JOHNY E DUDA (INFANTO JUVENIL)


Personagens
Johny
Duda
Morte

Cenário: Um cemitério; um túmulo velho.


PRÓLOGO

(a Morte entra cantarolando e se torna uma estátua no cemitério)


CENA 1

(É noite; Johny está sentado no tumulo; ele bebe um vinho; olha para um relógio no pulso; mostra impaciência, esperando alguém chegar)

JOHNY
Cacete, Duda! Tá atrasada de novo. Ela sabe que eu odeio ficar esperando. 

(Duda entra bebendo vinho; ela tem grandes olheiras de maquiagem e se veste de preto)

DUDA
Salve, bonitão!

JOHNY
Salve, salve, delicinha!

DUDA
Chegou faz tempo aqui?

JOHNY
Cheguei faz tempo sim.

DUDA
Foi mal. Atrasei em casa...

JOHNY
Perdoada, santa. Senta aí.

DUDA
E você esqueceu de acender a vela de novo.

JOHNY
Acenda você. Folgada.

DUDA
E eu por que? Acenda você. Eu faço questão. 

JOHNY
Você quem ficou no plano real, garota. Obrigação sua aqui é acender vela. Regras naturais de filme de terror. A mocinha faz as honras da vela pro fantasma aparecer.

DUDA
Mocinha é sua mãe, Johny. Foi você quem quis ir embora. Você quem quis. Eu não tenho obrigação nenhuma de fazer oferenda pra sua alma não.

JOHNY
Eu renuncio a vela. Se quer vela, acenda.

DUDA
Com uma vela acesa você poderia enxergar melhor minha beleza. E eu poderia enxergar melhor o caminho até aqui, e não atrasaria. Tava muito escuro. Eu me perdi entre aquele túmulo que tem um Jesus grande e a casinha dos esqueletos. Tá vendo como sempre é culpa sua as coisas que eu faço? 

JOHNY
(ri) Tá bom. Tá bom. Tudo culpa minha a explosão do universo! E pra sua informação, eu enxergo sim a sua beleza de longe, tá bom? Mesmo no escuro. Você é a maior gata do rolê e você sabe disso. Agora é a sua vez de dizer se consegue enxergar essa beleza também.

DUDA
Claro que sim. Eu sou gata mesmo. Se todo mundo fala, deve de ser verdade, né?

JOHNY
(ri) Não! Metida! Eu tava falando sobre mim! Metida!

DUDA
Ah! Desculpa! Seu mocorongo!

JOHNY
Olha, Duda, a humildade morreu nesse instante, queridinha. De nada adianta ser gata e ser essa mesquinha que se acha a mais gata do rolê.

DUDA
Ué, você que falou! Eu acredito em você, oras! Quero acreditar que seja verdade que eu sou gata mesmo!

JOHNY
E é! Mas não precisa ficar falando. A gente pode falar, não você. 

DUDA
Ai, tá bom.

JOHNY
Metida.

DUDA
Fedido.

JOHNY
E aí? Consegue falar um pouco da minha beleza gótica agora ou nem? Eu também preciso levantar o meu auto-estima porque eu tô meio deprê de morto hoje.

DUDA
É claro que eu consigo, seu lindo, gostoso, bonito e lacrador! Meu fedorentinho mais cheirosinho do mundo. Meu nascer e meu pôr do sol, a razão das vezes que eu arrepio aqui dentro desse lugar. Você é um foda, Johny! Um foda, foda, foda, foda, foda! Mais suicida do que foda!

JOHNY
Hum. (pausa) Arrasou.

DUDA
De nada.

JOHNY
Beijinho de longe.

(longo silêncio; eles ficam incomodados com o silêncio sem assunto; Johny olha para o céu)

JOHNY
Por que será, né?

DUDA
Por que será o que?

JOHNY
Porque será que a gente se enxerga assim? O que diabos aconteceu que você consegue me ver desse jeito?

DUDA
Olha, se prepara que eu vou ser romântica porque você já sabe de toda verdade... 

JOHNY
Vai, fala, Duda.

DUDA
Porque a gente deve se ver pra sempre. Pra sempre, lembra? Acho que é isso. Só pode ser isso. Uma conexão entre eu e você. Eu sempre soube que havia uma ligação entre nós dois, eu falava pra você, mas você não acreditou. 

JOHNY
Eu não acredito nessas paradas. Não de amor... (misterioso) Se não, as coisas podiam ser diferentes...

(silêncio; Duda recupera o humor)

DUDA
E se depender de mim eu vou aguentar essa sua chatice até o dia em que você não aparecer mais,que você sumir. Porque eu sei que um dia isso pode acontecer, de de repente você desaparecer da minha vida.

JOHNY
Ou você também. Existe a chance de você desaparecer primeiro também. Por motivo de ter que ir viver.

DUDA
Ou você! Quem garante? Com você tem mais mistérios sobrenaturais, ninguém sabe como será o dia de amanhã.

JOHNY
Os mistérios são idênticos, mas você tem mais chances. Tem o mundo lá fora desse lugar esperando você, tem um monte de coisa que acontece na vida da gente.

DUDA
(finalizando) Eu vou sempre estar aqui, Johny. Você sabe bem como é aqui dentro. Eu me sinto presa nisso tudo com você, por algum motivo. 

JOHNY
E eu... por lei uma natural, sem perspectiva, pelo mistério da morte. 

DUDA
Quer apostar que você vai sumir primeiro? Desistir, ou desaparecer. Eu tenho certeza disso. Nos filmes é assim. Uma luz vem e te busca.

JOHNY
Não tem nada de luz, besteira isso.

DUDA
Tem sim. Veja "Ghost". É muito lindo aquele filme. Você já viu?

JOHNY
Lógico que já vi. Mas não tem nada a ver. Cadê a musiquinha bonita e nós dois fazendo um vaso de barro?

DUDA
Nessa parte ele tava vivo ainda.

(Duda liga uma música bem melancólica e sai dançar sozinha pelo palco)

JOHNY
Adoro essa música.

DUDA
Eu também adoro.

(silêncio; eles curtem o som por um tempo)


CENA 1.1

DUDA
Por quanto tempo será que...? Ai, que vida lazarenta! 

(silêncio)

JOHNY
Por quanto tempo será que o quê?

DUDA
Deixa pra lá.

JOHNY
Agora fala.

DUDA
Por quanto tempo vai ser assim? Esse mesmo acontecimento. Não reclamando, perguntando mesmo, sabe? Eu fico aqui filosofando que é o que tem pra fazer nos dias de hoje.

JOHNY
Por quanto tempo vai ser assim como?

DUDA
Assim. Eu e você se encontrando nesse cemitério. Essa maluquice toda. Essa cena. Você já pensou o quanto isso é louco, cara? O mundo inteiro buscando resposta sobre isso, um monte de guerra acontecendo, e tô eu aqui conversando com você, como se isso fosse uma coisa normal. Assim, normal, manja? A gente tá esperando o quê?

JOHNY
É. Você tem razão. Não é uma boa ideia uma menina essas horas por aqui. Quando você for embora, não entre em becos escuros e se você por um acaso ver um homem de longe você já corre. Corre. Qualquer homem. Melhor que você esteja errada e de que era um homem normal e você só passar vergonha, do que você estar errada e ser um maluco. Ouviu? 

DUDA
Não é disso que eu tô falando. Não tenho medo de nada, Johny. 



JOHNY

Ah, vai nessa. 



DUDA

(ri) Besta. Eu tô perguntando sério. Eu tô tendo crise de ansiedade. Quero dizer sobre o que vai ser disso? 

JOHNY
Disso o que?

DUDA
Essa amizade, conexão, sei lá o quê. Até onde chega? Eu não gosto de viver na surpresa, sabe? Surpresa me incomoda. Eu precisava saber até quanto vai durar. 

JOHNY
Você quer saber quanto tempo vai durar essa nossa relação, gata? Por quanto tempo nos amaremos loucamente mais do que chuchu dá em cerca, nessa nossa relação sobrenatural em cemitério com música punk gótica moderna de gente jovem? 

DUDA
Exatamente. Da nossa forma! Desse seu jeito!

JOHNY
Ah... bom... Ah... Sei lá. (lesado brincando) Pra quê pensar nisso, bicho? Curta o som.

DUDA
É foda ouvir "sei lá". Pra que pensar? Realmente. Eu queria conseguir não pensar. Eu sou muito ansiosa porque eu sou de gêmeos. Faz todo sentido.

JOHNY
Talvez seja somente isso mesmo, Duda. Só isso mesmo. Sem certeza. Eu e você aqui. Sem pensar no que vai vir, no que vai acontecer. Pensar no que tá acontecendo. Olha que legal! Ainda estamos aqui. E estamos aqui agora de novo. E veja! Estamos aqui ainda. E ainda.

DUDA
Até você não aguentar e sumir da minha vida! 

JOHNY
Mas você quer que eu te dê um prazo de validade, sua louca? Eu também não tenho como saber quando você vai deixar de me aguentar. 

DUDA
Você que não vai me aguentar!

JOHNY
Eu aguento o quanto eu quiser! A minha amizade que eu tenho por você sempre foi maior que o mundo! Duvida?

DUDA
Eu que aguento mais que você! Nada a ver isso. Eu tenho certeza que eu aguento mais. É super diferente, eu e você. Porque no meu caso você foi o amor da minha vida, lembra Johny?

JOHNY
Vai querer disputar quem aguenta mais e quem ama mais, é isso? Amor de amizade também é amor, Duda. Eu topo uma disputa de vida e morte com você. 

DUDA
Demorou. Tô dentro já. 

JOHNY
Então beleza. O primeiro a desistir do pacto vai ter que pagar um castigo.

DUDA
Que tipo de castigo?

JOHNY
Sei lá. O primeiro a abandonar o outro vai ter que... hum... deixa eu pensar...

DUDA
Correr do túmulo de Jesus gigante até o outro lado, perto daquele túmulo que tá quebrado que dá pra ver o caixão dentro, lá em baixo. 

JOHNY
Não, eu tinha pensado em algo mais dramático. Tipo...

DUDA
Furar o dedo com uma agulha?

JOHNY
Mais de amor, Duda! Mais de amor! Uma coisa romântica trágica.

DUDA
Cantar uma música?

JOHNY
Dar um tiro na própria cabeça.

DUDA
O que? Você ficou maluco?

JOHNY
Eu acho justo o castigo de um abandono ser um tiro na cabeça. Em suicídio. Você não acha? Se eu te abandonar você não acha que eu mereço dar um tiro na minha própria cabeça, Duda? Fala a verdade. Você ia querer que eu fizesse isso. Só de raiva. Não ia?

DUDA
É, eu ia ficar bem nervosa mesmo. Tá. Tudo bem. Você tem razão. Acho justo.

JOHNY
Mas tem que ser suicídio. Ninguém pode matar o outro, só suicídio. Ninguém mata por amor, não existe isso. Um suicídio por amor e por palavra de amor é diferente. É ficar com tanta culpa que você se abdica da própria vida pra pagar essa culpa. Tem que ser uma promessa de suicídio. O primeiro que desistir tem a obrigação de se matar. 

DUDA
Mas... espera um pouco que você está me trolando! Peraí. (pensa) Mas e você, seu safado? 

JOHNY
O que tem eu?

DUDA
Como seria? Um tiro na cabeça funciona com você? Você tá tentando me enganar, Johny! Seu vagabundo! Você já tá morto, seu bosta!

JOHNY
Se eu desistir eu me mato, se você desistir você se mata. Simples. Um tiro na minha cabeça ia explodir a minha cabeça também. Eu sou duro também, esqueceu? Tem matéria física incompreendida e desconhecida aqui na minha cachola. O que vem depois ninguém sabe também, só isso. 

DUDA
Será que dá certo mesmo? Olha lá, Johny...

JOHNY
Ué, deve dar. Eu quase morro de fome, de sede. Tenho vontade de cagar. É tudo igual como na vida real, morrer. Não tem muita diferença na rotina. A diferença é que chamaram de morte um acontecimento específico que me desencarnou de um corpo feito de carbono. Mas se eu continuo aqui, oras. Eu continuo aqui, vivo. Você não tá me vendo?

DUDA
Hum. Tá bom. Pode ser, então.

JOHNY
Apostado?

DUDA
Idiota. (estende a mão) Não sem um aperto de mão. 

JOHNY
(olha para a mão dela por um tempo) Não faça isso de novo. (ele sai)

DUDA
É brincadeira! É brincadeira, Johny! Onde você vai?

JOHNY
(em off) Fazer xixi. Mas eu já disse que eu não quero que você faça mais isso. Isso me deixa muito cabreiro.

(ela fica sozinha em silêncio bebendo o vinho; quando Duda termina de beber, ela quebra a garrafa na quina do túmulo; Johny retorna e ela esconde o caco de vidro)

JOHNY
Pronto. Não quero mais você tentando uma chance de se encostar em mim, Duda. Eu já falei mil vezes que dói, Duda. Você não tem noção o tamanho da dor. Melhor seria que fosse como é em "Ghost", ou até no Gasparzinho que eles até se beijam e tals. (pausa) Quem que inventa essas regrinhas todas, hein? Puta bobeira.

(silêncio)

DUDA
Por que você teve que ir, hein, Johny? Eu não queria que tivesse sido assim...

JOHNY
Eu tava apertado, meu. 

DUDA
Mas eu podia ter te desapertado. A vida é assim.

JOHNY
E como você teria me desapertado, garota?

DUDA
Com a minha companhia. Com a minha beleza.

JOHNY
Sério? E como a sua beleza ia desinchar minha bexiga?

DUDA
Do que...? Ah, eu estava falando de sua grande partida, besta. Eu estava sendo melancólica e dramática. Entra na minha brisa, Johny, caramba! Do seu primeiro suicídio que eu tava falando.

JOHNY
E eu tava falando do xixi.

DUDA
Mas eu bem que podia ter te desapertado, poeticamente falando. Afrouxado a sua vida com carinho mesmo que só de amiga, já que você não me quis. Assim você nem teria feito o que fez e a gente não precisava estar aqui.

JOHNY
"Me desapertado, poeticamente falando". Aham. Não é tão fácil assim segurar a marimba, Monamour. A gente já falou um monte sobre isso, Duda. Eu não escolhi sentir aquilo que eu senti. E depois perder as pessoas, você sabe como eu não aguentei ter que perder alguém... Não veio uma bula pra gente lidar com a vida quando a gente nasce. E nem tem bula também depois que morre, viu. Vai se preparando que é tudo a mesma merda, o mesmo medo de morrer de novo, o mesmo medo do que vai vir depois. O medo de perder as mesmas pessoas de novo e de novo e de novo...

DUDA
É isso que eu quis dizer. Exatamente isso. Eu não teria te deixado. Você não teria me perdido nunca se tivesse me escolhido como sua namorada. Eu ainda estaria aqui.

JOHNY
Você não sabe. Merdas acontecem. Você pode se apaixonar lá fora, tranquilamente, de um segundo pra outro também.

DUDA
Até parece! 

JOHNY
E perder o amor por mim também seria facinho. Às vezes eu sou bem chato.

DUDA
Ah, isso é mesmo! Insuportável, às vezes.

JOHNY
Bem de vez em quando.

DUDA
De vez em quando em um único dia, né? Duas, três, sete vezes por dia.

JOHNY
Besta.

(eles riem; silêncio)


CENA 1.2

(a Morte sai de seu lugar e atravessa o palco lentamente; Johny vê e tenta disfarçar o medo)

DUDA
O que foi, Johny?

JOHNY
Chiu. Fique quieta.

(silêncio; a Morte sai)

DUDA
Era ela?

JOHNY
Era.

DUDA
O que será que ela quer, hein? Vagabunda. Olha o cheiro! Agora eu senti.

JOHNY
Eu tenho uma impressão...

DUDA
De quê?

JOHNY
Nada.

DUDA
Agora fala.

JOHNY
Ela olha muito pra você. Ela passa olhando pra você. Quando você tá aqui ela aparece com mais frequência.

DUDA
Credo, idiota. O que você quer dizer com isso?

JOHNY
A morte está atrás de quem tá vivo, bonitona. Você é a viva aqui. Talvez ela queira você.

DUDA
O que? Pra quê? Mas eu não fiz nada!

JOHNY
Talvez seja isso. Quem não faz nada a morte busca, morte natural. Ela persegue, reconhece, se assiste morrendo e depois leva. E eu que fiz merda fico por aqui, preso, ninguém me busca, ela vira as costas pra mim. Ninguém me toca, ninguém me vê, ninguém me busca. É tão complicado, não? Essa vida e essa morte.

DUDA
É nada.

JOHNY
É sim. Complicadíssimo. Eu esperava realmente que fosse ter um descanso. Que eu fosse descansar.

DUDA
Eu não sou tão chata assim, vai. Descanse aí. Deite. Vamo olhar as estrelas. Ou minha companhia é insuportável?

JOHNY
Não mesmo. Você é fodona. Eu só tô brincando, lindona. Brincando de góticos no cemitério e melancolia com vinho barato. 

DUDA
E fantasmas de verdade como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.

JOHNY
E fantasmas de verdade como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. Porque realmente é. 

OS DOIS
Que loucura. 

(eles brindam e ficam um tempo em silêncio)

JOHNY
Sabe por que eu acho que você vai desistir primeiro? Porque você precisa desistir primeiro. Porque eu tô torcendo pra você desistir primeiro. Não faz sentido essa continuação.

DUDA
Eu juro que não! Eu tenho certeza que eu não vou desistir de você. Eu que duvido que você vai continuar por muito tempo, vai saber o que espera essa sua pós morte. A gente não sabe de nada! Isso tudo tá acontecendo e eu não sei de nada e você não sabe de nada! Eu vou vir pra sempre, mesmo sem você aqui, igual as pessoas fazem, pelo menor. Chega desse papo, Johny!

JOHNY
Pra sempre quando? Quanto é pra sempre?

DUDA
Toda a minha vida, até eu ficar velha gagá. 

JOHNY
E depois da morte você vai esquecer?

DUDA
E depois sei lá, Johny. Você sabe? Se você sabe que eu vou ficar aqui com você então me conta pra me aliviar. Pergunta lá pra sua amiga fedorenta. Pra sempre é enquanto eu puder. Enquanto você quiser.

JOHNY
E por que, Duda? Por que? O que tanto eu tenho que você ficou até hoje? Até depois de tudo aquilo.

DUDA
Você não tem nada. Talvez seja isso. Eu também me sinto presa a você sobrenaturalmente falando. E não sei dizer o por quê.

JOHNY
Você precisa desistir de vir. Ela vai voltar e te pegar.

DUDA
Por que ela não pode ter aparecido para pegar você, hein? Por que eu? Pode ser você a próxima vítima pós morte dela porque ela veio de buscar porque agora você aprendeu alguma lição, sei lá. Pode ser outra pessoa por aí, também! Um monte de gente vem aqui, o bar do Bob é ali na esquina. 

JOHNY
Ela fica te olhando. E ela já me disse. Eu não sou caso para ela. O que aconteceu comigo não é da jurisdição dela. 

DUDA
Ah, é? Ela disse, é? E você é o diferentão por quê?

JOHNY
Porque minha morte não foi natural. Foi natural? Não foi.

DUDA
Só por isso, então? Tem essas regrinhas que ninguém sabe.

JOHNY
Só por isso mesmo. Tem várias regras sobrenaturais que a gente não sabe mesmo. O que você quer que eu faça?

DUDA
O que você quer que eu faça?

(longo silêncio)

DUDA
Só se eu também... por exemplo, se eu também experimentasse...

JOHNY
Você também experimentasse o que, Duda?

DUDA
Seria uma boa ideia. Acabaria com os meus problemas financeiros, minhas preocupações com a sociedade...

JOHNY
Do que que você tá falando?

DUDA
Se eu também... (ela faz algum gesto de suicídio)

JOHNY
(se irrita quando entende) Nem pense em pensar uma coisa dessas, sua retardada! 

DUDA
Nossa...

JOHNY
Nunca mais pense nisso, Duda! Nunca mais! Prometa! Prometa, Duda! Você não sabe bosta nenhuma de como é essa merda!

DUDA
Calma, Johny...

JOHNY
Era brincadeira esse negócio de suicídio! Eu já falei que não é pra você pensar nessas coisas! Não quero mais você falando isso e não quero mais esse tipo de brincadeira, ouviu? Eu sei que você tem essas paranoia. A gente não sabe como é que funciona essa merda, Duda!

DUDA
Tá bom, Johny! Tá bom! Ai, que nervosinho.

JOHNY
Você é idiota, Duda. Tem hora que só fala merda. 

(Duda tira o caco de vidro do esconderijo; Johny não vê)

JOHNY
Não sabe diferenciar quando é coisa de brincadeira e quando é coisa séria. Pelo amor, Duda, pelo amor. Não é a primeira vez...

DUDA
Johny...

JOHNY
O que?

DUDA
Seria legal, vai. Eu e você, morando aqui. É muito descolado. (ela aproxima o caco do pulso) Cada um tem a sua vida e faz o que bem entender com ela.

JOHNY
Não, Duda! Eu não quero! Pare com isso! Largue isso. 

(a Morte entra e brinca ao lado de Duda)

DUDA
Por que, Johny? Pense bem. Me impeça, encoste em mim. A gente pode quebrar as regras do sobrenatural se a gente quiser! 

JOHNY
Se você não parar com essa merda eu vou embora e eu não volto mais. Eu tô falando.

DUDA
Aí você vai ter desistido por primeiro. Bundão. E vai ter que dar um tiro na própria cabeça!

JOHNY
Eu não me importo! Largue isso se não eu vou. Eu tô falando, Duda. Eu vou embora e não volto nunca mais. Eu nunca mais apareço pra você, com vela ou sem vela!

DUDA
Duvido. Você me ama. 

JOHNY
Eu to falando bem sério, Eduarda. Jogue esse caco fora agora. Eu odeio você, Duda! Eu odeio quando você faz esse tipo de brincadeira! Pare com isso agora!

DUDA
Não é brincadeira! (quase chorando) E quer saber de uma coisa? EU vou embora. EU! Eu desisto de você! Seu... seu... seu viado! 

(a Morte pausa a encenação com um controle remoto)

MORTE
Viado não é mais um termo que deva ser usado como xingamento. Ser um viado, no sentido que é falado como xingamento, não é motivo de chacotas e/ou que deva haver ofensa. Viados são ótimas pessoas, como todo mundo pode ser. E o termo, no sentido pejorativo da palavra, deve ser limado das nossas brincadeiras porque estamos no século XXI e somos seres pensantes. 

(a encenação retorna e a Morte sai)

JOHNY
Você não vai embora porcaria nenhuma, Duda! Joga esse caco fora e vamo parar com essa merda de brincadeira idiota.

DUDA
Eu vou! Vou embora agora nesse instante! Estou oficializando o seu abandono, Johny. Estou te abandonando primeiro, Johny. Eu nunca mais vou voltar porque encontrei outra companhia lá fora, uma companhia viva que é muito melhor e mais interessante do que essa bizarrice que eu nem posso dar um abraço em você.

JOHNY
Besteira sua. Volta aqui, Duda! Chega dessa bosta!

DUDA
Tchau pra sempre, Johny! E eu tô falando super sério dessa vez!

JOHNY
Duda!

(Duda vai sair, dá meia volta e retorna)

DUDA
Pronto. Desisti primeiro. E como eu sou uma pessoa que cumpro promessas eu vou me matar porque eu acho justo por eu ter partido seu coração, Johny. Que meu castigo por isso seja o suicídio. 

JOHNY
Ai, Duda, faça o favor de parar de ser criança!

DUDA
Meu castigo é... (coloca o caco no pulso). Eu perdi a aposta.

JOHNY
Duda! Para de ser idiota! Brincadeira é brincadeira. Jogue esse caco. E era com um tiro na cabeça a nossa aposta. Pode parar. 

DUDA
Pra mim não tinha nada de brincadeira. Eu levo muito à sério as promessas que eu faço. É tudo por amor, lembra, Johny? Pelo compromisso. Você sabe que comigo é oito ou oitenta. E foda-se se é com tiro ou cortando o pulso! Foda-se!

JOHNY
Duda, caralho! Para! Você tá me assustando, porra. 

DUDA
Mas o que é que tem, Johny? O que é que tem? Eu sempre quis me matar mesmo. A gente sempre quis se matar! E só você pode? Por que só você pode? Eu já tô pensando nisso já faz tempo. Quem sabe o que pode acontecer? Pode ser que a gente fique aqui pra sempre. Acendendo velas. Olhando as estrelas pela janelinha desse túmulo. 

JOHNY
Ou pode ser que não.

(silêncio)

DUDA
Eu estou decidida.

JOHNY
(sério) Eu não quero presenciar isso. E eu te juro, e você sabe que eu cumpro, que eu não vou voltar nunca mais pra te ver se você fizer isso, não vou fazer o mínimo de esforço, você pode fazer a festa de velas que eu não venho! (sai)

DUDA
(larga o caco) Johny! Eu larguei! Johny! Já pode voltar! Johny! Volta! Eu já larguei o vidro!

(silêncio)

DUDA
Johny! Eu já larguei! Era brincadeira! Johny! Eu não ia me matar! Eu sou uma bundona, Johny! Johny! Você sabe que eu sou uma bundona! Era uma trolagem, seu idiota! Johny! 

(longo silêncio)

DUDA
Eu não acredito. Toda vez essa mesma encenação. Minha e dele. Ele faz esses joguinhos comigo e depois não aguenta quando eu retruco. (pausa) Eu sempre soube que ele ia me abandonar primeiro por qualquer coisinha que eu fizesse. Homem é diferente de mulher no amor. Eu ficaria com ele do jeito que eu sempre fiquei, mesmo por qualquer coisa que ele fizesse na vida. A gente é sempre mais idiota que o outro. 

(a Morte entra comendo uma barra de chocolate)

DUDA
Nossa. Que cheiro de chocolate misturado com... merda! 

(a Morte tira uma foto de Duda e sai tranquila; Duda se assusta com o flash)

DUDA
O que foi isso?

(num projetor aparece a foto)

DUDA
Acho que vai chover. (pausa) Caralho de solidão e de ser rejeitada no amor.

(música clássica sobre uma solidão melancólica)

(black-out)


CENA 2

(Johny se prepara para fazer suas necessidades fisiológicas ao lado de algum túmulo; com um rolo de papel higiênico e um saco plástico; ele confirma se não há alguém por perto e se agacha)

JOHNY
(canta) Que um carinho fosse
Sentir alguém
Um abraço apertado, rostinho colado
Que você não tem

Que carinho que fosse, um tantinho que fosse 
Tava bom pra mim
Um amor sanguinário, que aguente o diabo
Que fosse assim

Que um carinho... Fodeu! Fodeu!

(ele se assusta com a entrada de Duda e se arruma antes que ela veja o que ele estava fazendo)

DUDA
O que fodeu? Johny? Eu ouvi.

JOHNY
O que?

DUDA
O que fodeu? Que você falou?

JOHNY
(coloca a roupa) Nada. Tenho vergonha que me vejam cantando só. 

DUDA
Bobeira. Você canta mó bonito. E já que estamos vivendo e presenciando toda uma situação de vida pós morte, eu sinto um certo tom empírico em sua interpretação para a palavra "fodeu". 

JOHNY
O que seria um tom empírico?

DUDA
Principalmente da forma que você disse o "fodeu". Eu senti algo com mais profundidade, digamos assim. 

JOHNY
Como assim profundidade?

DUDA
Romanticamente falando. Ouso dizer que seu "fodeu" tenha sido por motivos mais existenciais. Pelo tom que você falou. 

JOHNY
Ah. Bom. Por que eu fiz uma cagada. 

DUDA
Metaforicamente falando, claro.

JOHNY
Na verdade não.

DUDA
Não? Como assim?

JOHNY
Sim, na verdade sim. Eu fiz uma bela de uma cagada na minha vida.

(silêncio)

DUDA
É nada. Foi do jeito certo que era pra ser. Fica de boa. Você volta. Eu volto. A gente briga. Eu vou embora, você vai embora. E assim seguimos. É o amor.

JOHNY
Eu nem posso tocar em você, porque eu sou... 

DUDA
Um fantasma? Mas eu posso te sentir. Aqui. Dentro. E a gente tá aqui falando sobre merda igual antigamente, igual sempre, igual todo dia. Isso é amor de verdade sim.

JOHNY
Quando você fala assim...

DUDA
O que?

JOHNY
Eu penso como eu fui um besta. É uma cagada atrás da outra, todo santo dia...

DUDA
Eu é que fui azarada, né. Porque fui eu quem fiquei e tive que aguentar o tranco de ser a rejeitada. 

JOHNY
Culpa de quem?

DUDA
De você, realmente.

JOHNY
Foi mal.

DUDA
Foi péssimo. De quais coisas da lista é esse seu pedido de desculpa?

JOHNY
De não ter conseguido ficar com você... porque você é menina.

(silêncio)

DUDA
Bom, agora você não está com mais ninguém. Eu sei que é cruel, mas me conforta não ter concorrência.

JOHNY
Eu sei que te conforta, sua vaquinha. Mas podia ter sido diferente.

DUDA
Eu sou só uma amiga. Eu sei, Johny. Eu aceito isso. A amiga apaixonada pelo amigo gay.

JOHNY
A gente não escolhe com quem a gente vai se interessar, você sabe muito bem disso. Bem que eu pudesse conseguir, seria muito mais fácil.

DUDA
Eu sou a melhor pessoa para dizer isso. Bem que eu pudesse conseguir. Na verdade, em certa forma a gente até escolhe de quem a gente vai gostar, sim, mas o duro mesmo é conseguir "desescolher", não é? 

JOHNY
Você tem toda razão.

DUDA
É igual no Sonho de uma Noite de Verão. Eu amo você, você ama ele...

JOHNY
Só faltou ele amar você, colega. Imagine o barraco de novela. Só que o morfético não me amava e nem você. É a vida que segue, não é mesmo?

DUDA
Sorte a minha. Ele não faz muito o meu estilo. E nem o seu, viu. Você sempre mereceu coisa melhor, tipo euzinha. 

JOHNY
(ri) É. É verdade. Sua boba, maravilhosa. (silêncio) Me desculpa não ter escolhido você enquanto deu tempo.

DUDA
É claro que eu te desculpo, besta. Ainda mais que porque agora só eu posso ser companhia pra você. Olha que privilégio esse meu.

JOHNY
(sério) Isso não é legal, Duda. Que egoísta.

DUDA
Eu sei. Mas eu já sou bem legal com todo mundo e principalmente com você. Às vezes é bom a gente dizer o que a gente realmente sente, e nem sempre isso é legal pra todo mundo.

JOHNY
Você não se sente mal? De eu estar com você por segunda opção assim? Você sabe que se eu pudesse, eu estaria vivinho com ele, casadíssimo no papel, tentando adotar filhotes e fazendo a linha tradicional, não sabe não? Ouvir isso não abala nem um pouco esse seu amor que diz sentir desde sempre por mim, Duda? 

DUDA
Não. 

JOHNY
Como você é do tipo... normal.

DUDA
Eu ficaria com você do jeito que fosse. Eu não sei explicar.

JOHNY
(ele ri sem graça) Eu ainda acho que você vai desistir por primeiro, de qualquer forma.

DUDA
Nunca. É você quem vai. Eu não voltei? Você nem me ama tanto mesmo, tem todos os motivos do mundo pra sumir, e há mistério da sua vida pós-morte. Mas eu não ligo. Eu sou sua companheira principal agora, a única que ainda lembra e se importa com você, você querendo ou não.

JOHNY
E se eu quiser que você vá embora?

DUDA
Nem a morte vai nos separar, Johny. Pode ir tentando!

JOHNY
Ao menos que você morra naturalmente. Aí você vai pra outro caminho, talvez. Se for com uma morte natural.

DUDA
Você tem certeza dessas bizarrices aí? E pra sua informação, poeticamente eu já morri duas vezes, Johny. Uma quando eu te conheci e não pude ter você...

JOHNY
Ai, meu deus do céu...

DUDA
... e não pude ter a chance de ser alguém que pudesse trocar o amor com você, porque "mamãe, papai, família, amigos, eu sou o cara gay do rolê". Eu nunca quis ser sua amiga, você sabe disso, e eu não sei o que eu vejo em você, seu desgraçado.

JOHNY
E qual foi a segunda vez poeticamente que você morreu?  

DUDA
A segunda foi quando eu vi você naquele caixão. 


(silêncio)

JOHNY
Já que estamos falando sobre merda e sobre morte, poeticamente falando eu também já morri uma vez antes da morte oficial. 

DUDA
Quando?

JOHNY
Eu também morri quando eu fui o rejeitado. O dia que eu perdi ele de vez.

DUDA
E veja como são engraçadas as coisas. A sua perda foi a minha sorte. O mundo é horrível mesmo.

JOHNY
Isso não é nada bom. 

DUDA
Pra mim foi super bom. Super. Se não fosse do jeito que foi, eu não teria você aqui comigo só pra mim, sendo a sua única opção. Você ainda estaria com ele, como você diz.

JOHNY
Eu nem consigo me lembrar como foi que ele me deixou. Lazarento. Você lembra, Duda? Eu só me lembro da dor da perda, da dor da certeza que eu não ia mais poder ter ele na minha vida, que raiva... Essa certeza... ele deve ter sido um lazarento.

DUDA
Ele beijou uma menina. Eu já te falei. Pelo que você falou você perdoou ele e mesmo assim ele quis terminar. Ele quis ficar com a menina. Vocês tinham quantos anos? Onze? Doze? Segue em frente, Johny, que saco.

JOHNY
Eu não lembro disso. Eu não lembro de nada. Eu lembro de pouca coisa. Só do sentimento...

DUDA
Ele te abandonou e eu fui a única que ficou do seu lado.

JOHNY
Eu fiquei depressivo por quatro anos inteiros depois disso? Até me matar.

DUDA
Quatro anos depois você veio aqui nesse mesmo cemitério e se suicidou. O que eu pude fazer? Depressão maldita. Eu até acho que te entendo. Fim da história.

JOHNY
E o recém viado aqui ficou o viado solitário perdido numa vida gótica real e crises existenciais românticas demais... para existir alguma história qualquer de esperança...

DUDA
É verdade. E graças a isso, eu estou aqui com você. Poderia ser ele sentado aqui. Mas sou euzinha. É assim que as coisas devem ser, eu acho. Isso é bom. Pra mim é bom.

JOHNY
Que coisa mais horrível.

DUDA
Chega desse papo, Johny! Cansei.

(silêncio)

JOHNY
É engraçado como a desgraça de alguns é a felicidade de outros, né?

DUDA
É engraçado demais.

(silêncio)


CENA 2.1

(a Morte entra, atravessa o palco e cantarola na saída)

MORTE
O coração de um ser humano é um romance, uma cena de um filme, um quadro não falado, a delicadeza do olfato!

(sai gargalhando e jogando flores)

JOHNY
Vagabunda! Andando por aqui onde não tem uma alma viva para levar. O que é que você quer? Volta aqui! 

DUDA
Ei! Tem duas almas vivas aqui, Johny! Eu e você. Vivinhos, vivinhos. Porque tá existindo esse nosso diálogo, porque a gente tá aqui, gatinho, a gente tá aqui! Não tá?

JOHNY
(ri) Eu disse alma viva. Você que acabou de dizer, gatona: todos nós morremos várias vezes. Mortinhos, mortinhos. Porque quem garante que esse diálogo é real, será que a gente realmente tá aqui, gatinha, será? Será?

DUDA
Ah, você tá bêbado, a gente sempre se confunde nessas nossas metáforas poéticas...

JOHNY
E góticas. (pausa) A menos que ela esteja atrás de você mesmo, Duda.

DUDA
E de mim por que?

JOHNY
Eu já disse. Meu caso é outro esquema. O seu eu já não sei.

DUDA
Eu ainda não morri de vez, foi só no modo de dizer.

JOHNY
Talvez seja por isso mesmo.

DUDA
Isso não faz sentido nenhum.

JOHNY
Se acostume. Nada faz. Nem depois de morrer. Nem bêbado. Não há o "descanse em paz". Não tem nada disso. 

(eles ficam em silêncio; Duda tira uma carta do bolso)

DUDA
Olha. É pra você. Eu escrevi ontem.

JOHNY
É uma carta de despedida?

DUDA
Não. Por que seria de despedida, idiota? É uma carta de amor, das minhas romantices.

JOHNY
Mais uma, Duda? Eu não tenho mais lugar no túmulo pra guardar. 

DUDA
É o que eu posso fazer. Eu não posso te tocar. Me deixa te falar palavras bonitas então. 

JOHNY
Então fale. Eu não gosto de ler, você sabe disso.

DUDA
Eu morro de vergonha. E você sabe que eu gosto de escrever. É tudo tão ridículo o que eu tenho pra falar, soa tão brega, que no papel fica mais bonito, dá pra desenhar coraçãozinhos sangrentos.

JOHNY
E pra que? Porque você coloca um coraçãozinho mal pintado no cantinho isso fica mais romântico do que se você simplesmente falar, é isso? Pfff... que bobeira.

(silêncio)

DUDA
Você às vezes consegue ser bem chato, viu.

JOHNY
Muito mais do que nós dois imaginamos.

DUDA
Você é muito chato, Johny!

JOHNY
Eu sou! E aí? O que vai ser? Vai desistir agora?

DUDA
Não. Você é muito chato e ingrato, Johny! O problema dessa bosta de história é que eu te amo mais do que eu mesma. E agora? O que eu faço? Corto os pulsos? O que? Você pensa que é uma delícia aceitar que eu vou ter que amar pro resto da vida alguém que ao menos me agradece pela companhia? Eu amo você e to fudida, porque vai ser só isso.

JOHNY
Você tem sorte se esse seu amor durar só pela vida. Porque o meu me atormenta até na morte.

DUDA
Você não precisa me dizer o quanto ama ele, Johny. Isso me mata tanto. Por que você faz isso comigo? (ela se irrita) Você é um babaca, Johny! Eu não sei como eu posso te amar tanto depois de tudo ainda que você vive me falando. E te implorar como eu sempre implorei! Durante toda a vida, desde que te conheci, virei seu comparsa. Virei seu colega, seu confessionário, tudo porque era a única forma de eu ficar do seu lado. A amiga do gay! (pausa) Eu não preciso que você fale do seu amor por ele o tempo inteiro. Não é justo comigo, cara. Vamos só ficar sentado aqui pra sempre, fim. (pausa) Até que algo surja pra que isso mude.

JOHNY
Até que algo surja pra que isso mude. Eu digo, eu não tenho escolha de estar aqui. Você tem. Por isso você vai ser a primeira a desistir de mim. Você talvez ame alguém por aí, pode acontecer um monte de coisa.

DUDA
(ri) Você não sabe de nada. Eu me sinto presa também. (pausa) É engraçado, você fala de um jeito que parece que de certa forma você precisa de mim. De algum jeito. E no fundo eu sei que é claro, você precisa de alguém pra conversar. Eu sou a única que vem te ouvir, então tá tudo legal, você precisa de mim por conveniência. Mas eu gosto de ficar imaginando que você sempre vem porque também me ama, que eu sou na verdade o grande amor da sua vida, sua alma gêmea e que você está e sempre esteve só iludido com ele. (ri) Eu sou uma boba, não? Coisas de coração depressivo. 

JOHNY
Eu queria que fosse essa a verdade. Juro que hoje eu queria. Mas eu sempre gostei de meninos. O que eu posso fazer?

(longo silêncio; Duda chora discretamente)

JOHNY
Você sempre foi uma boa amiga, Duda. Desde que eu te conheci. Você sabe que eu te amo muito. Muito mesmo. Você é mais que uma irmã.

DUDA
(ri triste)

JOHNY
Você não acredita, mas é verdade.

DUDA
Eu acredito, sim.

JOHNY
Você riu.

DUDA
Eu ri porque eu queria ouvir outra coisa de você.

JOHNY
Eu sei que queria. Me desculpa. Mas nem todo amor tem de ser do mesmo jeito. Meu amor por você tem todo um tamanho.

DUDA
E qual é?

JOHNY
Bem grande. Bem grandão. E eu reconheço que você é dez vezes melhor que ele. Dez vezes melhor, e ainda me ama. Mas a gente não escolhe pra quem vai ser canalizado aquela coisa que a gente não explica. Eu não sei por quê eu amo ele. Como você não sabe por quê me ama.

DUDA
Está certo. Não sei por que a gente tem de discutir isso toda vez. Eu aceito te amar assim mesmo, sozinha. Pra sempre e que se foda. Isso é mais do que gótico e romântico.

JOHNY
É nada. Você vai me abandonar um dia.

DUDA
Não vou. Eu juro.

JOHNY
Vai desistir.

DUDA
Eu não vou! Eu nunca vou conseguir!

JOHNY
Claro que vai. Eu sei que vai, mas tudo bem.

DUDA
Para Johny. Para de ser besta! Eu já disse que venho pra sempre. 

JOHNY
Duvido.

DUDA
Mas que chato, meu deus!

JOHNY
Sou chato mesmo. E você que ama um cara que é um fantasma feito sabe-se lá do quê, que se matou por outro cara por rejeição amorosa. A louca aqui é você. 

(Duda fica sentida; se aproxima dele e bate em seu rosto; um barulho de explosão e iluminação; Johny cai e grita com muita dor)

JOHNY
Você não pode me tocar! Ai, caralho! Isso arde demais! Puta que o pariu!

DUDA
Você acertou, Johny! Venceu! Eu perdi a aposta. Vou desistir. Vou desistir e vou embora. (pega as suas coisas) Ai, eu tô caindo. Mas eu vou!

(silêncio; ele fica assustado com a ideia)

JOHNY
Vai nada.

DUDA
Eu vou mesmo. Eu desisto. Pronto. (pausa) Adeus, Johny. Eu nunca mais vou voltar e agora é verdadeiramente o fim de tudo. Eu juro por tudo! (sai)

(Johny fica sozinho olhando por onde ela saiu; ele se levanta e espera ela voltar; ele olha para o relógio; por um longo período Johny fica apenas esperando Duda voltar)


CENA 2.2

JOHNY
Tá atrasada de novo. Odeio quando isso acontece. Odeio.

DUDA
(entra) Quer saber? Você também é minha segunda opção! Pronto. Que se foda. Vou ficar onde eu quiser porque o Brasil é um país livre e eu tenho o direito de ir e vir. Quer que eu traga a Constituição de 1988? 

JOHNY
Chega de criancice, Duda. Senta aí e chega de paranoia. 

DUDA
Eu deveria cumprir aquela nossa aposta e dar um tiro na minha cabeça de uma vez. Só de raiva.

JOHNY
Onde você vai achar um revólver, sua tonta?

DUDA
Se eu me matar aqui no cemitério eu eternizo a minha vida do seu lado, Johny. Olha só que legal.

JOHNY
Mas isso não faz sentido. Você desiste uma hora de ficar comigo, depois quer eternizar sua vida aqui do meu lado. Você é muito bipolar. 

DUDA
Eu tenho que vir aqui te agradar, te fazer companhia nessa sua vidinha de cemitério, e ainda ter que ficar aguentando o seu romance gay que não deu certo? Você é um ingrato, Johny! Eu deveria ir embora e nunca mais voltar de vez mesmo. E te deixar realmente sozinho. Sozinho, sozinho. (senta vencida)

JOHNY
Então vá! Vá embora, porra! Eu não to prendendo ninguém! Nunca nem pedi pra você vir, Duda. Qual é seu problema? Se quiser ir pode ir. Vai. Vai, Duda! Cala a boca um pouco, pô.

DUDA
Eu não consigo. Eu amo tanto você.

JOHNY
Ah! Que bosta! Vá tomar no cu, Duda! Eu quero que você vá embora. Vá embora, por favor! Eu não posso te amar, eu vou amar outra pessoa pra sempre e vou falar sobre esse meu amor. Porque afinal ele era o meu amor e é dele que eu quero falar! Talvez na outra vida, quem sabe? Mas eu não posso te oferecer o que você precisa, eu nunca pude.

DUDA
Eu só preciso poder olhar pra você, tá bom? Poder ver você sempre. Vamos deixar tudo como é pra ser, vai. Chega de briga. Eu te aceito mesmo você não me querendo.

JOHNY
Você é boba demais, Duda.

DUDA
Sou mesmo. E você um chato de galocha.

(a Morte entra varrendo)

MORTE
Chato pra caralho! Só complementando. (sai)

DUDA
(gargalha) Quem disse isso? Foi ela? Eu ouvi a voz dela, cara!

JOHNY
Foi. Foi ela sim.

DUDA
O que será que ela quer, meu deus?

JOHNY
Me encher o saco, pelo visto.

DUDA
Eu tô começando a gostar dela. Ela ainda está aqui?

JOHNY
Não. Foi ali naquele mausoléu.

DUDA
Onde?

JOHNY
Ali. Parada. Tá olhando. Tá olhando pra você.

DUDA
Pra mim?

JOHNY
É.

DUDA
Você está tentando me assustar com isso.

JOHNY
Não estou. É verdade. Ela fica olhando. Por que será que ela não vem me buscar logo? Fica só olhando pra você. Nem liga pra mim.

DUDA
Eu sabia. Você quer ir embora, né? Quer desistir primeiro.

JOHNY
Você já desistiu primeiro várias vezes, se liga.

DUDA
Mas eu volto! Você não acredita mesmo que eu nunca vou desistir de voltar, né, Johny? Eu falo de me matar só pra ver sua reação, seu bobo. Não dá pra ter certeza se eu ficaria aqui junto com você ou se rolaria outra coisa dessas regras do sobrenatural. A gente não sabe de nada mesmo, não dá pra arriscar.

JOHNY
Eu só não entendo porque ela não vem me buscar. Não me leva pro céu ou pro inferno, ou pra puta que o pariu.

DUDA
Você disse. Ela não te buscou por que ela gosta de matar, e como você...

JOHNY
Eu sei. Eu sei.

DUDA
Daí você vai passar a eternidade aqui nesse cemitério. E euzinha.

JOHNY
Como foi que tudo isso começou? Chegamos num ponto difícil de acreditar.

DUDA
Você não lembra?

JOHNY
Um pouco.

DUDA
Você podia ter escolhido outro lugar pra ter se matado, né? Daí a gente estaria na eternidade, por exemplo, num parque de diversão. 

JOHNY
Ou numa balada. Eu caguei mesmo.

DUDA
Mas se bem que aqui era o nosso lugar. O de sempre. Morar do lado de um cemitério tem suas vantagens.

JOHNY
Eu nem lembro como foi que eu fiz.

DUDA
Fez o que?

JOHNY
Como foi que eu me matei.

DUDA
Eu estava aqui com você lembra?

JOHNY
Lembro. Lembro de duas garrafas de vinho. Por que duas? Com uma a gente sempre encharcava o globo. Tinha duas aquela noite?

DUDA
Vinho e cemitério. Nós sempre gostamos disso. Não lembro se tinha duas garrafas, Johny! Se tivesse que bom!

JOHNY
É.

DUDA
Daí você pegou um caco e se matou. Na minha frente. 

JOHNY
Foi assim, foi? Eu quase nem lembro de nada da vida, só de um sentimentos.

DUDA
Sim. Cortou os pulsos. Foi muito cruel.

JOHNY
E o que você fez?

DUDA
Nada. Não é possível que você não lembre. Você já tinha me avisado, lembra? Que estava pensando em fazer isso.

JOHNY
Disso eu me lembro.

DUDA
Daí eu disse que eu queria também.

JOHNY
E eu te proibi de se matar comigo. 

DUDA
(mentindo) Sim. Proibiu, proibiu.

JOHNY
Não lembro direito. E o que aconteceu depois que eu me cortei?

DUDA
Ai, eu também não lembro muito bem. Eu chamei a polícia, todos choramos e foi triste. Aí eu vim um dia trazer umas flores e recitar uma poesia e te reencontrei vivinho da Silva, mas morto. Não é demais? Só eu. Eu já te contei essa história uma caralhada de vezes. 

JOHNY
Como foi o velório?

DUDA
Ai, meu deus, Johny, por que você quer saber agora?

JOHNY
Porque sim, ué. Pode falar. Tinha muita gente?

DUDA
Tava todo mundo. Sua mãe, seus irmãos. Aquela sua tia artista, sabe? Tava lá também, chorando horrores igual na novela.

JOHNY
E ele?

DUDA
(ela se irrita um pouco) Ele não foi.

JOHNY
Não?

DUDA
Não.

JOHNY
Mas...

DUDA
Não foi! Ele seguiu a vida dele quatro anos depois, né? Vocês eram crianças quando se conheceram, Johny! Não quero mais conversar. Eu preciso ir.

JOHNY
Ir onde?

DUDA
Pra casa. Mais tarde eu volto. Tchau, Johny. Eu volto logo.

JOHNY
Tchau. Eu amo você, viu.

DUDA
Eu também. Amo demais. (sai)

JOHNY
Tem algum sentimento que eu sinto que não tá encaixando. Acho que a Duda tá mentindo pra mim.

(a Morte se aproxima ameaçadoramente à Johny; ele fica apavorado; grande tensão)

MORTE
Curte jogar truco?

JOHNY
Eu não sei jogar.

MORTE
Puta, que merda, hein, garoto! Deixa quieto, então. Vou perguntar pra aquela amiguinha ali se ela quer jogar comigo. (sai) Olha o ônibus, garota!

(Johny observa a Morte sair; fica pensativo. Logo percebe que a "amiguinha" que a Morte se referia é Duda)

JOHNY
Não. Não! Duda! Cuidado, Duda! Cuidado! (sai desesperado)

(Black-out; som de freada de carro)


CENA 3

(Duda está deitada morta; a Morte entra contente e a cobre cantando)

MORTE
Morra, menininha!
Não vai mais crescer
Você agora é minha
Eu vou te comer
Não deixe que o outro
Te jogue pra trás
Sim, Morra, menininha
Você é má demais

(Black-out)

(o corpo coberto ainda está no palco)

DUDA
(entra irritadíssima) Filha da puta! Desgraçada! Eu estou morta! Eu não acredito! Eu não acredito! Morte natural! Tragédia! (pausa; ela sente um arrepio) Cacete de sensação! 

JOHNY
(entra) Vai se acostumando. Essa sensação de morte é pra sempre. É tipo um arrepio, não é? Eu não acredito que ela realmente fez isso, no fim das contas. Eu tava certo, viu?

DUDA
Então é assim, é?

JOHNY
É, colega. Daí pra pior.

DUDA
Eu não acredito! Eu não acredito! Por que ela fez isso, Johny? Por que? Eu estava bem vivendo. Eu não acredito!

JOHNY
Ué, não era você quem queria se matar agora pouco com o caco de vidro, garota gótica?

DUDA
É diferente.

JOHNY
Diferente o que?

DUDA
Eu vou ter que ficar presa aqui nesse cemitério agora? Até quando? Hein? Eu não acredito! Eu tinha tanta coisa pra fazer. Eu tinha a minha vida lá fora além disso aqui.

JOHNY
Você não quer mais ficar aqui comigo, Duda?

DUDA
(ela o encara)

JOHNY
Não?

DUDA
Você não vai entender. Ah! Agora nada importa! (pausa) Eu não acredito nisso, Johny. Eu não esperava isso. Eu não podia morrer agora. Tinha mais coisas... tinha outras coisas...

JOHNY
Eu não to entendendo mesmo. Você queria ficar comigo pra sempre agora pouco, e agora tem a oportunidade. E está aí toda desesperada só porque morreu.

DUDA
Você tá reclamando da minha falta de interesse? Agora isso tá importando pra você, Johny? Esse primeiro momento de baque que, por um instante, fez desaparecer aquele amor que eu tanto falava, tá te incomodando? Qual é? Nem tudo gira em torno de você.

JOHNY
Eu só quero saber o que aconteceu!

DUDA
Eu morri, Johny! Eu morri! É muito difícil! Tá sendo muito esquisito!

JOHNY
Eu sei muito bem. Desculpa.

DUDA
Então me deixa melhorar. Espera eu me recuperar.

JOHNY
Tudo bem. Eu deixo, eu espero.

(silêncio)

DUDA
O que foi que aconteceu comigo?

JOHNY
Um ônibus. Escolar. Aqui na saída do cemitério. Rosto desfigurado. Você morreu já na batida antes do ônibus passar por cima de você. Aí não teve cicatriz. Olha que sorte. Seu rosto ainda está lindo e perfeito. Foi até que meio parecido com o filme do Nicolas Cage e da Meg Ryan. 

DUDA
Só que a gente não se amava loucamente e a gente não transou antes de eu morrer.

(Duda se senta exausta e muito nervosa; Johny observa em silêncio. Duda fica pensativa, às vezes murmura assustada e desesperada, tremendo em chiliques. Ela fica por um bom tempo refletindo)

JOHNY
Quando você terminar, você me chama. Eu vou ali e...

DUDA
Não. Espera. (ela está nervosíssima; desesperada) Não me deixe sozinha. Fique comigo. Eu amo você. Amo mesmo. Sempre amei. Você me entende, né? Eu sou uma pessoa que ama as pessoas. Amo demais. Amo mesmo. Eu juro que amo. E... e... às vezes a gente faz cagadas na vida por amar demais. Você me entende? Diga que entende, por favor.

JOHNY
Um pouco.

DUDA
Johny, diga que me entende. Por favor. Diga.

JOHNY
Eu te entendo. Fique calma, Duda. Fique calma. Eu não vou fugir de você. A gente se gosta. É um bom momento pra gente ficar junto. Ficar junto pra sempre, fazendo companhia um pro outro, amando um o outro, falando mal do meu ex. Era o que você sempre queria, não?

DUDA
Não. Era. Eu não sei.

JOHNY
Não sabe? O que aconteceu? Você tava quase se matando por mim, Duda. O que aconteceu?

DUDA
Não é tão legal agora. Agora que eu posso.

JOHNY
Como assim?

DUDA
Eu também não sei. (pausa) Perdeu a graça, sei lá. Eu sou meio estranha, Johny. A gente é tudo cheio de coisa estranha na cabeça. E tem tanta gente que eu deixei pra trás... ah, meu deus! Eu sempre fui uma covarde.

JOHNY
O que é que tá acontecendo? Eu estou aqui, Duda. Agora eu acho que podemos nos tocar. E você nem quis me dar um abraço.

(Johny a abraça, ela não se mexe)

DUDA
Eu sou uma pessoa boa, Johny. Nunca fiz nada de mal. Nunca. Nunca quis o mal pra ninguém.

JOHNY
Eu sei...

DUDA
Não, não sabe! Você nunca vai saber!

JOHNY
Tente ficar calma!

DUDA
Eu fiz merda, Johny. Diz que me perdoa. Eu não quero ir pro inferno. Como vai ser agora?

JOHNY
Você não vai pro inferno.

DUDA
Vou sim. E você vai pro céu, eu sei. Você é um cara legal. Eu não podia ter morrido agora, eu tinha que fazer coisas boas pra compensar as ruins antes de morrer!

JOHNY
Do que você está falando, Duda?

DUDA
Eu amo todo mundo, Johny! Eu não amava só você. Tinha gente que eu amava que ficou pra trás.

JOHNY
Você estava namorando, Duda? É isso? Lá fora?

DUDA
Você mesmo disse que talvez eu me apaixonasse de novo. Eu amo você. E eu podia me apaixonar por outra pessoa, porque... porque eu não podia te tocar e eu precisava me apaixonar. Simplesmente porque eu precisava me apaixonar. Ter alguém pra chamar de meu. Não, eu não tava namorando ninguém, Johny. Mas eu não tava no momento de não namorar mais ninguém nunca mais por toda vida! E agora ele está lá fora, nem sei se foi no meu velório. E eu nem sei se ele existe ou quem é.

JOHNY
É tão triste essas coisas. Agora que é a única opção eu queria tanto que você quisesse ficar só comigo

DUDA
Eu queria tanto que as coisas fossem mais simples. 

(silêncio)


CENA 3.1

(a morte entra)

MORTE
Essa menina tá cagada, rapaz!

DUDA
Vá se foder, sua cadela! Olha o que você fez comigo!

MORTE
Ela que cagou em você, garoto. (sai)

JOHNY
O que será que ela...?

DUDA
Não sei! Eu não sei! Não me pergunte mais nada.

JOHNY
Como assim você cagou em mim? (ri) É engraçado.

DUDA
Chega, Johny!

JOHNY
O que será que ela quer dizer?

DUDA
Aquela galinha desgraçada está gagá. (gritando) É uma vaca que me matou cruelmente e tragicamente! Sua vaca desgraçada!

MORTE
(entra) Escuta aqui, vaca é sua mãe! É o meu trabalho, sua ordinária! Você queria que eu viesse aqui fazer o quê? E, minha filha, primeiro lugar, você devia ter lido a tal história que te inspirou. Assistir só o filme não serviria mesmo pra conseguir chegar numa ação tão grandiosa, porque o Leonardo DiCaprio só mereceu o Oscar depois de muitos anos de prática, ouviu bem, queridinha? O final romanticamente surpreendente do clássico amor shakespeariano, minha querida, era outro. O nome daquilo era assassinato! (sai)

DUDA
Cale essa boca!

MORTE
(em off) As-sas-si-na!

JOHNY
Duas garrafas de vinho. A gente nunca precisou de duas garrafas...

DUDA
O que foi, Johny?

JOHNY
Não eram garrafas de vinho. Era uma garrafa e a outra era...

DUDA
O que foi, Johny? Pare de delirar. Ela quer me colocar contra você, é isso.

JOHNY
(ele se lembra) Ah. Não pode ser.

DUDA
Johny, o que foi?

JOHNY
Não fale nada.

(ele sai determinado)

DUDA
Onde você vai? Johny?

(ele volta puxando a Morte)

JOHNY
Me mostra! Me mostra como foi!

MORTE
Tá falando do quê, companheiro?

JOHNY
Do dia da minha morte! Me mostra!

MORTE
Hum. Adoro quebrar a linha de tempo e espaço pra resolver problemas não solucionados e quebrar paradigmas sociais. (ela tira o controle remoto do bolso e aperta um botão)

(Black-out)


CENA 4

FLASH-BACK

(Duda está sentada no tumulo com uma garrafa pequena)

DUDA
Como é difícil acordar toda manhã pensando em nós dois. Eu só quero uma história bonita de ser lembrada. De ser escrita. De ser falada. 

JOHNY
(entra) Salve, salve, delicinha!

DUDA
Salve, bonitão!

JOHNY
Chegou faz tempo?

DUDA
Cheguei faz tempo. Você que tá atrasado pra cacete.

JOHNY
Desculpe. Atrasei lá em casa. 

DUDA
Meninos...

JOHNY
Bora comemorar?

DUDA
Demorou.

(Johny tira uma garrafa da mochila)

JOHNY
Tá aqui.

DUDA
Só uma?

JOHNY
Ué, e daí?

DUDA
Eu pensei que fosse pra nós dois.

JOHNY
Porra, Duda, uma garrafa dá pra encharcar legal. Num dá, não? Eu só conseguir trazer uma. E temos outro propósito: tentar de novo a comunicação com ele. Tomara que hoje dê, né? Eu trouxe as velas também e o livro dos espíritos pra gente fazer umas orações.

DUDA
É. Tomara que hoje dê certo.

(silêncio)

DUDA
Já faz tempo, né?

JOHNY
Já.

DUDA
Quanto tempo já?

JOHNY
Quase quatro. Vai fazer quatro anos.

DUDA
Nossa. Sempre parece que foi ontem.

JOHNY
É, parece.

(silêncio)

DUDA
Você devia seguir a vida, Johny.

JOHNY
Eu sei. Eu não consigo. Eu quero tentar a comunicação com o além. Porque eu acho possível. Eu sei que ele está por aí em algum lugar.

DUDA
Já faz tanto tempo que a gente tenta.

(silêncio)

DUDA
Ele gostava muito de você.

JOHNY
Eu sei. Mas a gente prometeu, lembra? Que depois de morto a gente se encontraria aqui. Acontecesse o que acontecesse nós nos encontraríamos aqui. Tá acesa as velas, porra.

DUDA
Vai ver ele atravessou antes. Foi pra luz. Ou não existe jeito de comunicação mesmo...

JOHNY
Não existe jeito! Quanta gente a gente já não viu aqui, hein? A gente sempre viu as coisas. Eu, você e ele. Sempre. Você já viu sua vó uma vez, não viu? Aquela vez, que você falou!

DUDA
Eu acho que vi.

JOHNY
A gente sempre encharcou o caneco aqui, sempre no mesmo túmulo, sempre nós três, Duda. E o que a gente sempre disse? O que a gente sempre dizia? “Quem morrer primeiro, volta aqui pra falar como é que é morrer” E cadê? Cadê o filho da puta? E aí ele desaparece da minha vida morrendo de um ataque cardíaco com treze anos de idade - quem que morre de infarto com treze anos de idade? - , depois de ter feito eu me apaixonar por ele, e aí nunca mais aparece pra nem me dizer pelo menos um adeus, nem em chapação de bêbado. Mesmo tendo prometido. (quase chora; pausa) Por que ele nunca apareceu, Duda? Eu to esperando há quatro anos. Fica parecendo tipo um sentimento de rejeição, não fica? Eu sei que existe o outro lado. Eu sei que existe. Eu acho que ele que não quer. 

DUDA
Não é rejeição não, Johny. As pessoas morrem, todo mundo morre. A morte do Cadu foi uma tragédia pra todo mundo. Eu também tô aqui esperando com você, Johny. Você não precisa me falar nada. Eu só acho que a gente devia tentar seguir com a nossa história, você era muito novinho ainda...

(silêncio)

DUDA
Pode ser que quando a gente morre a gente se esquece das coisas da vida por isso ele nunca mais voltou. Ou pode ser um monte de coisa! Velas insuficientes, talvez! Não é rejeição, disso eu tenho certeza. São as nossas despedidas da vida que sempre serão dolorosas igual. 

(silêncio)

JOHNY
Duda, eu já disse que eu gosto muito de você?

DUDA
Eu também gosto muito de você, Johny.

(silêncio)

JOHNY
Você tem sido uma boa companheira, sabia?

DUDA
É nada. Eu sou uma chata.

JOHNY
Imagina. Eu que sou um chato.

DUDA
Eu que sou.

JOHNY
Vai querer disputar quem é mais chato agora, é?

DUDA
(pausa) Tá bom. Você venceu.

JOHNY
Ótimo. (pausa) Ei! Não tão chato também, né?

DUDA
Só um pouquinho.

JOHNY
Bem pouco.

DUDA
Só porque vai fazer dezoito primeiro. 

(eles se olham; ela o beija)

JOHNY
(ri sem graça) Por que fez isso?

DUDA
Desculpa. Me deu vontade.

(Johny retribui o beijo; eles riem)

JOHNY
Demorou pra isso acontecer, hein?

DUDA
Muito. Demorou muito.

(eles dão risada e se beijam de novo)

JOHNY
Mas... (ri bobo) eu... que engraçado!

DUDA
O que é engraçado?

JOHNY
Nós dois... assim... sei lá... (ri)

DUDA
(ri) Foi estranho?

JOHNY
Não. (pausa) Foi... bom demais.

DUDA
(ri contentíssima; quase chora de emoção) Sabe que eu tenho ensaiado para esse dia desde sempre?

JOHNY
Ah, não é pra tanto, vai.

DUDA
Por que? Fui meio amadora?

JOHNY
Não. Eu já disse que foi incrível. Por isso que eu estou... meio assim. Estranho. Por que a gente nunca fez isso antes?

DUDA
Isso o que?

JOHNY
Nos beijar.

DUDA
Eu pensei que você ainda amasse o Cadu. (aponta pro túmulo) E você ainda é gay, não é?

JOHNY
Eu ainda amo, Duda. E muito. Por isso eu gosto de vir aqui. Ele foi embora na hora errada da minha vida. Eu me apaixonei daquele jeito que parece que nunca vai passar. (pausa; Duda fica cabisbaixa) Mas isso não impede que eu ame outra pessoa.

(a Morte entra e pausa a cena rapidamente)

MORTE
Biologicamente falando seres humanos são todos seres bissexuais. Repito: biologicamente falando 
seres humanos são todos seres bissexuais. O problema é a paranoia social, tanto a paranoia heteronormativa como também sim a própria homossexualidade que não deixa de ser limitada no extremo oposto. 

(a Morte sai e a cena retorna)

DUDA
Eu escolhi você, Johny. A gente escolhe, sim, quem a gente quer amar. E eu escolhi você. Mesmo tendo que ser vela pra você e ele num cemitério em pleno sábado à noite.

JOHNY
Desde quando, Duda?

DUDA
Desde... (ri)... lembra quando você me deu uma caixinha de giz de cera quando a gente tinha seis anos?

JOHNY
Mas isso foi... foi o dia em que a gente se conheceu.

DUDA
Pois é.

(silêncio)

JOHNY
Por que você nunca...?

DUDA
Ora, por que! Você gosta de meninos, esqueceu?

JOHNY
E você gosta de meninas também.

DUDA
Gosto nada. Eu gosto de você.

(eles riem)

JOHNY
Você devia ter me falado. Você é muito importante pra mim. É como uma irmã.

(silêncio; Duda não gosta do que ouviu)

DUDA
(quebrando o clima; um pouco irritada) Bom, vamos beber.

JOHNY
Ixi, demoramos!

DUDA
É.

(pausa; ele abre o vinho)

DUDA
Eu trouxe isso também.

JOHNY
Hum. O que é?

DUDA
Não sei. Roubei do meu pai.

JOHNY
Deixa eu sentir o cheiro. (ele pega a garrafinha, e cheira) Hum. Não sei. Não tem cheiro de nada. (toma um gole) Até que é gostosinho.

DUDA
É?

JOHNY
Aham. Experimenta.

DUDA
Ah. Quero um gole do vinho primeiro.

JOHNY
Tá.

(ela bebe o vinho no bico com certo nervosismo; longo silêncio; Johny bebe mais da garrafa pequena)

JOHNY
Nossa. Eu gostei disso. É fraquinho e deve chapar rápido.

(Duda fica cada vez mais nervosa)

JOHNY
Quer um gole agora?

DUDA
Hum-hum.

JOHNY
Ué, não vai experimentar.

DUDA
(ela olha para a garrafinha, quase pega mas desiste; de repente ela chora desesperada) Não! Eu não quero! Eu não consigo!

JOHNY
(se assusta) O que foi, Duda? O que foi?

DUDA
Eu não posso! Eu não posso!

JOHNY
Não pode o que?

DUDA
Não posso... (chora muito) Me desculpa. Me desculpa. Johny, diz que me perdoa. Diz.

JOHNY
Mas eu não to entendendo, Duda! O que é? Me fala.

DUDA
Só diz que me perdoa.

JOHNY
Perdoar do que?

(ela pára de chorar, ainda muito nervosa; olha para a garrafinha)

JOHNY
Me fala, Duda.

DUDA
Eu amo você, Johny. Se eu pudesse eu ficava com você pra sempre.

JOHNY
Mas quem disse que a gente vai se separar?

(a Morte entra com a câmera; os flashs são relâmpagos)

DUDA
Você pode conhecer outra pessoa e... (pausa) Me desculpa, Johny. Eu não posso.

JOHNY
Duda, você está me assustando. (Johny sente um mal estar) Uh. Me dá  um gole do vinho. (ela dá) Nossa. Chapei legal. (ele sente uma pontada no peito) Ai. Ai! (cai de joelhos) Duda... Duda!

DUDA
Me perdoa, Johny! Me perdoa!

JOHNY
Você... o que? Mas o que...? (ele cai)

DUDA
(o abraça) Johny! Me perdoa, bonitão! Por favor! Não era pra ser assim. Eu queria... eu queria ficar com você pra sempre. Eu queria... queria que a gente ficasse junto.

JOHNY
Eu...

DUDA
Eu te amo tanto, Johny. Mas... eu não quero morrer agora. (pausa) Eu também ia beber. Eu juro. Eu também ia beber o veneno.

JOHNY
Ah... eu...

DUDA
(ri insanamente) Lembra do Romeu, Johny? Você era pra ser meu Romeu. Você morre e eu morro junto. (pausa) Mas eu não posso! Me perdoa! Eu não quero morrer agora.

(tensão; Duda se levanta e se afasta aos poucos; Johny se contorce no chão; ela sai correndo; a Morte entra e senta em cima do corpo de Johny; ela abre uma Coca-cola)

MORTE
Adolescentes.

(Black-out)


CENA 5

(num foco aparece Johny, em outro, Duda; ao centro, escuridão)

JOHNY
Eu sempre pensei que meu castigo pelo suicídio era passar a eternidade nesse cemitério. A gente entra na realidade das nossas coisas. Aí, até que foi rápido, minha melhor amiga Duda apareceu e conseguiu me enxergar depois de morto. Eu um fantasma, ela uma amiga apaixonada desde sempre. E eu pensei que ia ser isso, sabe, eu até tinha quase que aceitado essa realidade, no fim das contas. Mas era tudo uma mentira. A gente lembra de pouca coisa e cai no conto das pessoas. Sempre. Desde sempre. Pra sempre. Eu não fui rejeitado, eu perdi o meu amor de forma natural, não devia ter que ter tanto drama assim, devia? Pra eu ter me matado de amor quatro anos depois? Como eu fui estúpido de cair nessa bobeira. Agora que eu sei que eu não me matei, e ainda continuo aqui nesse mesmo lugar, eu to começando a ficar um pouco desesperado sim. (pausa) Olha que tragédia essas pessoas ao nosso redor que ficaram vivas viveram! 

DUDA
Eu amo tanto as pessoas, sabia? Tem tanta gente que eu amava lá fora e que agora... (pausa) Eu amo de um jeito esquisito. Eu amo e quero só pra mim. Eu quero só pra mim! (pausa) Naquela noite eu queria contar uma história de amor. Imagina só que lindo, o jornal do dia seguinte com a manchete: "Jovem casal se suicida por amor no cemitério". (pausa) Mas... eu não tive coragem e aí já era tarde.

JOHNY
Eu fui assassinado! Dá pra acreditar? É estranho demais. Minha melhor amiga me matou em nome do amor que ela dizia que sentia por mim. E o castigo dela foi ser atropelada por um ônibus? É isso? É assim que funciona o carma? A justiça divina? É assim, é? (pausa) Agora eu acho que eu quero ir embora. Será que eu posso ir embora agora? Hein? Posso ou não? Já tá na hora de ir embora?

DUDA
Eu sei que ele não vai mais querer falar comigo nunca mais. Quem iria querer passar a eternidade com uma psicótica apaixonada como eu? Eu sou uma assassina e uma mentirosa. No caso, o castigo é a morte ou a rejeição no amor? (pausa) Eu só não quero ficar nesse cemitério sozinha pra sempre. Tudo menos isso, por favor! Qualquer coisa menos isso.

(o centro se ilumina; a Morte está anotando os depoimentos em uma prancheta)

MORTE
O castigo para quem mata é a solidão, moça.

DUDA
Mas vamos dialogar! Eu acho que deve haver democracia!

MORTE
A realidade não é democrática, minha amiga. A realidade é o que é. Não sou eu quem dito as regras.

(uma luz surge ao longe)

MORTE
Pronto, Johny. Você já pode ir. Chega de ficar sozinho. O tal do Cadu - menino bonito ele, robusto, parabéns pela escolha.

JOHNY
Obrigado.

MORTE 
Ele está te esperando faz tempo do outro lado, coitado. Pode ir. Do outro lado não tem sociedade pra encher o saco de casal gay. Vá ser feliz. 

(Johny passa por Duda, a beija na testa)

JOHNY
Eu só fiquei chateado de você ter mentido sobre o Cadu.

DUDA
Eu tinha ciúmes, eu... eu tinha ciúmes de vocês dois...

JOHNY
Mas eu acho que hoje eu entendo um pouco a dor do seu amor e a força que isso faz na gente. Eu sinto muito por tudo isso. Adeus, Duda.

(Johny sai)


CENA 5.1

MORTE
Seu azar não ser ele quem dita as regras também, né? Uma peninha.

DUDA
É esse o meu castigo, sua lazarenta?

MORTE
O quê? O perdão do seu amigo recém assassinado pelas suas mãos românticas e juvenis? É pouco esse perdão? Quer que eu chame ele de volta e conte pra ele que foi você quem matou o primeiro namoradinho de pré-adolescência dele? Quem morre de infarto aos doze anos de idade, Eduarda? Ninguém sabe o que você fez, mas eu sei. Você é uma causadora de tragédias, menina!

DUDA
E agora? O que é que vai ser disso então?

MORTE
(calmamente abre uma mala e distribui pelo chão ferramentas de tortura)

DUDA
O que é isso? Que merda é essa? O que você vai fazer?

MORTE
Olha pra tu vê.

(balança uma corrente com pregos na ponta e se aproxima de Duda)

DUDA
Não, por favor! Pelo amor de deus!

MORTE
Amor? Parece amor? Amor é outra coisa, minha filha! (avança pra bater)

DUDA
Nãããão!

(Black-out)


EPÍLOGO

(a Morte entra com a mala, retira a roupa preta e se lava com uma esponjinha. Se veste com uma tanga branca e retira da mala um par de asas sangrando na base. A mala se mexe e ouve-se um grito de um menino saindo de dentro; a Morte chuta a mala e o menino geme. Ela veste as asas, tira da mala um arco e flecha e sai contente)

FIM




(Escrito em 2011 / 1ª Edição em Setembro de 2016)



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