CARA DE ONDE VEIO
PERSONAGENS
Murila
Jaiminho (fantoche)
Tio Pasquim
Ferdinando
O Leiteiro
(à frente de uma casa, Murila brinca com Jaiminho em seu
colo; ela muda as feições de Jaiminho com outros narizes, olhos, bocas e
cabelos; o fantoche pode ter voz própria ou não)
MURILA
Quantas vezes eu já disse, Jaiminho sem-vergonha? Não é pra destratar o bonito homem que nos traz leite toda manhã. Se ele é bonito, a culpa é de ninguém. A culpa é minha? A culpa é sua? Não. Nunca mais destrate alguém daquele jeito, você ouviu bem?
Quantas vezes eu já disse, Jaiminho sem-vergonha? Não é pra destratar o bonito homem que nos traz leite toda manhã. Se ele é bonito, a culpa é de ninguém. A culpa é minha? A culpa é sua? Não. Nunca mais destrate alguém daquele jeito, você ouviu bem?
JAIMINHO
Num enche o saco!
MURILA
Jaiminho! Olha essa boca! Eu tô dizendo que aquilo foi
malcriação. O que foi que eu te ensinei? Foi aquilo? Eu te ensinei a falar
aquilo? Não foi aquilo. Isso eu tenho certeza.
JAIMINHO
Não foi aquilo porque você é tapada!
MURILA
Ah!
JAIMINHO
E é mesmo. Agora para de me encher!
MURILA
Já vi que você está de mau humor.
JAIMINHO
De muito mau humor!
MURILA
O que foi que aconteceu, meu filho? Desembucha logo.
O que foi que aconteceu, meu filho? Desembucha logo.
JAIMINHO
Não é nada.
MURILA
Fala. Agora pode falar. Tá escrito na sua testa que
você...
JAIMINHO
Já disse que não é nada.
MURILA
Caramba, Jaiminho! Para de ser insuportável! Fala agora!
JAIMINHO
Eu tô com raiva. É isso.
MURILA
Raiva? Raiva de que? Ficou besta?
JAIMINHO
Não aguento mais você descontente com a minha cara. É
sempre a mesma coisa.
MURILA
Ah, Jaiminho. Já discutimos sobre isso. Você sabe que o
Brasil é uma coisa de louco. É difícil de acertar.
JAIMINHO
Pois escolhe um e pronto!
MURILA
Já disse que não é tão fácil assim. Colabora, Jaiminho!
JAIMINHO
Eu não quero colaborar com nada! Isso pra mim é
safadisse! Sa-fa-dis-se!
MURILA
Olha, se você não parar eu vou te guardar bem no fundo
daquele baú embaixo da cama do Tio Pasquim. Ouviu?
JAIMINHO
Tá bom, chantagista. Eu paro.
(silêncio; Murila termina o novo rosto de Jaiminho)
JAIMINHO
(sem ânimo) E então?
MURILA
Ficou linda! Bem parecida.
JAIMINHO
Agora tenho cara de brasileiro?
MURILA
Acho que sim. Calma, falta o cavanhaque carioca e essas
duas garrafinhas de leite. (ela gruda o cavanhaque e duas garrafinhas em
Jaiminho) Nossa! Agora ficou idêntico! Eu namorava fácil com você, Jaiminho!
Meu leiteiro!
JAIMINHO
(irritado) Por que diabos o leiteiro, Murila? Tem que ser
o leiteiro? Eu sou alérgico à lactose.
MURILA
Porque dizem que ele é brasileiro de verdade. E melhor,
não sei se reparou, mas ele tem um sotaque maravilhoso de novela. Um sotaque do
rio. Tem gente mais brasileira que o Rio de Janeiro? É claro que não. Faz muito
tempo que não se vê um brasileiro puro por essas bandas. Você mesmo, Jaiminho,
você é um boneco importado. Foi feito artesanalmente na Holanda. Tio Pasquim
comprou de um contrabandista no Mato Grosso.
JAIMINHO
Brasileiro?
MURILA
Oi?
JAIMINHO
Brasileiro? O contrabandista.
MURILA
Claro, né. (ri) O que mais poderia ser?
JAIMINHO
É.
MURILA
E como você é um boneco e me pertence, eu decido ter você
com a cara de brasileiro! Brasileiro puro! Carioca!
(Ferdinando, de repente, surge correndo desesperado e
engasgado; ele cospe, quase vomitando; é alto e loiro com traços europeus;
Murila fica extasiada com a visão, ela observa-o do pé à cabeça)
MURILA
Olá.
FERDINANDO
(com dificuldade) Aô.
MURILA
Posso ajudar?
FERDINANDO
É... (engasga)
JAIMINHO
Acho que ele não fala a nossa língua.
MURILA
O que acha que ele deve ser, Jaiminho?
JAIMINHO
Alemão, talvez?
MURILA
Pode ser russo.
FERDINANDO
(com dificuldade) Aúda? Pode...? Aúda? Abélia.
MURILA
Abélia?
FERDINANDO
Abêlia...
JAIMINHO
Acho que abêlia
é fome em russo.
MURILA
Como sabe?
JAIMINHO
Pela cara dele.
MURILA
Então você está com fome, meu caro?
FERDINANDO
Hã?
MURILA
Fome. Comer. Nham-nham.
FERDINANDO
(faz que não entendeu) No...
JAIMINHO
Talvez seja sede.
MURILA
Tio Pasquim! Temos uma visita! Um gringo!
JAIMINHO
Podíamos tentar vender alguma coisa pra ele pelo dobro do
preço, que acha?
MURILA
Vender o que, Jaiminho?
JAIMINHO
Trufas, sei lá. Acarajé! Acarajé é uma boa, vai.
MURILA
Cale a boca, Jaiminho. Tio Pasquim! Corre aqui!
FERDINANDO
Eo... no... (desmaia)
MURILA
Ai, meu deus! Ai, meu deus! Tio Pasquim! Tio! Será que
ele morreu, meu deus?
TIO PASQUIM
(entra) O que foi agora, Murila?
MURILA
Veja, Tio Pasquim. Ele desmaiou.
TIO PASQUIM
Quem é esse?
MURILA
Um gringo. Acho que ele tá perdido. Disse que estava com
fome. Ou sede, eu não sei.
TIO PASQUIM
Ai, ai, ai. Não quero esse tipo aqui.
MURILA
(indignada) O que é isso, Tio?
TIO PASQUIM
Vai pra dentro, Murila. Essa gente tá querendo trazer os
problemas deles pra nós. Viu televisão noite passada?
MURILA
Tio, que coisa feia. Não foi isso que o senhor me
ensinou. Foi? Foi isso? Claro que não foi.
TIO PASQUIM
Não foi isso porque às vezes eu sou tapado! Fique longe
dele, menina. Esses russos estão com muitos problemas. Não quero problemas aqui
em casa. Deus me livre! Aqui não neva!
MURILA
Ora, não fale assim. Nem sabemos se ele é russo. Pode ser
que seja alemão também.
TIO PASQUIM
Ah, agora melhorou. Leve o para dentro para torturarmos
alguns judeus.
MURILA
Tio! Que é isso?
TIO PASQUIM
Entre, Murila. Fique longe desse homem.
MURILA
Mas tio...
TIO PASQUIM
Agora, Murila. Vai.
MURILA
Vamos ajudá-lo, Tio. Por favor. Ele parece não estar bem.
Não era você quem dizia que o Brasil é coração de mãe. Então.
TIO PASQUIM
A regra vale pra brasileiros puros. Não somos brasileiros
mesmo.
MURILA
(sentida) Eu sou! Eu já disse que eu sou brasileira! Você
pode não querer, você pode querer não ser, mas eu sou! Eu falo português, amo
Alice Braga e assisto Jornal Nacional todo dia! Desde sempre! Minha mãe...
TIO PASQUIM
Chega, Murila. Pra dentro, anda!
MURILA
O homem vai morrer aí sozinho.
TIO PASQUIM
Pra dentro, Murila! Eu não vou falar de novo.
(Murila pega Jaiminho e entra na casa cabisbaixa; Tio
Pasquim observa Ferdinando por alguns segundos, chuta-o de leve e ri curioso;
ele vai até a casa e antes de fechar a porta muda de ideia; ele sai e volta com
um copo de leite e biscoito)
TIO PASQUIM
Não acostume, sangue puro. (sai)
(a noite cai; Ferdinando acorda vagarosamente com certo
incômodo na língua)
FERDINANDO
Calalio.
(Jaiminho aparece na janela; ele está loiro, com traços
europeus)
JAIMINHO
Acordas-te, alemão?
FERDINANDO
Oi!
JAIMINHO
Tio Pasquim deixou essas coisinhas aí pra você.
FERDINANDO
Eo no... no dá... mia ínga.
JAIMINHO
Eu não sei falar alemão.
FERDINANDO
Hã?
JAIMINHO
(tagarela) Como é que é lá? Você já foi num campo de
concentração? Putz, meu sonho é conhecer a Europa, cara! Já foi na Holanda? Eu
vim da Holanda, sabia? A Europa é uma piração, não é? Fala se não é. Deve ser
um máximo! Neve, Beatles, Grécia! Ai! Isso tudo tão é incrivelmente antigo, não
é? Caramba. Tive nostalgia. Desculpe. Já fui tão criticada pela nostalgia! Criticado,
eu digo. Mas isso é tão humano, não? A nostalgia. Quem é que não tem vontade de
conhecer o impossível? Quem? O passado é impossível! Ai, Europa! E lá existe
tanta energia nostálgica. Tanta, tanta! Não existe? Hein? Quanta gente que
nasceu e que morreu, daí nasceu mais e morreu mais, e gente que nasceu e que
morreu, e que morreu aí nasceu, e aí nasceu e morreu, morreu e nasceu, morreu,
nasceu, morreu, nasceu gente pra caralho! Tu não tem noção! O que eu quero
dizer é que vocês são incríveis! Queria muito conhecê-lo. Andar com você, tirar
foto na frente da Torre Eiffel! Ai, que sonho bonito! (pausa) Você já foi em
Paris?
FERDINANDO
Eo...
JAIMINHO
Xiu! Tio Pasquim se mexeu na cama. Espere.
(Jaiminho desaparece; Ferdinando apalpa a língua e bebe o
leite; Murila sai da casa)
MURILA
Você acordou!
FERDINANDO
Ha.
MURILA
Eu disse que você acordou. Desculpe meu tio. Ele é meio
receoso com tudo depois que... que a irmã dele morreu. Minha mãe. (pausa) Como
é seu nome?
FERDINANDO
Ferninano.
MURILA
Ferdinando? Que nome bonito. O que está fazendo no Brasil?
Sabe que eu adorei você? Te achei a coisa mais linda do mundo. Sorte que você
não entende nada do que eu falo, né? (ri)
FERDINANDO
Eo atando.
MURILA
Oi?
FERDINANDO
Eo antendo rocê.
MURILA
Precisaremos de um dicionário. (ri) Quando você for
voltar, me leva com você?
FERDINANDO
(tosse; tenta balbuciar engasgado)... Caloca.
MURILA
Não. Murila. Eu sei que é esquisito, é que somos quase
estrangeiros.
FERDINANDO
Eo sô caloca.
MURILA
Caloca? É um país?
FERDINANDO
(engole) Calioca. Carioca! Eo sô carioca.
MURILA
Oi?
FERDINANDO
Eu sô carioca! Etendeo? Carioca da zema.
MURILA
(pausa) E esse sotaque?
FERDINANDO
Abelha. Fui picado na íngua.
(Tio Pasquim aparece na janela)
TIO PASQUIM
Murila! O que está fazendo com o genocida? Entre agora!
MURILA
Tio Pasquim! Ele não é alemão! É brasileiro!
TIO PASQUIM
O português tá se espalhando pelo mundo, minha filha!
Qualquer um sabe hoje em dia! Entre já!
MURILA
É sério, tio! E é carioca!
TIO PASQUIM
O que?
MURILA
Ele é carioca. Fale aí.
FERDINANDO
Eu sou carioca.
TIO PASQUIM
Ora.
MURILA
É sério, tio. E pensando bem, talvez isso seja possível. Como eu pude ser tão tonta?
É sério, tio. E pensando bem, talvez isso seja possível. Como eu pude ser tão tonta?
FERDINANDO
Eu pinto o cabelo, cara. Minha bisa veio da Bolívia.
(silêncio)
TIO PASQUIM
(bufa)
MURILA
(percebe) Caramba! Cadê o Jaiminho? (sai)
FERDINANDO
Se ligou, cumpadi? Foi uma pequena confusão.
Se ligou, cumpadi? Foi uma pequena confusão.
TIO PASQUIM
Você é carioca.
FERDINANDO
Da gema. Tô procurando um abrigo por alguns dias. Rola?
TIO PASQUIM
Rola?
FERDINANDO
É. Rola um albergue? Eu sou mochileiro. Tenho grana.
TIO PASQUIM
Grana?
FERDINANDO
De pai.
TIO MASQUIM
Carioca da gema?
FERDINANDO
Na malandragem. (ri)
TIO PASQUIM
Então, senhor carioca... (bravo) É agorinha mesmo que o
senhor vai ter de sair! Imediatamente! Sai! Sai! (empurra-o)
FERDINANDO
Mas...? O que...? Por que?
TIO PASQUIM
Não suporto seu tipo! Vai! Vai, caramba!
FERDINANDO
Tu não curte brasileiro, é?
TIO PASQUIM
Não curto a cara carioca de brasileiro!
FERDINANDO
Preconceituoso!
TIO PASQUIM
Vaza, malandro!
(Murila volta com Jaiminho)
MURILA
Tio! Espera! Deixa o Jaiminho falar com você.
TIO PASQUIM
Não! Chega dessa brincadeira boba, Murila.
MURILA
Eu sei que você sabe que sou eu quem tô falando, mas
deixa eu falar por ele. Eu só vou conseguir falar assim. Por favor, tio. Por
favor. Deixa ele falar.
TIO PASQUIM
Ele é um boneco, Murila, eu tenho mais coisa pra...
MURILA
Por favor, tio!
Por favor, tio!
TIO PASQUIM
Chega! Sai, rapaz.
JAIMINHO
Ouve agora, merda!
(silêncio)
JAIMINHO
Mãe. A culpa disso tudo não é de ninguém. O ser humano é
foda de qualquer jeito. (pausa) Tio Pasquim, eu sei que você só é tio da
Murila, mas agora eu quase te considero um tio também.
TIO PASQUIM
Murila...
JAIMINHO
Eu queria dizer, tio, que você não pode culpar todo mundo
pela cagada de um único indivíduo. Entende? A morte da sua irmã foi um acaso
que poderia ter acontecido em qualquer outro lugar do mundo.
TIO PASQUIM
O Brasil não mudou. Continua otimista com tudo.
JAIMINHO
Pois é. Isso já é ótimo.
TIO PASQUIM
Aqueles bandidos filhos da puta mataram a sua mãe,
Murila! Foi sacanagem. Não precisava ter matado.
FERDINANDO
E você então odeia carioca por causa disso?
TIO PASQUIM
Odeio todo mundo! São todos iguais. Cara de um, focinho
de outro. (sai) Quero você fora da minha propriedade!
MURILA
Me desculpe. Meu tio odeia carioca. Eu tenho que manter
segredo que temos um leiteiro que traz leite toda manhã, só porque ele é
carioca. É complicado.
FERDINANDO
Eu meio que compreendo. Eu odeio português, sabia?
(tonto) Já ouviu as piadas sobre eles? Toda brincadeira tem um pingo de
verdade, não é? Eu tenho preconceito contra português. E aqueles bigodes. Aff.
Dizem que eles são burros mesmo, manja? E eu acredito. Falou esses dias no
Jornal Nacional.
MURILA
Você é idiota ou o que?
Você é idiota ou o que?
FERDINANDO
Oi?
MURILA
Eu pensei que você fosse diferente.
FERDINANDO
Eu...
MURILA
Siga esse meu conselho: coma abelha todo dia.
(empurrando) Vai, sai daqui.
FERDINANDO
Mas...
MURILA
Vaza, otário! Já não basta eu ter de aguentar as
idiotices do meu tio. Não preciso de mais gente de mente pequena.
FERDINANDO
Fala sério. Tu usa de um boneco pra se expressar, mina.
MURILA
E “tu” não curte o ser humano, mano. Vaza! (grita) VAZA!
FERDINANDO
(pega os biscoitos e o leite e sai) Esquisita.
JAIMINHO
Viu, só, sua tonta?
MURILA
Eu sei. Meu coração é uma bosta. Ele sempre se confunde.
E agora eu nem sei mais o que quero. Se quero brasileiro, se quero estrangeiro.
JAIMINHO
E pra que essa busca frenética, menina?
MURILA
Oi?
JAIMINHO
Pra que se preocupar em procurar?
MURILA
Ora, não vamos ser idiotas. Todo mundo sabe que não existe esperar a sorte bater na porta.
Ora, não vamos ser idiotas. Todo mundo sabe que não existe esperar a sorte bater na porta.
JAIMINHO
Então é grana? É isso? Quer encontrar um estrangeiro rico
e pronto?
MURILA
Eu nunca disse isso. Eu quero encontrar alguém pra me
preocupar. Só que a história dele que reflete no presente, tem que ser a da mais
bacana possível, entende? (pausa) Eu queria conhecer o mundo todo. Japoneses,
australianos, chechenos. Por mim eu trazia todo mundo pra cá.
JAIMINHO
Você é tonta. Tá com pensamento de brasileiro puro.
MURILA
Eu sou parte brasileira, colega. Como todo mundo é.
(o Leiteiro entra com um cavanhaque e duas garrafas de
leite)
LEITEIRO
Oi.
MURILA
(tagarela) Ah, você chegou. Em ponto, hein. Eu queria te
perguntar seu nome. Nos outros dias quase não conseguimos conversar. Meu tio
não gosta de carioca. Acredita? Tem todo um rolo. Minha mãe morreu num assalto
no Rio. Foi um acaso. Poderia ter acontecido em qualquer outro lugar. Eu nunca
fui no Rio. É bonito lá? Eu gostaria de conhecer um dia. Sua família é de lá?
Sabia que você é igualzinho o carinha da novela? Aposto que já te falaram isso.
É idêntico. Muito parecido. Eu adoro o sotaque carioca. É muito bonito. Fale
assim: Merda, poste, bosta.
LEITEIRO
(com sotaque) Merda, poste, bosta.
MURILA
É tudo mentira que existe só bandido lá, não é? Poxa, tem
o Projac, festivais importantes, gente famosa! É tudo tão maravilhoso! Quando
você voltar, me leva junto com você? Eu largo tudo e fujo com você! E tiro uma
foto do Cristo!
LEITEIRO
Yo no soy brasileño.
MURILA
Oi?
Oi?
LEITEIRO
Yo soy argentino.
(silêncio)
MURILA
Não, não. Não é possível. Para, vai. Para de brincadeira.
LEITEIRO
No estoy brincando.
MURILA
Mas... sua cara... você é todo... tão... (pausa) Não pode
ser argentino. Lá neva.
LEITEIRO
(ri) No compreendo.
MURILA
(trava; fica pensativa assustada)
LEITEIRO
(deixa as garrafas) Dos reais.
MURILA
Aqui. (entrega o dinheiro) Me desculpe a confusão.
LEITEIRO
(acena) Passar bien. (sai)
(Murila fica um tempo em silêncio refletindo; coloca Jaiminho
sentado na janela, olha para o horizonte e desanima)
MURILA
Puxa vida. Eu sou a maior preconceituosa do mundo.
(sai cabisbaixa; a luz cai num foco em Jaiminho)
JAIMINHO
Eu sou holandês! Chique, não é? Ei, você! Sabia que eu
sou holandês? É verdade! É super chique. Psiu! Deixa eu te contar um segredo: o
leiteiro é argentino! Argentino, dá pra acreditar? E aquele loiro comprido é
feito em farmácia. O tal de Ferdinando. Fiquei sabendo que ele tem se
aproveitado de algumas meninas fingindo ser gringo. Come abelha de café da
manhã pra ficar interessante. Hoje em dia o mundo tá tão complicado de
classificar, não é mesmo? Ei, você! Já ouviu falar na Holanda? Eu vim de lá,
sabia? Super chique. O importado parece que serve mais, não parece? Tudo serve.
Dura. É super chique. Mas se você pensar bem a coisa não tem cara. Pelo menos
aqui no Brasil. Todo mundo vai fugir pra cá e a gente nem vai reparar. Porque é
meio como coração de mãe, manja? Sempre cabe mais um cara com uma cara
diferente. Ou com uma cara igual, isso também pode acontecer.
(o olho de Jaiminho cai)
JAIMINHO
Nada é tão perfeito quanto o olho brasileiro. Acredite.
(black-out)
FIM
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