunda nenhuma, Laila. Eu mudei. As coisas mudaram. Comecei a ver o mundo de outra forma.

LAILA
De que merda que você tá falando, Eduardo? Você quer voltar, é isso? Eu já tô em outra, otário.

EDUARDO
(ri) Voltar? Que horas que você entendeu isso?

LAILA
Seu insensível! Mudou de que jeito, Eduardo? Vai casar sério, é isso? Arrumou alguma vagabunda e jurou amor eterno, seu canalha?

EDUARDO
Eu acho que eu não gosto mais de mulher, Laila. É isso. Muitos problemas. Eu, que sou um viciado em sexo, consegui engravidar três. Que eu sei! E é tudo muita maluquice com essa mulherada. Muito problema o resultado do meu tesão. Com homem não tem esse problema. Tá sendo divertido. Você nem imagina o que essa erva indígena fez comigo. Mudei até de religião.

(silêncio)

LAILA
O que? Calma, eu não tô entendendo.

(Breno entra com um shorts sensual e senta-se ao lado de Eduardo)

EDUARDO
Acho que eu virei viado, Laila. Dá pra acreditar?

LAILA
O que?

EDUARDO
Virei, não, né. Só abri os olhos pra essa maravilha de sexo e sexo e sexo o tempo inteiro. Uma coisa mais animal que sentimental, entende?

LAILA
Mas esse não é seu... Esse não é seu filho, Eduardo?

BRENO
Mamãe insiste em dizer que não. Eu prefiro pensar que sim.

(Breno o beija e apalpa o pau de Eduardo)

EDUARDO
Ai, ai. Isso tudo é uma loucura, não é, não? E não tem perigo de ter mais um filho. Olha que beleza.

LAILA
Você é o homem mais nojento que eu já conheci, Eduardo. Mais mentiroso. Você sempre foi bicha, Eduardo? Aposto que sempre foi bicha! Eu sabia! Eu sabia!

BRENO
Todo mundo é bicha quando nasce. Depois que se molda.

EDUARDO
Eu gostava de comer vocês.

LAILA
Porra, pra ter tido três filhos...!

EDUARDO
Pois é.

LAILA
Meu deus do céu. A sua mãe sabe disso, menino?

BRENO
Sabe. Ela super apoia.

LAILA
Sério?

BRENO
Sério. Mamãe largou a igreja e voltou a namorar com a minha segunda mãe. É um barato. E eu namoro com o meu suposto pai. Não é surreal de moderno?

(silêncio)

LAILA
Não quero mais você sozinho com meu filho, Eduardo.

EDUARDO
Nosso filho.

LAILA
Nosso, não! Eu te denuncio! Pai que come o filho. Você não tem vergonha de fazer isso com esse moleque, Eduardo?

BRENO
Na verdade é o oposto. Eu quem domino.

EDUARDO
É. Agora eu já consigo até relaxar.

(silêncio)

LAILA
Eu vou denunciar vocês para a polícia! (se ajeita para sair)

(Breno tira um revolver de algum lugar e mata Laila sem pensar; um instantâneo inusitado e absurdo)

EDUARDO
Breno!

BRENO
Pai!

EDUARDO
Ela tem um filho!

BRENO
Já foi.

EDUARDO
Comigo.

BRENO
Já foi.

(Camila entra)

CAMILA
Olha, Eduardo, desculpa entrar assim. Mas eu tive reclamações do seu filho lá na escola. Eu sei que eu sou uma porra de uma coadjuvante, Eduardo, mas a professora dele falou que ele é um puta de um menino mentiroso! Ele mente em tudo. Ele mente que já comeu, mente que quer ir no banheiro. O tempo inteiro mentindo. A gente tem que fazer alguma coisa. O que você acha?

EDUARDO
Ué. Todo mundo é assim, não?

(silêncio)

CAMILA
Eduardo, seu filho está me dando trabalho. Está me dando dor de cabeça! Eu não sei de onde ele aprendeu a mentir desse jeito, Eduardo. Só pode ser maldição da sua linhagem! Eu só acho que nós dois devíamos refletir mais um pouco sobre...

(repentinamente Breno atira em Camila também)

CAMILA
Seu filho da uma puta! Eu nem terminei de falar todo o meu bife... (morre)

EDUARDO
Filho! Puta que o pariu, filho! Meu deus. Duas?

BRENO
Já foi, pai. Já foi.

(Breno e Eduardo se beijam enlouquecidamente; eles começam a tirar a roupa)

BRENO
Vamos fazer um sexo passando o sangue delas no nosso corpo, pai?

(silêncio; Eduardo estranha)

BRENO
Brincadeira.

(eles se agarram novamente; Joice entra; os dois disfarçam rápido)

JOICE
O que estavam fazendo?

EDUARDO
Nada, amor.

BRENO
Eu tava tirando uma espinha do papai. Precisava ver que nojo, mãe.

JOICE
Hum.

EDUARDO
E a menina?

JOICE
Que menina?

EDUARDO
A mãe dele. Vocês voltaram?

JOICE
Imagina, meu bem. Falei pra ela que agora era eu quem não queria mais nada com ela. Você nunca teve duas mães, Breno. Seu pai sempre foi esse homem aqui. Meu marido mais maravilhoso do mundo. (ela o beija) Ela não vai mais voltar. Eu joguei um monte de coisa que tava entalada, na cara dela. Agora eu quero aquele casamento que você sempre me prometia, Eduardo. Iremos formar uma família comum e feliz, pessoal. Eu, você e nosso filho artista, meu deus. Infelizmente, nem sempre tudo é perfeito, né. Mas enfim.

(silêncio)

JOICE
Não estão felizes com a notícia?

EDUARDO
Sim, sim! Com certeza. Eu te amo, amor.

JOICE
Eu também te amo, amor.

(eles se beijam; Breno se amarga)

JOICE
(vê os corpos) O que aconteceu com elas, gente? Eu não vou ter que limpar tudo isso sozinha, vou?

(Celso entra)

EDUARDO
Olha o polícia!

CELSO
Não! Calma! Eu só quero um pozinho! Digo, eu vim comprar maconha.

(Breno atira em Celso)

EDUARDO
Ufa. Quase, moleque. Você nos salvou da cadeia. (beija Breno na boca quase que sem querer)

JOICE
O que é isso?

EDUARDO
Amor de pai, querida.

(Joice abraça Eduardo um pouco desconfiada)

JOICE
Bem, vamos agora limpar essa bagunça – nós três! – antes que outro policial apareça. Ah, é o Celso, coitado. Ele era lá da igreja. O que a gente vai fazer com eles, Eduardo?

EDUARDO
Não sei.

JOICE
Eduardo, olhe pra mim. Deixa eu ver seus olhos.

EDUARDO
O que foi?

JOICE
Você é a coisa mais linda que deus já criou, sabia?

EDUARDO
Ah, para com isso.

BRENO
Ai, meu deus.

JOICE
Não faça charme. É verdade. Eu te amo mais que tudo nesse mundo. Nunca mais eu vou deixar você escapar de mim, você entendeu?

EDUARDO
Eu não vou escapar.

JOICE
As coisas acontecem. Você jura?

EDUARDO
Juro.

BRENO
Mãe?

(ela se vira; Breno atira na testa dela; ela cai morta; suspense)

EDUARDO
Breno! Sua mãe!

BRENO
Acho que a gente tem que deixar amores passados e renovar o sentimento. Você é meu amor agora. Meu primeiro amor. Sabe o que é isso?

EDUARDO
Breno...

BRENO
Estamos fadados, destinados, a sofrer. Eu, principalmente. Você já teve várias namoradas.

EDUARDO
Você é meu primeiro namorado.

BRENO
Não interessa! Você é um puto de natureza e eu sei que você vai fazer o mesmo que fez com elas comigo.

EDUARDO
Não. Agora vai ser diferente.

BRENO
Você jura?

EDUARDO
Quando eu digo que eu vou ser fiel, quer dizer que eu vou ser fiel.

BRENO
Eu tenho tanto medo de começar usar drogas, pai! Mas se você me abandonar eu não vejo outra solução. Eu não sei o que é. Mas eu te amo mais que tudo nessa vida.

EDUARDO
Odeio quando chega nessa parte.

BRENO
Desculpe, eu devo tá parecendo um louco, né?

EDUARDO
Não, filho. Com você vai ser diferente, Breno. Você não é meu único filho, mas será o único amante.

BRENO
Oh, meu amor! (ele o abraça) Eu tenho tanto medo de te perder, pai. Nosso vínculo de sangue faz nosso amor ser mais extraordinário ainda, não faz? Olha que coisa mais linda, pai. Nós somos pais e filhos e amantes. É lindo demais.

EDUARDO
E um pouco estranho, também.

BRENO
Não tem nada de estranho. Eu sonho com um mundo assim. Onde faremos sexo com nossos primos e tios.

EDUARDO
Que absurdo!

BRENO
Ué! Quer terminar, é isso, pai?

EDUARDO
O que? Agora eu não posso discordar de você, é isso? Pare de paranoia.

BRENO
Nós nunca daremos certo juntos.

EDUARDO
Você não sabe disso. Quando eu digo que eu gosto de uma pessoa, quer dizer que eu gosto.

(silêncio)

BRENO
Você jura?

EDUARDO
Juríssimo.

(eles se abraçam como um final feliz)

BRENO
Espera que eu vou fazer xixi. (ele sai correndo)

(Eduardo aproveita o momento e rapidamente tira Gustavo escondido de algum lugar)

EDUARDO
Vai, vaza daqui! Ele foi no banheiro. Corra!

GUSTAVO
Eu amo você.

(eles se beijam e Gustavo corre; Breno surge bem à sua frente)

BRENO
Ahá! Eu sabia!

GUSTAVO
Por favor... não! Mais mortes perde a credibilidade...

BRENO
Eu sou um sociopata.

(Breno atira em Gustavo)

EDUARDO
Breno!

GUSTAVO
Ah, meu. Não acredito. Vai tomar no cu, meu. (morre)

BRENO
Eu tô sanguinário hoje! Eu tô sanguinário! E não tem nada de maquiagem! É sangue de verdade!

EDUARDO
Você não pode fazer isso, Eduardo. Você tá matando o elenco inteiro.

BRENO
Pois eu já fiz. O que tá feito, tá feito.

EDUARDO
O Gustavo... você matou... eu estava gostando tanto dele.

BRENO
Pois se não for comigo, não será com ninguém também! Foda-se a porra do final feliz!

(Breno aponta a arma para Eduardo)

EDUARDO
O que é isso, mano?

(Breno atira em Eduardo)

EDUARDO
Filho, quantos tiros! Isso tudo está parecendo muito filme... Daquele cineasta famoso... Bill. (morre)

(Breno coloca a arma na cabeça)

BRENO
Cacete. A gente tem ouvido tanto sobre famílias inteiras mortas pelo filho adolescente. Não tem já uma história assim? Como eu sou clichê. (silêncio) A gente mal sabe como é na vida real, porque isso daqui é só uma mini moldura.

(ele se prepara para atirar; suspense; o Duende entra)

DUENDE
Mentira. Sexo. Mentira. Companhia. Mentira. Você não fez nada de errado, Breno. Todos eles queriam tirar sua felicidade. Temos uma ideia melhor.

BRENO
Temos?

DUENDE
Sempre.

BRENO
Eu não sei o que fazer. Isso é uma chacina. É morte ou cadeia.

DUENDE
Você não aprendeu nada, Breno? Eu sei que todo mundo odeia teatro com mensagem, mas como você é um personagem, alguma coisa você tem que tirar disso tudo, rapaz.

BRENO
Mas o que eu posso fazer?

DUENDE
Venha. Me empresta seu celular.

(black-out)


CENA 4: NEGRITUDE FINAL

(quando as luzes se acendem, Robertson entra um pouco desconfiado, carregando as mesmas mochilas)

ROBERTSON
Olá? Eduardo? (ele vê os corpos) Puta que pariu! Meu deus do céu, o que aconteceu aqui? (chama) Alô-ô?

(seu celular toca)

ROBERTSON
Ai! Péra. (ele tem dificuldade em atender) Calma, calma! (atende) Alô? Breno! O que houve? Não, eu não sei, alguém me ligou – eu pensei que tinha sido o Eduardo – e me falou pra eu trazer as drogas de volta agora. E eu cheguei aqui, menino, e tá... meu deus do céu, tá todo mundo morto. Eu não sei, eu não sei. Eu acabei de chegar. Sua mãe? Calma. (ele procura) Sim. Sim, menino, ela está aqui. Ai, meu deus. (pausa) Não chore. Não chore, Breno. Eu sinto muito. Ai, deus. E agora, menino? O que? Onde? Calma. (ele procura alguma coisa) Eu não tô achando. Onde tá? Embaixo do seu pai? Peraí. (ele retira a arma que Breno usou de baixo de Eduardo) Aqui. Achei. O que tem? O que? Você acha que quem fez isso ainda está aqui? (ele se atenta, com a arma em punho) Calma. Sim. Eu tô olhando. Quem será que fez isso, Breno? Meu deus do céu. Que tragédia. (pausa) Sim. Sim. Verdade. (pausa) Sim, tô prestando atenção pra ver se ouço algum barulho. Calma. (ele fica em silêncio ouvindo) Chiu. Calma. (mais silêncio) Viu, Breno? Será que não seria melhor a gente chamar a polícia?

(luzes e sons de sirene atingem a cena; em off, ouve-se barulho de uma tropa)

ROBERTSON
Aqui! Aqui! (percebe que está com a arma na mão) Eita.

DUENDE
(em off) Saia com as mãos na cabeça imediatamente, seu favelado maconheiro desgraçado e filho da puta!

ROBERTSON
Pois bem. Sou eu.

(black-out)

PRELÚDIO

(todos os atores em cena)

TODOS
(cantam)
Um modelo de complicação
é apresentado em ficção.
Como vivem os burgueses,
como vivem os miseráveis,
Os ricão
E talvez os de bom coração

Como deve viver o branco, o negro e o japonês.
Tamo falando de vocês!
Em claro e limpo português!

Nos apresentam até como se deve sofrer se você é burguês ou se você é um pobre freguês
Ou se está atrás do balcão
Porque pobre e burguês choram diferente.
Nascem diferente
Morrem diferente
Trepam tudo igual
E aquela novela de ficção
A peça teatral
Passa a se tornar real,
pois no fim acreditamos que a verdade de uma rotina
é só aquela.

Mentira!
Seremos sempre um belo de um eterno
Desesperançoso
Mentiroso
Ponto e vírgula.

Mentira!

DUENDE
Isso foi uma peça de ficção. Qualquer mera coincidência com a realidade ou nomes de personagens e acontecimentos... (pausa) Não passa de ficção. Brisa. Eu sou um duende. Obrigado.

FIM

de Gabriel Tonin




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