OS FISCAIS DE FODA (2013)

OS FISCAIS DE FODA

Personagens
Fagner
Jenyfer
Narração

CENA 1

(um foco apresenta os personagens caricatos; ambos com uma prancheta na mão)

NARRAÇÃO
Esses são Fagner e Jenyfer. A vida de Fagner e Jenyfer começou como a de todo mundo. Seus pais fizeram um sexo gostoso e ambos foram os espermatozoides mais rápidos. Eles cresceram e foram crianças normais e bonitinhas. E cresceram mais um pouco e participaram do mundo.

FAGNER E JENYFER
Pisamos em cima do nosso passado! O passado está pisado e contorcido embaixo dos nossos pés!

NARRAÇÃO
Aí, numa fase dessa existência, eles se perguntaram:

FAGNER E JENYFER
Pra que diabos serve isso? (riem)

NARRAÇÃO
“Pra que diabos serve isso?”. Eles se perguntaram milhares e milhares de vezes qual era o sentido daquilo tudo.

FAGNER E JENYFER
Pra que diabos serve isso?! Pra que diabos serve isso?! Qual é o sentido daquilo tudo? Como é que funciona toda essa parada?

NARRAÇÃO
E aí Fagner e Jenyfer estavam desolados com tantos “nãos”. Com a vida sendo difícil, como é pra todo mundo. Com o sexo aflorando na juventude, mas com uma sociedade que reprimia as suas necessidades fisiológicas.

FAGNER E JENYFER
“Fede pra daná, mas é gostoso
fede pra daná, mas é gostoso...”

NARRAÇÃO
A vida lhes proporcionou histórias e contrastes gigantes contra essa libertinagem dolorosa e de mau cheiro. Eles primeiro experimentaram, eles caíram na tentação do prazer... 

(Fagner e Jenyfer se agarram loucamente)

FAGNER
Sua fedida!

JENYFER
Você que é fedido!

FAGNER
Você, sua delícia!

JENYFER
Você é muito mais! Pega aqui.

NARRAÇÃO
E ele se chuparam, se comeram e se engoliram, numa noite depois de se conhecerem numa baladinha qualquer.

FAGNER E JENYFER
Ai, que delícia, puta que o pariu de gostoso que nós somos nós dois juntos!

NARRAÇÃO
E foi a única vez que eles transaram desde que começaram a namorar. Porque a vida colocou um muro virtual e trágico na vida dos dois.

(música de tragédia)

FAGNER E JENYFER
As pessoas! O que elas vão pensar? Sexo é tão... A mamãe. O tio Valmir. Os crianças da família. A bíblia. (pausa) Deus. 

NARRAÇÃO
(ri) Nós vamos mesmo ter que entrar nesse assunto, né?

JENYFER
Eu sou de uma família muito religiosa. Se for amor, então a gente vai ter que esperar.

FAGNER
Minha vó sempre foi muito católica. Eu acho que é amor. A gente pode esperar.

FAGNER E JENYFER
Eu acho mesmo que eu preciso crescer e me casar. E voltar às ideias da vovó porque a vida lá fora é cruel e mesmo sendo gostosa pra caralho fede pra daná.

NARRAÇÃO
Enfim. Deus surgiu em uma aparição nada sobrenatural, depois de um dia que usaram muito droga enquanto ainda discutiam a realidade da bíblia e seus ensinamentos. 

(Fagner e Jenyfer vêem deus; eles caem ajoelhados perante a aparição)

FAGNER
Estamos sonhando.

JENYFER
Você colocou alguma coisa naquela bebida.

(uma luz grandiosa faz eles chorarem de emoção)

NARRAÇÃO
Então, ambos acreditaram que a iluminação que aquele cara que está na cabine de luz ali fez, era deus.

FAGNER
Deus falou comigo num sonho, Jenyfer.

JENYFER
Comigo também, Fagner. E você estava no sonho comigo.

FAGNER
Sim, sim! Eu me lembro. Você estava no sonho comigo. E aquele cara da cabine de luz também estava. E todas essas pessoas. E alguém contava o que acontecia com a gente. Tipo uma narração.

JENYFER
O que isso significa, Fagner? O que isso significa?

FAGNER
É uma missão, Jenyfer. Quando você descobre uma grande verdade maculosa, esplendorosa, o que você deve fazer?

JENYFER
O que?

FAGNER
Espalhar pelo mundo a mensagem de deus.

JENYFER
Mas Fagner, tanta gente já faz isso! Quem vai dar ouvidos a dois idiotas drogados como a gente?

FAGNER
Idiota é você, sua imbecil! Eu sei muito bem do que tô falando. Deus apareceu pra mim e eu não quero mais discutir sobre isso. E isso não tem nada a ver com drogas! A gente pode usar isso como testemunho. O como deus muda a vida do viciado. Ele me mostrou toda a verdade que precisávamos saber. E não interessa o que você fala, porque só eu pra dizer como foi a sensação de trocar uma ideia com ele e do tamanho da grana que a gente podia ganhar com isso.

JENYFER
Eu também tive essa sensação, Fagner. Eu entendo você. Eu também vi deus ali escondidinho na cabine de luz. Mas como a gente vai fazer isso? E o pior...

(silêncio)

FAGNER
O pior o que?

JENYFER
Será que conseguiremos realmente...?

FAGNER
Conseguiremos realmente o que?

JENYFER
Manter-nos... esperar...

FAGNER
Como assim, idiota? Fala logo...

JENYFER
Porra, Fagner! Ai, deus, desculpa. (bate na boca) Poxa, Fagner. Deus apareceu numa hora da minha vida que eu tava desesperada, sabe. Você sabe, a gente tá na pindaíba, fodido de droga, fiquei perturbada. Só tava conseguindo dormir na base de remédio. E aí eu entrei em depressão porque eu tava me achando feia, e ninguém queria sair comigo. Eu cheguei a ficar dois meses sem meter com ninguém antes de te conhecer, Fagner, antes daquela noite! Sem praticar o ato sexual, digo. Nem boquete. E aí eu entrei na igreja naquela noite seguinte ao nosso encontro e foi aquilo que você falou e ele me salvou. Eu juro que salvou, Fagner. Juro, juríssimo que eu me sinto realmente acordada e salva. Eu não queria mais sentir aquela necessidade doida.

FAGNER
Comigo também foi assim. Mas do que você tá falando, Jenyfer?

JENYFER
Eu só queria saber se a gente consegue, Fagner! Será que a gente consegue ficar até o final desse espetáculo sem querer trepar? O casamento vai demorar um caralho de meses ainda. Ai, perdão pela palavra, senhor. Eu tô me acostumando ainda com a vida em santidade.

(silêncio)

FAGNER
Deus proverá força pra nós dois, Jenyfer. Deus proverá. Aí quando a gente casar vai ser tudo maravilhoso, tá bom?

JENYFER
Tá bom. Você promete?

FAGNER
Prometo, coração. Nós seremos exemplo para o mundo!

(silêncio)

NARRAÇÃO
Então, Fagner e Jenyfer viraram Cristãos. Eles, agora, queriam construir uma família cristã. Com quadros e tapetes cristãos. Com o nome de cristão tatuado na testa dos dois. Pra orgulhar a família, pra orgulhar a sociedade, pra orgulhar um cara que fica lá em cima (se exalta) só olhando pra gente e nos condenando o tempo inteiro pelas coisas que a gente nasceu com o instinto de querer! (se acalma) Não o cara da cabine. Deus, eu queria dizer.

FAGNER E JENYFER
Deus foi uma benção nas nossas vidas. Nós dois fomos usuários de drogas.

FAGNER
Eu cheguei a roubar algumas coisas. Vender aparelho doméstico da minha vó.

JENYFER
Fui presa uma vez por porte de entorpecentes.

FAGNER
Eu ia todo final de semana pra todo tipo de festa. Bebia, encharcava, fumava maconha. Transava com todas as meninas. Já cheguei a praticar até a homossexualidade, no auge da força do tesão.

JENYFER
E eu já dei por dinheiro. Às vezes em troca de uma bebida, um cigarro. Um bilhete único. Ou às vezes pela necessidade de chupar alguém, mesmo. Um absurdo!

FAGNER
Éramos obra da escória e do diabo no mundo.

JENYFER
Totalmente satânicos. O Fagner teve que dar embora um monte de CDs do capeta.

FAGNER
Eu tinha o vinil original do Raul, e um monte de coisa. Dei tudo embora, graças a deus!

JENYFER
E aí a gente se conheceu um dia que ficamos bêbados e chapados num baile funk. E dormimos juntos num banco de praça. E aí a gente teve o mesmo sonho. Que uma luz dali de cima vinha e nos falava que devíamos ser cristãos.

FAGNER
Uma coisa linda, que só vendo. E abandonamos o vício. Coisa linda. Depois daquele dia passamos a frequentar uma igreja maravilhosa que é benção de deus aqui na cidade.

JENYFER
Deus entrou na nossa vida pra nos livrar da morte e da prostituição! 

FAGNER
E da homossexualidade no auge da força do tesão.

JENYFER
E foi o nosso encontro que causou isso, Fagner. Nossa trepada pós balada abriu nossos olhos.

FAGNER
E quando a gente sabe de uma grande verdade, o que devemos fazer?

JENYFER
O que? O que?

FAGNER
Espalhar pelo mundo.

JENYFER
Mas Fagner e quem não estiver de acordo com as nossas opiniões?

FAGNER
Deve ser punido por atrapalhar a evangelização! E desconsiderado do livro secreto e divino que está nas mãos do senhor. Está escrito, Jenyfer! Está escrito! 

JENYFER
Há! Eu tive uma ideia!

FAGNER
Que ideia?

JENYFER
O que você acha de sairmos pelo mundo a fora caçando o pecado? Mostrando para as pessoas que elas podem sair das drogas! Que elas podem ficar sem fornicação. Que elas podem se tornar pessoas melhores porque a moral está no sexo e na sanidade, minha gente.

FAGNER
Ótima ideia, minha futura esposa. Assim poderemos nos conhecer melhor, sem nos perdermos no desejo sexual. Manter a cabeça ocupada é o caminho. E adorar o Senhor!


CENA 2

(Jenifer e Fagner sobem num comício)

NARRAÇÃO
Então, Fagner e Jenyfer se candidataram a vereadores. Entraram de cabeça na política e ganharam destaque por serem jovens com um ótimo testemunho antidrogas.

FAGNER
Iremos trazer decência para nossa sociedade! Mostrar pros nossos filhos que o futuro do planeta é na base da decência e moralidade!

JENYFER
Eu e meu noivo Fagner – sim, iremos nos casar muito em breve, minha gente –, nós dois iremos trazer benevolência e abundância de prosperidade de vida para essa sociedade, meu povo! Com a palavra que Jesus Cristo deixou para seus filhos escrito no pé da cruz e pela família.

FAGNER
Aleluia. E criaremos leis que apoiam a volta do senhor. Para que quando ele chegue, não tenha tanto trabalho e perca tantas horas no momento do julgamento final. Devemos limpar a sociedade da rapa para tirar o peso da cruz de Jesus, meus irmãos! É o mínimo depois do que ele fez por nós.

JENYFER
Jesus dizia, que assim como fazemos com um saco de batatas deveríamos fazer com o povo. Esmagar as batatas podres antes que essas apodreçam os escolhidos. Os vírus estão por aí, meus irmãos. O diabo age como um vírus nos nossos pulmões. Devemos fazer a escolha de nos vacinarmos com o sangue de Jesus ou não.

FAGNER
Esse vírus de satanás penetra a nossa alma com tanto afinco, que depois só Jesus pra conseguir resgatá-lo de novo. Eu sentia o diabo grudado dentro do meu coração antes de encontrar a salvação, meus amados. Ele tinha oito perninhas, igual uma aranha, assim, grudado no meu coração. Bem enfincado, sugando o sangue que deus fez correr pelas minhas veias. (pausa) Se eleitos, iremos esmagar essa barata que prende nossos corações, amados! Iremos impedir que o diabo tenha mais espaço nesse mundo!

JENYFER
Vote um sete, cinco, oito, doze, dezesseis para eleger Fagner. E sete, sete, oito, doze, dezesseis para me eleger, Jenyfer.

FAGNER
E agora iremos mostrar pra vocês, um novo departamento de fiscalização que estamos criando. Atenção, rufem os tambores.

(eles abrem um projetor; mostra-se um gráfico com uma porcentagem sobre pessoas que praticam o ato sexual na libertinagem envolvido com infelicidade)

JENYFER
Este é um modelo do projeto.

FAGNER
O que devemos fazer, meus amigos? Vejam, o destino do pecador é a total infelicidade. Devemos fazer com que esse ciclo...

(a imagem muda para um gráfico em relógio que apresenta um ciclo onde a libertinagem propaga libertinagem)

FAGNER
... que propaga a libertinagem pra dentro de nossas casas, sejam destruídos. Devemos fazer com que as novelas parem com essa mania de mostrar gente pelada, que isso atiça o instinto sexual das crianças nas nossas casas. Devemos impedir que livros e peças de teatro falem sobre o sexo como uma coisa natural. Pra que ninguém aprenda cedo que a libertinagem deve ser aceita e divulgada como algo bom e prazeroso. Devemos cuidar para que nossos irmãos e irmãs não caiam no vírus da promiscuidade, do vício, do assassinato, da prostituição, do tráfico de drogas e muito menos da homossexualidade!

JENYFER
Porque quando você deixa o sexo entrar, minha gente, as outras coisas de satanás entram facilmente. Se você pratica sexo, em breve você pode começar a fumar maconha e tudo o mais. E aí a coisa cai. Com as oito perninhas ele enfinca as garras no seu coração e daí já era. Você vira viado, drogado e espírita.

(a imagem muda; mostra-se um gráfico onde uma família cristã faz exemplo pra outra, e pra outra, formando outro ciclo)

FAGNER
Eis um ótimo exemplo de sociedade. Famílias felizes e normais. Ora ou outra nasce alguma criança com deficiência, manca ou cega, mas essas coisas são provação de deus, então devemos aceitar. Aí por exemplo, uma dessas famílias acontece de uma dessas crianças nascer bicha. Nascer não, né, porque não nasce. Mas desenvolve um jeitinho afeminado, pedindo coisas cor de rosa e querendo assistir filmes de princesas, por exemplo.

JENYFER
Como adultos bem estruturados e com a verdade da palma da língua, o que devemos fazer?

FAGNER
Devemos repreendê-lo iguais os ativistas dizem que acham que fazemos?

JENYFER
Não, meus amados. Devemos instruí-lo. Se ele assistir na televisão que homem pode namorar homem e isso é normal, ele vai achar normal e vai namorar homem um dia. Mas se mostrarmos para ele que isso é completamente errado e que deus está nos observando todo santo dia – e ele sabe até de nossos pensamentos! –, e mostrarmos que gostar de rosa é coisa de menina fazendo com que ele tenha envolvimento só com coisas azul, isso vai fazer com que ele em breve se torne um heterossexual cristão e bem sucedido.

FAGNER
Exato. Vejam:

(outra imagem: um desenho de um menino afeminado; ele vai mudando enquanto Fagner fala)

FAGNER
Vamos nomear esse menino da ilustração de Gayzinho. O Gayzinho desde pequeno faz coisas de menina. Brinca de boneca, de casinha, etc. Isso porque ele teve contado com um monte de primas e só um primo. De repente, você descobre que ele teve brincadeirinhas com o primo. Você os encontra dentro de um guarda roupa com o pipi duro. E aí você grita e põe os dois de castigo. E nunca mais fala sobre isso. Nunca mais você deve comentar sobre esse dia.

JENYFER
Você, como mãe, se for menino, você nunca deve comentar nada sobre sexo. Se for menina, você fala que quando menstruar deve usar absorvente.

FAGNER
Agora, se for menino, você, como pai, deve mostra-lo pra ele como ser homem e como cuidar da sua esposa e de seus filhos. E se for menina, beijo na testa e nada mais. (pausa) O que fazemos com o Gayzinho que insiste na homossexualidade?

JENYFER
Uma vez um pai nos disse que devia começar a mostrar fotos de mulheres peladas pra ele.

FAGNER
(ri) Também não, irmãos. Isso poderia o transformar num heterossexual promíscuo. Mas em último dos casos, antes hétero promíscuo que viado decente.

JENYFER
Tudo o que devemos fazer é priva-lo do mundo e orar, meus amados.

FAGNER
Ensiná-lo a orar.

JENYFER
Ensiná-lo a pensar que existem outras coisas muito mais gostosas como ficar do lado dos seus pais o tempo inteiro e ficar do lado de Jesus que morreu na cruz por nós.

FAGNER
E por fim, logo, o diabo cansa de segurar o coração do Gayzinho e o deixa viver em paz.

(vira a última página onde o Gayzinho está casado e com filhos)

FAGNER
E aí podemos seguir com a humanidade em tranquilidade e harmonia.

JENYFER
Mas e você nos pergunta: oras, vocês são homofóbicos? E os tais heterossexuais promíscuo? Vamos por partes. Primeiro os casos mais graves, agora iremos mostrar como curar um prostituto.

(abre se outra imagem; uma mulher tem vários homens)

JENYFER
Prostituta. Vejam. Essa mulher, vamos chama-la de Vadiazinha. A Vadiazinha tem quatro parceiros sexuais fixos, uma vez a cada quinze dias transa com um desconhecido. Ela é infeliz porque ela só os tem na hora do tesão. Ela não sabe que é infeliz, ela acha que a vida é uma delícia. Ela se acha uma mulher independente e sexualmente aberta. Mas essa é uma das armas do diabo, meus amigos. Engana com prazer.

FAGNER
A Vadiazinha já deu pro mundo inteiro. Até eu já comi a Vadiazinha na minha época de libertinagem. O que de ruim pode acontecer com a Vadiazinha por levar essa vida de prostituição?

JENYFER
Doenças, gravidez indesejada, infelicidade, nunca vai encontrar o verdadeiro amor.

FAGNER
Quem é que quer se casar com uma mulher que já deu um monte?

JENYFER
E o pior, a condenação.

FAGNER
O destino para o libertinoso é o fogo. Deus não deixou sexo ser prazeroso por nada. Ele deixou para que conseguíssemos nos provar dignos dele. É como uma charada. Só aquele que conseguir decifrar é que conseguirá a salvação. E aceitação também.

JENYFER
O que devemos fazer com a Vadiazinha?

FAGNER
Se a Vadiazinha ainda fosse criança e apresentasse jeitos de piriguete, teríamos de mostrar pra ela como o sexo é fedorento e asqueroso. E orar, também.

JENYFER
Mas e para adultos como nossa Vadiazinha? E se o Gayzinho conseguisse chegar na fase adulta começando a gostar de pênis? O que devemos fazer com esse vírus que ataca a nossa moralidade e ataca tudo aquilo que nossos pais e antepassados lutaram a favor. Felizes os antigos que se casavam cedo e não era permitido por lei, a promiscuidade.

FAGNER
A não ser dentro das casas próprias para a prostituição.

JENYFER
O que devemos fazer? Eu tô perguntando. Alguém sabe a resposta?

(silêncio)

FAGNER
Essa é uma questão muito complicada. Mas até agora ninguém trouxe uma solução para esse caminho promíscuo que o homem está seguindo. Temos que ajudar o bem maior, e devemos achar qualquer solução para ajudar Jesus a concluir sua missão. Mesmo que essa solução tenha de ser drástica.

JENYFER
Nós estudamos ao lado de teólogos e historiadores famosos e inteligentes, até chegarmos nessa conclusão. Vocês conhecem o Doutor Silas? É um grande psicoterapeuta brasileiro cristão. Há uns anos atrás foi muito criticado por uma posição homofóbica. Mas tudo o que vai de contra a esse tipo de gente, esses gays, é considerado homofóbico, então não dá pra dar crédito nesses ativistas.

FAGNER
Temos uma bancada imensa nos apoiando nesse projeto. É o Silas, o Valdomiro, o Marco, o Jurandir, o Jorge, o outro Jorge, a Ana Paula, o André, a Aline, a Joelma, a Mara, nossas avós, a vizinha, o Soares, o Samuel, o Édino, o Lincoln, o Bolsonaro, o Ganso, a Cláudia, o Miro. Uma porrada de gente! E imagine os desconhecidos! E temos uma porrada de gente por aí ouvindo sobre nós. Em breve seremos trilhões.

JENYFER
Já temos três horas de programação em uma rádio, estamos com um projeto de um programa de televisão e terminando de editar um filme sobre a nossa história. Nosso segundo filme que se chama: “A Libertação da Aranha de Satanás”. Fala de duas meninas lésbicas que viram super amigas e casadas depois de conhecer a palavra do senhor. É uma comédia baseada em fatos reais. Uma comédia leve.

FAGNER
Eu também estou com uma coluna na revista “Conservar”, que sai todos os meses e se encontra nas bancas. Lá eu dou dicas e testemunhos. Na saída, eu estarei vendendo exemplares. Temos também o DVD do nosso primeiro show como cantores em Salvador, na Bahia. E o DVD do nosso primeiro filme também.

JENYFER
As Rúbias de Salomão.

FAGNER
Que conta sobre como um homem se livrou da promiscuidade em nome do senhor. Foi um sucesso. E ouvi dizer também que uma peça de teatro roda o estado falando sobre a nossa ideia. Tá uma benção, isso tudo. O programa de TV talvez estreie em abril, e iremos dar dicas de culinária e orações para libertação.

JENYFER
Enfim, alguém consegue responder o que devemos fazer com Gayzinho adulto e Vadiazinha? O que devemos fazer com essas duas batatas estragadas na sociedade? Meu filho vai ver o Gayzinho de mão dada com outro Gayzinho e aquilo pode afetar um comportamento dele. Um comportamento que não nasceu com ele, mas que agora tá lá dentro da cabeça dele como um vírus. O diabo!

FAGNER
E a Vadiazinha vai vestir aquelas roupas pela rua, vai rebolar na cara da sociedade com aquela bunda de fora gostosa, e pode ser que isso atice minha sem-vergonhice masculina natural e me faça cometer adultério! E a culpa vai ser minha daí? Elas que precisam se respeitar, caramba!

JENYFER
Exatamente. Eu quero que meu marido viva num mundo de mulheres com respeito à nosso casamento.

FAGNER
E eu quero que meu filho coma meninas na adolescência, mas depois se case. E que minha filha menstrue só depois dos catorze. Alguém aí quer algo diferente pros seus filhos?

JENYFER
Enfim, o que devemos então fazer com Gayzinho e Vadiazinha?

FAGNER
Será que a gente continua deixando eles vivos? Eu sei, Jesus disse para amar o próximo. Mas e quando esse próximo já não tem mais jeito? Eu vou amar um bandido? Eu vou amar um estuprador?

JENYFER
Eu vou amar um homem que chupa o pênis de outro homem? Não, irmãos! Nós já tentamos aceitar esse tipo de coisa, mas não tem dado certo. Devemos tentar mais uma vez forçar a palavra do senhor! Forçar até que todos saibam a verdade maravilhosa que deus nos deixou!

FAGNER
Depois de muito estudo, e muita discussão sobre o assunto, eu e Jenyfer tomamos a liderança desse projeto. Ele está sendo discutido na câmara, mas com quase noventa por cento de chance de entrar. Eu vou ler uma parte do projeto: (ele abre um caderno) “De acordo com os fatos acima citados, fica estritamente proibido o preconceito por raça, cor, classe social, cristianismo, e outros afins. Para o bem da sociedade e da família tradicional, não apenas privaremos os homossexuais e os prostitutos e prostitutas, mas os iremos marca-los com tatuagem. ”

(luz de trevas; música grandiosa)


CENA 3

(Fagner e Jenyfer voltam para a pose inicial)

NARRAÇÃO
Esses são Fagner e Jenyfer. Eles não se tornaram deputados por nada. Eles não foram do tipo de apenas falar. Eles falavam e iam às ruas. Eles fiscalizaram pessoalmente cada canto do país. Os ativistas tentaram derrubá-los, mas Jesus Cristo foi mais forte mais uma vez e ressurgiu das cinzas. Houve um tempo onde os jornais e as mídias sociais criticavam a verdade do senhor. Mas assim como a fênix ressurge das cinzas, Fagner e Jenyfer dominaram a bancada brasileira e criaram a lei do amor divino aos irmãos e a lei contra o pecador.

(Fagner e Jenyfer tiram um homem da plateia)

FAGNER
Você. De pé. Aqui. Venha até aqui.

JENYFER
Como é seu nome? (pausa) Este é “Fulano”. Fulano diga pra todos qual é sua a idade.

FAGNER
Fulano, diga pra todos qual é a sua religião. (pausa) Agora, sem mentiras, por favor, diga para todos qual é a sua opção sexual.

JENYFER
(interrompe) Espere um pouco! Não nos fale. Vamos fazer o teste, Fagner.

FAGNER
Sim. Cor predileta? (ele aguarda as respostas) Filme preferido? Citação da bíblia preferida?

JENYFER
Time de futebol? Um livro? Você é casado? Casou virgem? Sabe dizer com quantas mulheres ou homens já transou? (se sim) Quantas?

FAGNER
Agora responda essa pergunta: você faz sexo quantas vezes por mês? (pausa)

JENYFER
Hum.

FAGNER
Bom, agora todo mundo aqui vai criar um conceito em cima de você, você sabe, né? Porque com a nossa vivência sexual as pessoas nos julgam. Você gosta disso?

JENYFER
Se você tem pênis grande ou não. Até isso passa pela cabeça das pessoas.

FAGNER
Você gosta disso? (para a plateia) O que é preferido? Ser um promíscuo ou ser um praticante mais ou menos? Nenhum dos dois! Se não é casado, não deve e não pode fazer sexo! Ao menos que for estritamente necessário, quando tiver com o saco doendo, e somente para o sexo masculino!

JENYFER
Entenderam, meninas?

FAGNER
O instinto masculino nos comprova que se você não for totalmente ativo na vontade sexual – mesmo que devamos recusar isso até o casamento – esse homem deve ser homossexual. Homem que é homem adora a vagina mesmo sem ter contato com ela.

(se a resposta do homem mostrar uma vida sexualmente bem ativa, eles o marcam por promiscuidade; se a resposta do homem mostrar uma vida sexualmente calma, eles o marcam por homossexualidade)

FAGNER
Você será condenado por ir contra as regras da boa moral e decência, e por fazer sexo sem consentimento divino.

(eles marcam o braço do espectador com um desenho)

FAGNER
Logo que sair daqui, você procura as autoridades que vão estar te esperando do lado fora, que eles vão te mostrar quais são os seus direitos perante sua sentença.

JENYFER
Em breve, transformaremos um mundo de paz e harmonia para os filhos de deus. E os outros que sofram as consequências de seus pecados.

(flash de fotos; eles acenam contentes para câmeras; música grandiosa)

FAGNER
Noventa por cento de aceitação do público, Jenyfer! Noventa por cento! Em breve seremos cem por cento. Essa pinta negra dos dez por cento em breve acabará, Jenyfer. Limparemos o mundo do vírus maligno.

JENYFER
Em breve seremos noventa e um, depois noventa e três, depois noventa e sete! E finalmente cem por cento Jesus Cristo. Uma Cristocracia definitiva e paz.

NARRAÇÃO
Aqueles dez por cento tem resistido fortemente.

FAGNER
Não! Em breve essas ovelhas negras serão batatas esmagadas!

JENYFER
Em dois anos subimos de trinta por cento para noventa, Fagner. Já é um bom resultado.

NARRAÇÃO
O número parou de crescer a alguns meses. Alguma coisa está acontecendo.

FAGNER
É aquele filho da puta do diabo! Por que ele faz isso com a gente, meu deus? Estamos quase conseguindo.

JENYFER
Não se preocupe. Logo teremos a notícia de noventa e um por cento.

NARRAÇÃO
Oitenta e nove por cento.

FAGNER
O que?

NARRAÇÃO
Atualização oficial de Brasília. Oitenta e nove por cento de aceitação. Mais uma ovelha se tornou negra.

JENYFER
Eu não acredito nisso!

NARRAÇÃO
Oitenta e oito. Sete.

FAGNER
Não! Não, não, não!

NARRAÇÃO
Seis.

(silêncio)

NARRAÇÃO
Parou. Oitenta e seis por cento.

(silêncio)

FAGNER
Ufa. Que susto.

JENYFER
Fique calmo. Deus está do nosso lado e não há forças contra ele.

FAGNER
Eu sei, meu amor.

NARRAÇÃO
Oitenta e cinco, oitenta e quatro, oitenta e dois, setenta e nove, setenta e cinco, setenta e um, sessenta e três...

FAGNER
Puta que o pariu!

NARRAÇÃO
Cinquenta e três. Cinquenta e um.

(silêncio)

NARRAÇÃO
Parou. Cinquenta e um por cento de aceitação.

JENYFER
A metade, quase.

NARRAÇÃO
Para pensarmos positivo, temos um por cento a mais. Ah, não temos mais. Cinquenta por cento. Redondo.

FAGNER
(chora) É como um vírus. É como um vírus...

JENYFER
Fique calmo amor.

NARRAÇÃO
Essa é a função do sexo feminino. Consolar o macho. Fagner, sinto que uma alma hoje aqui presente está perturbada.

FAGNER
Eu sinto que uma alma aqui presente está perturbada!

JENYFER
Eu também sinto isso! Alguém aqui presente está com uma alma totalmente perturbada pela promiscuidade.

NARRAÇÃO
Fagner, essa batata podre que está aqui presente foi quem começou com o contágio. Eu sinto um cheiro de promiscuidade em muita gente aqui presente. Todos já estão infectados!

FAGNER
Meu santo senhor! Eu estou sentindo um cheiro de promiscuidade na maioria de vocês aqui presente. A batata podre já apodreceu todos vocês. Meu deus, mas já chegou até aqui? Jenyfer, precisamos de um tratamento em massa.

JENYFER
Vocês, todos! Estão fiscalizados! Deus tem nos mostrado coisas!

NARRAÇÃO
A moça sentada a direita é pura. E também o rapaz atrás dela. São virgens.

(Fagner e Jenyfer tiram dois espectadores da plateia)

FAGNER
Vocês. A salvação da humanidade. Vocês devem vir com a gente.

JENYFER
O mundo está perdido, meus amados. Vejam todas essas pessoas. Todas com a aranha no coração. Vocês estão puros. São virgens ainda. Vocês vão nos ajudar a dar testemunho e mostrar para o mundo que devemos fiscalizar o sexo dos outros, para que nossos filhos não se tornem putos e putas como eles!

FAGNER
Vocês dois, vocês dois. Olha, vocês podem se casar. Vocês formam um casal. E abrimos uma congregação e um partido político novo. Nós quatro. Eu com ela, e vocês dois. Casados. Aí vocês podem ter um filho. E nossos filhos vão brincar juntos e ver como é um casal bonito de cristãos modernos. (para o homem) E aí nós te elegeremos como presidente do Brasil. O primeiro presidente verdadeiramente cristão!

JENYFER
Decidido, vamos à luta!

(eles engancham nos espectadores e formam a pose inicial)

(música grandiosa)

FAGNER
Não é igual a idade média
Também sou contra os católicos do mal
Hoje a luta é mais moderna

Não tem fogueira, é rede social
Eu sinto que estou lutando em nome de deus
Contra todos os pecados

JENYFER
E o meu filho e a sua filha
Serão arrebatados
Contra o pênis do vizinho
E os peitos da empregada
E a libido inexistente
Será trancafiada
Que estar ao seu lado
Já é prazer pra toda a vida
E eu direi

OS DOIS
Não use camisinha, não use camisinha
Não use camisinha, mesmo que precise
Não use camisinha, não use camisinha
Não use camisinha, não, não use

FAGNER
Não é igual a idade média
Também sou contra os católicos do mal
Só pense o que os outros dizem

JENYFER
Pra que tomar vacina?
E não adiantar dizer que isso não vai mudar
A gente se preocupa

OS DOIS
Mas então nossa família
Será abençoada
Contra o pênis do vizinho
E os peitos da empregada
E a libido que existia
Será despedaçada
Porque o instinto secreto
É coisa do demônio inventada
Eu te direi

Os gays vão pro inferno
Os gays vão pro inferno
Os gays vão pro inferno
Eu sei que vão
Os gays vão pro inferno
Os gays vão pro inferno
Os gays vão pro inferno
Eu sei que vão, eu sei que vão

E quem quiser aí se salvar
Vote no número quarenta e três
Pra conseguir a glória
É ele, é ele, é ele (apontam o espectador)

Sim, sim, sim... sim, sim, sim
Quarenta e três, quarenta e três
Sim, sim, sim... sim, sim, sim
Quarenta e três, quarenta e três

(black-out)


CENA 4

(a luz acende e os quatro estão em cena; Fagner à frente; Jenyfer está quase desmaiando no colo dos dois espectadores)

FAGNER
(grita) Vocês podem nos criticar! Pode fazer passeata, manifestação! Pode quebrar! Quebra tudo! A verdade do senhor prevalecerá, não importa quantos estudos científicos vocês nos mostrem!

NARRAÇÃO
Jenyfer e Fagner começaram a ser atacados por uma minoria desconsiderável, os cinquenta por cento.

JENYFER
Suas minorias desconsideráveis!

NARRAÇÃO
E então, a eleição para presidência do espectador convidado afundou.

(suspense)

FAGNER
(para o homem) A culpa é sua, seu imbecil! Você não teve o carisma necessário para ganhar uma presidência! O que é uma presidência?

JENYFER
Talvez o diabo tenha conseguido alcançar as pessoas de novo, Fagner. Votaram no espírita umbandista exu de satã. Deus do céu.

FAGNER
Não, é tudo culpa dele! Fizemos tudo direitinho na campanha eleitoral, Jenyfer. Publicidade em super produção, propina para os irmãos. Ele quem não ajudou com essa carinha de merda. É culpa dele termos parado no cinquenta por cento. Por sorte ainda somos metade nessa bosta.

JENYFER
Não fale assim, Fagner.

NARRAÇÃO
Quarenta e nove por cento de aceitação.

FAGNER
O que? Caralho!

JENYFER
Meu deus do céu!

FAGNER
(para o homem) Pare de olhar pra mim, seu bosta! Peque a sua esposinha e volte pro seu lugar, seu imbecil. Estragou todo o nosso projeto. É tudo culpa sua! Seu bosta! Sua bosta também! Vagabunda! Vai, vai logo!

(ele empurra os dois de volta pra plateia)

JENYFER
Calma, Fagner...

FAGNER
Calma o caramba! E agora, Jenyfer? As pessoas tão começando a achar que sexo é normal de novo. Conseguimos tanto. Os gays já são demarcados e andam somente do lado de fora das praças. Logo eles vão conseguir entrar nos shoppings de novo, Jenyfer. E nossos filhos? Você quer um filho viadinho? Uma filha biscate?

JENYFER
Deus me livre, Fagner. Mas não use essas palavras.

FAGNER
É o que nossa filha vai ser, Jenyfer. Biscate! Se o mundo continuar assim ela vai ser fissurada em caralho.

JENYFER
Pênis, por favor, Fagner...

FAGNER
Eu tô cansado de as pessoas não quererem mais ouvir a verdade, Jenyfer. Eu tô cansado.

JENYFER
No fim, Jesus vai condená-los mesmo assim, Fagner.

FAGNER
Tínhamos que ajuda-lo. Tirar a sobre carga das costas dele.

(silêncio)

NARRAÇÃO
Então, os contentes Fagner e Jenyfer entraram numa crise com a mídia. A mídia voltou a defender os ativistas homosatãnicos que fez com que eles parassem a gravação do terceiro filme da dupla na metade.

FAGNER E JENYFER
(grita) “Globo capitalista,
Jesus Cristo vai tirar a sua crista
Globo capitalista,
Jesus Cristo vai tirar a sua crista”

JENYFER
Isso é preconceito religioso, Fagner! O que estão fazendo com a gente.

FAGNER
Estão tirando a nossa liberdade de opinião, Jenyfer. Agora eu não posso ter o direito de ser contra a homossexualidade é isso? Se você quer ser gay que seja, mas eu não preciso aceitar, pô!

JENYFER
Eles não entendem o que Jesus queria, Fagner. Eles nunca vão entender.

(silêncio)

FAGNER
(para os mesmos dois espectadores) Vocês dois. Já perderam a virgindade? Não respondam!  Não posso perder a esperança.

JENYFER
Venham com a gente de novo. Precisamos dos nossos amigos.

(ela puxa os dois novamente; os quatro sentam-se)

FAGNER
De que adiantou tanta luta, meus amigos?

JENYFER
Oi?

FAGNER
De que adiantou tanta luta, no fim das contas?

JENYFER
Nem deu tempo de a gente casar.

FAGNER
Verdade. Ficamos com tanta fissura em espalhar a verdade, que...

JENYFER
Esquecemos da gente.

FAGNER
Olha que coisa boa, gente! Esquecemos de sexo, no fim das contas! Nem vi passar e já faz tanto tempo, né, Jenyfer? (para o homem) Eu te perdoo, amigo. Daqui quatro anos a gente tenta de novo, tá bom?

JENYFER
É verdade, Fagner. Faz tanto tempo. Ai, graças a deus. Pena que ficou só nós quatro nessa vida.

NARRAÇÃO
Trinta e seis por cento. Atualização oficial de Brasília.

(silêncio)

JENYFER
Como é seu nome mesmo, amigo? (ela ouve) Hum. Prazer, Jenyfer. Esse é meu noivo, Fagner.

FAGNER
E você, quem é? (ouve) Hum. Prazer.

JENYFER
Fagner! Olha que coisa boa! Conseguimos chegar até o fim sem gozar!

FAGNER
Que coisa boa! Que magnífico, meu deus! Deem as mãos.

JENYFER
Ai, que coisa boa.

(eles se dão as mãos; eles cantam)

FAGNER E JENYFER
A ovelhinha que era negra e de esquerda
Veio Jesus Cristo e a derrubou
A ovelhinha que era branca e careta
Veio Jesus Cristo e em seus braços agarrou

O lobo-mau namorava outro homem
E a ovelhinha negra se tornou a sua amiga
A ovelhinha negra começou fumar maconha
Chupou catorze rolas, e por isso deus castiga

Jesus olhou somente para a ovelhinha branca
Porque só o branco é que é a cor de deus
A ovelhinha branca foi considerada santa
Mas o que ninguém sabia é que uma pinta apareceu.

A ovelhinha negra convidou a ovelhinha branca
E a ovelhinha branca se perdeu das mãos de deus
A aranhinha fez ela ficar preta
E o mundo inteiro no escuro se perdeu

Duas ovelhinhas pretas no meio de brancas
As outras ovelhinhas foram sendo curiosas
Uma pinta nasce, e depois já nasce tantas
E no fim das contas todas são libertinosas

(Fagner se aproxima para beijar a espectadora; Jenyfer faz igual com o espectador; eles se beijam; depois eles se olham; aí Fagner beija Jenyfer; por fim, Fagner tenta beijar o espectador e Jenyfer faz igual com a espectadora; pode chegar a um beijo quádruplo)

NARRAÇÃO
Esses são Fagner e Jenyfer. Ainda continuam crentes na palavra, com o apoio da sua ínfima porcentagem que decaiu nos últimos três anos. Crentes na palavra, quentes de atitudes.

(silêncio)

NARRAÇÃO
Onze por cento. Atualização oficial de Brasília. (silêncio) Doze. Doze por cento de aceitação. Catorze. Dezesseis...


FIM





REPRODUZO (2013)

REPRODUZO

Persoanagens
Ariel
Mymo


CAPITULO 1

Cenário: um ponto de ônibus.

(os atores arrumam a cenografia e adereços em cena; eles sentam-se; black-out)

(quando a luz retorna, ambos bebem algo de uma xícara; eles se olham, e o som e a cena congelam aos poucos; eles ficam estáticos por alguns segundos)

ARIEL/MYMO
Não, esperar não é uma dádiva
O fim não vai chegar com um aviso prévio
Não vai existir contraceptivos pós núpcia
Quando as pontas dos bicos estiverem flácidas, pútridas
As coisas acontecem e as coisas acontecem e só
Gente não é prédio, ou xilindró – muito menos xilindró!
Patrícias ou Maurícios vão embora com os mesmos pulmões
Gente que expulsa as caraminholas com decepções
Gente esperando pelo amanhã que é um vulcão estourado
E a lava já tem queimado, desde os anos noventa, sem ao menos perceber que dói
Corrói, estupra
Estupra...

ARIEL
Ah, você está aí.

MYMO
Só agora reparou? Eu disse a fala em coro com você. Já esqueceu?

ARIEL
Era o combinado, né.

MYMO
Pensei que fosse dizer com mais entusiasmo, isso. Como combinado.

ARIEL
Isso o que?

MYMO
“Você está aí”. “Ah, você está aí!”

ARIEL
Estou! (pausadamente) Eu estou aqui! E linda. E confiante dessa vez! E com o status atualizadíssimo com felicidade e dezembros maravilhosos! E histórias e conquistas!

MYMO
Nome de sereia. É só por fora, isso.

ARIEL
O que?

MYMO
Tá na sua cara que é externo, não interno.

ARIEL
Como assim?

MYMO
Sua felicidade. Sua confiança.

ARIEL
Calma. O que?

MYMO
É mentirosa. Tá na cara que tudo isso é camuflagem de uma insegurança. Carroça vazia faz mais barulho.

ARIEL
Cale a boca. Não existe esse tipo de coisa, idiota. Insegurança é pra gente feia e magra. Eu sei que as pessoas gostam de mim. Gostam do meu carisma, do meu sorriso. Eu abuso disso. Abuso dos meus seguidores.

MYMO
Não existe as pessoas gostarem da gente pelo que a gente é. Normalmente a gente bota uma máscara na cara pra que elas nos suportem. Ninguém suportaria ninguém se fossemos cem por cento nós mesmos.

ARIEL
Até hoje nunca usei máscara, Mymo. Nem em cena, pois todos queriam ver a pele da minha bochecha brilhar! Diva define.

MYMO
A gente usa todo dia sem perceber, isso que eu queria dizer.

ARIEL
Ai, cale a boca!

MYMO
Em cena e em casa. Na farmácia, no mercado. No ginecologista! Com cada um deles, agimos diferentes. Com a própria mãe, com o romance, etc. Sempre mascarados.

ARIEL
Ai, cale a boca, Mymo...

MYMO
Para de me mandar calar a boca, caramba!

ARIEL
Cale a boca! Cale a boca! Cale a boca! Eu sei o que eu vivo, e quem eu sou. Não existe máscara! Sei bem defender minha ideologia. E sem gaguejar! Olha: (para a plateia) “Me aceitem mortais! Eu sou o pupilo dos seus olhos!”

MYMO
Eu não faço ideia de quem eu sou. Porque a gente nunca é nada. Todo dia a pele cai. Ninguém é bonito, alguns praticam a beleza. A diferença é que tem gente que pratica até virar craque. E, meu deus, o craque é foda.

ARIEL
Foda. (pausa) Eu me importo com outras coisas que você, Mymo. Você sabe.

MYMO
Não me chame assim. Eu odeio que me chame de Mymo.

ARIEL
Eu me importo com mimos! Essa sou eu! (ri) Não você, claro! Mimos! Flores!

MYMO
Consequência de carência.

ARIEL
E eu quero um mimo com ípsilon. Eu quero ser uma mimada bonita e internacional! (gargalha)

MYMO
Eu me importo mais em ser cheiroso e palpável.

ARIEL
Você é tonto.

MYMO
Você é fútil.

ARIEL
Fútil, porém sexualmente ativa!

MYMO
Fútil. E paranoica. Passiva machista.

ARIEL
Te deixo, então, com sua solitud espiritual, Mymo... Vá pastar com seu sonho que, obviamente, não chega aos pés do que eu quero... Eu quero gente que sonhe comigo!

MYMO
Pois quer que eu sonhe por você, retardada? Você não é mais que uma bela folgada!

ARIEL
Eu quero que me mimem, Mymo. Me mime! Me mime, Mymo!

MYMO
Não me chame de Mymo, que saco!

ARIEL
Mymo, Mymo, Mymo, Mymo!

MYMO
Puta.

(silêncio)

MYMO
Na sua história, você é protagonista. Porém na minha, você é coadjuvante.

ARIEL
Quase figurante, eu sei. Mas enquanto eu não for memória na cabeça dos outros, que eu defenda meus direitos de ser a mocinha mais linda e simpática e adorável de todos os tempos.

MYMO
Você não é bonita, Ariel. Você se reproduz como tal. Com máscaras.

ARIEL
E você não está próximo de deus, Mymo. Você não está próximo de nada! Você é um zero à esquerda!

(silêncio)

MYMO
A única coisa certa é que uma hora chega.

ARIEL
Uma hora chega o que?

MYMO
Uma hora chega.

ARIEL
Uma hora chega o que, caralho?

MYMO
Uma hora a hora chega. E chegue a hora que chegar, a hora estará na espera.

ARIEL
(pausa) Ai, como eu odeio seu jeito de falar! Esse mistério e esse jeito de deixar as coisas...

MYMO
Deixar as coisas?

ARIEL
Cultas! Odeio essas coisas. Você falou um monte de merda aí, só que soa bonito porque você fala com esse tom. Fica parecendo que eu sou burra e você intelectual! Qual seu filme predileto?

MYMO
Filme? Ahn...

ARIEL
Um filme bom!

MYMO
Ai, gosto de tantos. Mas é um teste? Você está me testando?

ARIEL
Quero saber seu grau cultural.

MYMO
(ri)

ARIEL
Tá rindo de quê?

MYMO
Alguém divino chegou e te passou o bastão julgador que te deu o direito e sabedoria de dizer o que é cult e o que é merda?

ARIEL
Não. Mas bom senso já é um começo pra se discutir.

MYMO
Quer que eu seja sincero ou bacana?

ARIEL
Sincero.

MYMO
Meu filme preferido é A Hora do Pesadelo. O primeiro.

ARIEL
Do Freddy Krueger? (ri)

MYMO
E o seu?

ARIEL
Ah, tem muitos.

MYMO
Diga um.

ARIEL
Ah, deixa eu ver... Casablanca. Já viu? É lindo de morrer.

(silêncio)

MYMO
Por termos níveis culturais diferentes não devemos mais conversar?

ARIEL
Oi?

MYMO
Nossos níveis intelectuais são diferentes. Devo ir embora?

ARIEL
Você já consegue? Já chegou o seu?

MYMO
Acho que ainda não. Mas devo tentar? Talvez eu vá à pé.

ARIEL
Não. Tirando tudo isso, você é engraçadinho. Mas Freddy Krueger? Fala sério...

MYMO
Eu não tenho nada de engraçadinho.

ARIEL
Você é bem engraçadinho. Só não sabe.

(silêncio)

ARIEL
Que filme você iria dizer se fosse tentar ser bacana ao invés de sincero?

MYMO
Casablanca.

ARIEL
Mentiroso!

MYMO
Sério.

ARIEL
Mas já assistiu?

MYMO
Não.

(silêncio)

ARIEL
Eu morria de medo do Freddy Krueger quando eu era criança.

MYMO
Eis a mágica.

ARIEL
O que?

MYMO
Eis a mágica da máquina de enganação.

ARIEL
Cinema?

MYMO
Arte.

ARIEL
Ai, cale a boca.

MYMO
Caralho, menina!

ARIEL
A arte não tem nada de enganação. Nada! Talvez a realidade seja mais enganação que a arte. Na vida a gente se engana mais que na arte. Na arte a gente melhora o que temos de pior. Faz verdade o que é mentira.

MYMO
Como assim? Melhora como? Não entendi.

ARIEL
Por exemplo, uma vez fiz uma cena de estupro. Mas foi uma cena linda de estupro.

MYMO
(gargalha)

ARIEL
Ué, que foi?

MYMO
Como uma cena de estupro pode ser linda, sua louca?

ARIEL
No fundo, umas crianças brincavam de roda. E caía camomila do teto do teatro. Enquanto eu era estuprada loucamente pelo meu próprio irmão. Uma cena linda. A iluminação era impecável.

MYMO
Não gosto do cheiro de camomila.

ARIEL
Eu não gostava muito do cheiro do ator que me estuprava. O Wagner. Tá fazendo novela agora. Tinha bafo.

MYMO
Famoso também caga.

(silêncio; eles permanecem parados por longos segundos; por fim, Mymo boceja; eles se olham, e sem romance ou insinuação, se beijam mecanicamente; eles se masturbam rápido e seco; a iluminação reparte as cenas)

ARIEL
Tem um cigarro?

MYMO
Parei.

ARIEL
Que luta.

(silêncio)

ARIEL
E a hora que a gente conseguir chegar?

MYMO
O que?

ARIEL
Sabe? A hora que a gente chegar lá, o que vai ter de legal pra fazer? A gente põe tantas expectativas em coisas tão tontas. E no fim, tudo é sempre igual.

MYMO
É mesma sensação de quando a gente era criança e imaginava ser adulto. A vontade de ter vinte anos e depois trinta. E no fim, só parece que ficou mais estranho ainda.

ARIEL
É que ainda não é bem o fim. (pausa) E quando não rolar mais essa dúvida, cara? Será que uma hora para?

MYMO
Uma hora a hora chega.

ARIEL
Odeio quando fala isso. Digo de quando conseguirmos chegar lá.

MYMO
Lá onde?

ARIEL
Como assim “lá onde”?

MYMO
O ônibus já tá atrasado.

ARIEL
Que horas ele disse que vinha?

MYMO
Como assim “disse que vinha”? Ônibus não avisa. Ele só passa.

ARIEL
Que nem a vida.

(silêncio)

ARIEL
Mas é aqui mesmo?

MYMO
O que?

ARIEL
O ponto?

MYMO
Que ponto?

ARIEL
De ônibus, cacete! É aqui o ponto pra chegar lá?

MYMO
Não sei onde é o seu “lá”. Conheço as linhas apenas pelos números, não pelos destinos. Você vai aprendendo a usar a matemática mais do que o coração nesse lugar.

ARIEL
E a hora que chegar?

MYMO
O que é que tem?

ARIEL
Vai ser o que?

MYMO
O que de que?

ARIEL
O que vai acontecer quando chegarmos lá?

MYMO
Vai acontecer a mesma coisa de sempre. Todo dia a gente chega lá, a gente só não sabe disso.

ARIEL
Impossível. Eu nunca estive nem próximo. E não foi por falta de vontade, viu. Tá caro o preço do transporte público. Não dá pra brincar de simplesmente ir à caça.

MYMO
A gente já chegou no objetivo. O objetivo era sobreviver até amanhã. E hoje é o amanhã de ontem. Estamos no lucro, pelo menos.

(silêncio)

ARIEL
Você é idiota.

MYMO
E você, fútil!

ARIEL
Só sabe dizer isso agora?

(silêncio; longo silêncio; eles se olham, Ariel boceja; Mymo se levanta e vai mijar ao fundo, de costas para ela)

ARIEL
Curte penetração?

MYMO
Hã?

ARIEL
No sexo. Curte penetração? Curte que te penetrem?

MYMO
Curto. Mas só tenho vivências com o sexo feminino.

ARIEL
E eu com o sexo masculino. Deixa que te enfiem o dedo?

MYMO
Depende. Não curto muito esse tipo de coisa, mas...

ARIEL
Quer enfiar o dedo?

MYMO
Onde?

ARIEL
No cu.

MYMO
No meu?

ARIEL
No meu.

MYMO
E como seria?

ARIEL
Eu abaixo e você enfia.

MYMO
E o cheiro?

ARIEL
O que?

MYMO
O cheiro do seu cu. Eu tenho problemas com isso.

(silêncio)

ARIEL
Perdi o clima. Não gosto quando metem cheiro no meio das coisas. Eu me lembro do bafo do Wagner. Ele tem beijado aquela mocinha. Como é mesmo o nome? Na novela. Ele beija aquela atriz que fez aquele filme. Ai, como é mesmo o nome?

MYMO
Eu fiquei num tesão agora. Você falando de enfiar dedo no cu. Fiquei num tesão de enfiar alguma coisa em você. A palavra enfiar já é maliciosa por si só. Só não quero o dedo. Eu coço o nariz com o dedo. E roo unha.

ARIEL
Perdi o clima. Deixemos pra outra vez.

(silêncio)

MYMO
E no meu? Quer?

ARIEL
Quer que eu enfie o dedo no seu cu?

MYMO
Quero. Tenho curiosidade...

ARIEL
Eu nunca comi um cara desse jeito.

MYMO
Eu tenho curiosidade.

ARIEL
Abaixe a calça e fique de quatro.

(ele obedece)

ARIEL
Hum. Bunda de homem devia ser censurada.

MYMO
Enfia.

ARIEL
Você me encanou com o lance do cheiro. Você se lavou?

MYMO
Tomei banho. Mas não fiz lavagem interna. Enfia, não pensa.

ARIEL
Posso só olhar dessa vez?

MYMO
Não gosto de ficar nessa posição pra só ficarem olhando.

ARIEL
Tá com fogo, Mymo? Será que o vírus da homossexualidade te pegou? Eu tenho vagina, meu cacete ainda não cresceu.

MYMO
Não quero passividade, Ariel. Eu quero experimentar o seu experimento.

ARIEL
E como funciona isso?

MYMO
Quero entender qual é o seu tesão. O que te dá tesão.

ARIEL
O correto seria você enfiar no meu. É mais natural a sodomia heterossexual.

MYMO
Certo.

(eles invertem de posição; Ariel se vira automaticamente, e logo se lembra que não queria)

MYMO
Sua bunda é bonita.

ARIEL
Acho que não vai rolar.

MYMO
Não se preocupe. Não quero enfiar nada aí.

ARIEL
Por que não?

MYMO
Faria perder a majestade!

ARIEL
Hã?

MYMO
Meu sexo faria deixar vulgar algo tão divino como sua bunda.

ARIEL
Um beijo?

(Mymo dá um selinho em Ariel)

ARIEL
Eu quero um beijo ali atrás.

MYMO
Um beijo?

ARIEL
Um beijo grego.

MYMO
Sou mega encanado com o cheiro das coisas. Você se lavou?

ARIEL
Com sabonete íntimo.

MYMO
Feminino?

ARIEL
Unissex. Dove.

(Mymo vai beijar a bunda de Ariel; a imagem congela pouco antes)

(luzes de serviço se acendem; os atores sentam-se nos mesmos lugares do início; black-out)


CAPITULO II

(as luzes acendem e novamente eles tomam algo de uma xícara; mais uma vez a cena fica estática, primeiro em câmera lenta e depois totalmente parada; logo retornam normalmente à velocidade real)

MYMO
Ah, você está aí, sua lazarentinha filha da mãe!

ARIEL
Mymo! Por onde esteve, menino? Faz uma vida que não nos trombamos!

MYMO
Estive esperando um buzão, cara. Tenta não me chamar por esse nome.

ARIEL
Eu também, meu. Levou uma vida pra chegar, o filho da puta.

MYMO
Nem diga. E quando chegou, o preço era de cagar.

ARIEL
Eu finjo ser deficiente. Não pago. Ó: (ela manca)

MYMO
Bacana. Eu tô tentando entrar na área militar. Também fica livre da catraca. Quero ser P.M.

(silêncio)

MYMO
Eu curto esses lances, um pouco.

ARIEL
Não conta pra ninguém o lance de deficiente. Eu tenho até atestado médico já. Iria dar o maior B.O.

MYMO
Não seja idiota. Sempre tem jeito de dar um jeitinho.

ARIEL
Como?

MYMO
Sempre se ajeita um jeito de as coisas se ajeitarem.

ARIEL
Me dá um exemplo!

MYMO
Oras, uma hora chega a hora de se dar um jeito no jeito de se ver as coisas.

ARIEL
Eu já conheci um cara como você antes. Era bem parecido, o jeitinho. Fazia uns trocadilhos bestas assim também. Eu me irritava um pouco com ele, mas... Parceiro de banco de ônibus.

MYMO
Todo mundo me diz que eu sou parecido com alguém. Deus perdeu a inspiração quando me fez.

ARIEL
Eu também.

(silêncio)

MYMO
O que tá fazendo por aqui?

ARIEL
Bom, enquanto não chega a hora da minha condução, eu tô esperando nascer o pezinho que eu plantei. E você?

MYMO
Ah, é? Couve?

ARIEL
Não. Por que couve?

MYMO
Eu gosto de couve. É uma comida barata.

ARIEL
Realmente. Mas é... eu plantei um outro tipo de coisa. É difícil de explicar, porque vai ficar parecendo estupidez. Mas eu pensei: poxa, não custa tentar! E mesmo que não aconteça realmente, eu creio no aprendizado do sentido que isso vai deixar na minha vida. Pelo sentido da coisa, sabe?

MYMO
Entendo. Também sou cheio dessas porcarias.

(silêncio)

MYMO
Afinal é o que, então?

ARIEL
É uma moeda de um cruzeiro.

MYMO
Um cruzeiro?

ARIEL
É. Eu plantei. Faz algumas horas. Regado com champanhe. Pra dar um ar classe A.

MYMO
Mas o cruzeiro nem tá mais em circulação. Eu nem peguei essa fase do cruzeiro. De que adianta um pezinho de cruzeiro, sua louca?

ARIEL
É que eu não quero parecer capitalista. Quero mais pelo sentido da coisa.

MYMO
Não consigo te entender.

ARIEL
Ora, todos precisamos de dinheiro, certo?

MYMO
Certo.

ARIEL
Você sabe pra que?

MYMO
Pra comer.

ARIEL
Certo. E pra que mais?

MYMO
Pra viver.

ARIEL
Certo. E que mais?

MYMO
Hum... Pra ter dinheiro pra dar rolê.

ARIEL
E que mais?

MYMO
Pra pagar as contas!

ARIEL
Uhum.

MYMO
Viajar, cartão de crédito!

ARIEL
Certo.

MYMO
Pra arrumar uma namorada e comprar um perfume caro! Pra ter um carro e depois mostrar pra todo mundo que não acreditou no seu sucesso que sim, sim!, você é uma pessoa bem sucedida, e bem sucedida fora das redes sociais! Uma pessoa bem sucedida e bem resolvida na vida real!

ARIEL
E que mais?

MYMO
É... pra dar rolê...

ARIEL
Você já disse.

MYMO
... comer comida boa, ajudar a mãe...

ARIEL
Certo. E aí?

MYMO
Aí... aí só.

ARIEL
Viu? Por isso que eu plantei outra coisa.

(silêncio)

MYMO
Dizem que couve nasce super rápido.

ARIEL
Quer tentar plantar uma moeda de um real?

MYMO
Eu?

ARIEL
É. Se nascer, fica pra você.

MYMO
Mas eu não tenho um vaso pra tentar.

ARIEL
Usa o meu. Eu troco um espaço do vaso por um cigarro. Topa?

MYMO
Parei de fumar. Mas se nascer só uma das duas moedas como vamos saber qual é a minha? Porque a minha vale, a sua não.

ARIEL
Veremos já no broto.

(silêncio)

MYMO
Eu poderia plantar uma nota. O que acha? Vale mais, deve ter mais chances.

ARIEL
Uma nota de quanto?

MYMO
Sei lá. De dois.

ARIEL
Eu não sei por que, mas tenho a impressão que uma moeda de um real é mais bonita que uma nota de dois. Acho que é pelo dourado na borda.

MYMO
Então uma nota de dez.

ARIEL
Vinte!

MYMO
Vinte e cinco!

ARIEL
Cinquenta!

MYMO
Ok. Você venceu. É minha maior nota por hoje.

(ele retira a nota de uma carteira e entrega para Ariel)

ARIEL
Que horas seu ônibus disse que vinha?

MYMO
Não sei. O meu não fala. Mas acho que temos tempo.

ARIEL
Não sei, não. Se quiser eu cuido pra você e você vem buscar outro dia.

MYMO
Não, quero ver o broto brotar.

ARIEL
Não sei...

MYMO
Deixa que eu planto. (ele retira a nota da mão dela e cava um pouco o vaso)

ARIEL

Só cuidado pra não amassar muito.


MYMO
Relaxa. Quanto mais enfiado, mais chance de enraizar.

ARIEL
Então é igual quando a gente mete.

MYMO
Pode ser.

(ele termina de enterrar a nota em silêncio)

MYMO
Agora o champanhe.

ARIEL
Não! Vai encharcar a nota...

MYMO
Mas ela precisa beber alguma coisa. Se não, que graça tem nascer? Tem que ter alguma coisa pra por pra dentro, manja? De pequeno eu já sabia isso. Vivia metendo coisa dentro da boca. Nós temos essas pirações, né? De meter coisa pra dentro da gente.

ARIEL
Hoje em dia tem meios mais seguros de se fazer esse tipo de coisa.

MYMO
Como?

ARIEL
Sei lá. Dizem por aí. O foda é que na hora do “vamo ver” é difícil lembrar dessas campanhas.

MYMO
Não sei do que está falando.

(Mymo derrama champanhe no vaso)

ARIEL
Caralho! Estragou uma nota de cinquentão!

MYMO
Ué, mas não era você a nega cheia de fé?

ARIEL
É que a gente tem mais facilidade em acreditar que seja mais fácil achar uma moeda de um real na rua que uma maleta com um milhão, não é? E quais são as probabilidades? Você sabe?

MYMO
Não sei.

ARIEL
E com uma moeda de um cruzeiro?

MYMO
Não sei também.

ARIEL
(misteriosa) São as mesmas.

(silêncio; eles esperam pacientes olhando para o vaso; eles andam um pouco ao redor do vaso, apenas esperando alguma coisa acontecer)

ARIEL
Tá escurecendo. Quer indo? Eu cuido pra você.

MYMO
Não. Não posso perder esse passo da evolução da nossa fé. Fazer árvores de dinheiro e comprar a porra da felicidade!

ARIEL
Acredita mesmo nisso?

MYMO
Ué, pode ser, não pode? Você quem disse. Conseguiu me convencer. Tô apostando na sua aposta.

(eles esperam de novo; por alguns longos segundos nada acontece; Ariel começa a desanimar; Mymo ainda confiante)

ARIEL
Podemos fazer alguma coisa pro tempo passar.

MYMO
Curte penetração?

ARIEL
Curto.

(Mymo se abaixa apoiando no vaso; Ariel se ajeita para meter)

MYMO
Só vai devagar. Minha ex tinha pinto fino.

ARIEL
Se doer você me fala.

(Ariel come Mymo realisticamente; eles gozam)

ARIEL
Tem um cigarro?

MYMO
Parei. Faz uns meses. Quero servir o exército.

ARIEL
Lugar de homem é na cavalaria.

(silêncio)

ARIEL
Eu estava tirando um sarro de você.

MYMO
Oi?

ARIEL
Não vai nascer pé de dinheiro. Isso é fantasia.

MYMO
Na arte a vida vira realidade. Uma amiga costumava me dizer isso.

ARIEL
Eu queria ganhar um dinheiro em cima da sua ignorância. Foi isso.

MYMO
Mentira.

ARIEL
Sério. Eu reclamo da corrupção, mas sou do tipo que odeia a polícia que me multou por estar acima da velocidade. Eu costumo furar fila. Pronto, falei.

MYMO
Você tem carro?

ARIEL
Não. Não soube que agora temos velocidade para o pedestre? Imagina pra mim que sou manca! Ó: (ela manca)

MYMO
Mentira!

ARIEL
Sério. Eu só queria ganhar seus cinquenta mango. Ia ajudar na condução. Pior que eu nem sei pra onde tenho que ir.

(silêncio)

MYMO
Eu molhei com champanhe.

ARIEL
Eu tô arrependida. Segundo a lei nove mil seiscentos e setenta e sete na defesa dos direitos humanos de número oitenta e três, barra doze: não importa qual tenha sido o ato, se houver arrependimento o crime se neutraliza. Não me julgue, na lei estou livre da sua condenação.

MYMO
Se estivesse precisando de dinheiro era só dizer.

ARIEL
Eu tô precisando de dinheiro.

MYMO
Pra que?

ARIEL
Pra comer. Pra beber. Essa ansiedade louca de enfiar coisas goela a baixo.

MYMO
Quanto precisa?

ARIEL
Mil cruzeiros.

MYMO
Cruzeiros? Mas cruzeiro já não vale mais nada, sua louca!

(silêncio)

ARIEL
Então não sei o que eu preciso. Acho que eu precisava que o broto nascesse. Ia me dar esperança.

(silêncio)

MYMO
Acho que aquele é seu ônibus, não é?

ARIEL
Meu deus! Como sabia?

MYMO
Não sabia.

ARIEL
Ah, não é.

MYMO
Não?

ARIEL
Aquele vai pro... Ah, não. É sim. É aquele. Não consigo decorar o número nunca. Deixe eu pegar meu cruzeiro de volta.

(procura no vaso)

MYMO
Nove, dois, quatro, nove, nove, oito, sete, oito, dois, quatro, nove, zero, um, oito, novo, sete, seis. (pausa) Barra, um, zero, quatro, cinco, oito, zero, nove, seis. Você vai longe.

ARIEL
Achei. São duas moedas, graças a deus.

MYMO
Duas?

ARIEL
As chances seriam maiores.

MYMO
Pensei que estivesse só tentando me enganar.

ARIEL
Tava tentando me enganar também. (ela acha) Adeus. (sai)

(Mymo ajoelha-se envolta do vaso, e aguarda algo acontecer; black-out)


CAPITULO III

(uma luz escura; Ariel está sentada com os pés em cima de Mymo, que corta suas unhas)

ARIEL
Mymo.

MYMO
Não me chame por esse nome.

ARIEL
Você sabe quem eu sou?

MYMO
Você é a Ariel.

ARIEL
Que Ariel?

MYMO
A Ariel, caramba.

ARIEL
Você já sabe tudo o que eu fiz e o que me aconteceu na vida?

MYMO
Sei lá! Vamo parar, hein! Vamo parar!

ARIEL
Ai, é que eu não aguento mais, Mymo! Essa porra desse ônibus tá demorando uma porra!

MYMO
Não desconte em mim. Deixa acontecer naturalmente. Já diziam.

(silêncio)

ARIEL
Eu quero que chegue logo.

MYMO
Por que a pressa?

ARIEL
Porque sim. Odeio viagem longa. Vai saber quanto tempo ainda perderemos dentro do ônibus.

MYMO
Tem razão. São esses motoristas! Tenho certeza! Se eu tivesse meu próprio carro...

ARIEL
Qual ia ser a diferença?

MYMO
Eu ia ter um carro. E daí eu podia largar tudo e ir morar na praia. Morava dentro do carro. E depois mudava pra Belo Horizonte. E depois pra China!

ARIEL
Ai, cale a boca! Eu tinha uma professora da Universidade Bélica de São Cristóvão do Apuro lá de Belo Horizonte também, que escreveu uma tese de doutorado sobre a nossa vida e os carros. Eu não me lembro muito bem de todas as frases exatas da tese, porque ninguém consegue decorar essas coisas inteiras, né? Mas eu lembro que a última frase era assim: fique longe deles. Assim. Bem misterioso mesmo. Eu nunca soube em quem acreditar. Mas essa é uma filosofia de vida que eu levo até hoje, pra mim.

MYMO
Que bosta.

(silêncio)

ARIEL
Eu já fiz alguma coisa legal, Mymo?

MYMO
Você já enfiou o dedo... Ah, não. Não sei dizer.

ARIEL
Enfiei o dedo onde?

MYMO
(ri) Não lembra?

ARIEL
Lembro. Queria te ouvir dizer.

(silêncio)

ARIEL
Ai!

MYMO
Ai! Foi mal!

ARIEL
Foi péssimo! Tirou um tolete do meu dedo, seu lazarento! Vai sangrar pra porra!

MYMO
Desculpe.

ARIEL
Vai embora! Vai esperar o ônibus no outro ponto! Vaza!

MYMO
Calma!

ARIEL
Me dá os meus cinquentão! Me dá os meus cinquentão!

MYMO
Seus? São meus!

(Ariel violentamente esbofeteia Mymo)

MYMO
Para! Para! Sua louca!

ARIEL
É de quem? De quem é? Dá! Dá, caralho! Dááá!

MYMO
Toma, porra! (entrega a nota de cinquenta)

ARIEL
Obrigada! (pausa) Quer meter?

MYMO
Lógico.

(Ariel se apoia no banco; Mymo mete duas vezes e goza escandalosamente)

MYMO
Oh! Oh!

ARIEL
(sem ânimo) Caralho, hein. Que delícia.

MYMO
Né?

ARIEL
Dá um cigarro.

MYMO
Parei.

ARIEL
E não comprou pra mim?

MYMO
Eu ainda não te conheço direito, sabe.

(silêncio)

ARIEL
O que? Hã? Repete isso que você falou.

MYMO
A gente é parceiro de luta. Esqueceu?

ARIEL
Que luta? Que luta?

MYMO
Pra conseguir chegar no...

(Ariel esbofeteia Mymo mais uma vez)

MYMO
Mas que porra, meu!

ARIEL
Vamos embora daqui.

MYMO
Meu buzão tá quase vindo.

ARIEL
Vai pra onde?

MYMO
Sei lá. Vou encontrar uma amiga.

ARIEL
Que amiga? Feminina?

MYMO
Sim. Ela vai meio que me indicar.

ARIEL
Indicar pra quê? Você é idiota?

MYMO
Me indicar pro futuro, cacete! Nós ficamos esse tempo todo discutindo sobre as coisas. Não é?

ARIEL
É.

MYMO
Que coisas?

ARIEL
E eu sei lá!

MYMO
Por que a gente não perde esse tempo, que a gente perde diariamente preso nessa maquinaria terrestre, com a força do desejo?

ARIEL
O que?

MYMO
A força do desejo. Eu tenho tido umas crises fortes existenciais, sabe. E aí uma tia – que se chama Ariel também, curioso, isso – me emprestou uns livros e caralho. Caralho, meu. É da hora.

ARIEL
Por favor, não tem a ver com...

MYMO
Deus existe, cara...

ARIEL
Que? Para.

MYMO
Deus existe! Eu sinto ele. Eu falei com ele. Tá escrito tudo nos livros lá. E não é a Bíblia, não é disso que eu tô falando.

ARIEL
Para que você tá me assustando, Mymo!

MYMO
Ele é mesmo um tirano, sabe. Ele não tá nem aí pra essas pessoas que falam que deus não seria maligno e nem enviaria as bichas para o inferno. Ele envia bicha pro inferno sim. E só por ser bicha. E como foi ele quem criou tudo isso ele pode dizer o que é amor e o que não é. E se ele diz que fazer tudo isso que ele fez é amor, então é!

(silêncio)

ARIEL
Meu deus! Quero dizer...

MYMO
Brincadeira. Não é bem isso. É umas paradas com magia, sabe. Magia da vida mesmo, não essas de filmes – se bem que usássemos um tanto a mais do nosso cérebro isso também não seria impossível, né, mas... – enfim! Eu tava deprê, vejo que você também está meio deprê...

ARIEL
Eu tô deprê! Eu deprêzíssima! O que eu faço?

MYMO
Esses livros, da minha tia Ariel. Eles me ajudaram a construir o futuro e ter coragem de ir à pé se for preciso! Buzão tá fácil, né, dondoca? Paga com o suor e não chega nunca em lugar nenhum. Só sonha! Só sonha! Eu vou te emprestar. São livros de auto-ajuda, é um pouco ridículo, mas enfim. Se te interessar.

ARIEL
Fala de que?

MYMO
Ai, leia! Ele vai ajudar a compreender como funciona nossas relações e inter-relações e web-relações.
ARIEL
Não é “O grande segredo da nossa existência”, é?

MYMO
Não! Caralho, se não quiser ler não leia, pronto!

ARIEL
Não. Tá bom. Eu leio. Qual é o nome?

MYMO
“The biggest secret of our existence”.

ARIEL
Mas é “O grande segredo da nossa existência”, então!

MYMO
Lógico que não. O nome é super diferente.

ARIEL
É que é em outra língua, Mymo.

MYMO
Ah. Claro.

ARIEL
Eu já li esse. Não é tão simples quanto mostram.

MYMO
Não é tão simples pra quem não viu o resto!

ARIEL
Como assim?

(Mymo sai e volta com uma porrada de livros dentro de um saco)

MYMO
Tem coisa cética, budista, católica também, tem sobre tudo isso. Se divirta. Eu já li todos e estou praticando.

(Mymo senta-se num colchonete e liga um MP3 com um fone)

ARIEL
É pra ler tudo, é?

(black-out)

(com black-outs para passagem de tempo, Ariel lê os livro em diversas posições; Mymo está mais além e brinca de fazer poções e levitar objetos; os dois personagens fazem orações ritualísticas; fumaça e luz colorida; eles bebem em copos coloridos; danças; um momento psicodélico; de repente acordam; luz comum)

MYMO
E aí?

ARIEL
Na mesma.

MYMO
(desanimado) Sucesso, hein.

(black-out)


CAPÍTULO IV

(a luz de serviço acende; os atores bebem novamente o chá; eles se vestem com uma roupa de gala; black-out)

(a luz sobe grandiosamente ao som de trombetas; Mymo e Ariel posam para fotos e sorriem para câmeras; eles agradecem o carinho com sorrisos e acenos bregas; a música cessa e eles continuam as poses; logo, ambos ficam sem graça)

MYMO
Aqui estamos! O terminal!

ARIEL
Finalmente, aqui estamos! O transporte público tem sido uma merda, mas aqui estamos!

MYMO
Finalmente mesmo. Pensei que fosse demorar mais. Finalmente, meu deus!

ARIEL
Né? Finalmente. Esperamos tanto tempo e no fim das contas não foi nada. Parece que passou rápido.

MYMO
É que ainda não é o fim, não é?

ARIEL
Pois é.

MYMO
Na verdade não tem nada de “finalmente”, então.

ARIEL
É.

MYMO
Olha a foto!

(eles posam mais algumas vezes; silêncio)

ARIEL
Estranho, isso, né?

MYMO
Estranhíssimo.

(silêncio)

ARIEL
E agora?

MYMO
Agora?

ARIEL
É. O sucesso bateu.

MYMO
Vixi. E você pergunta pra mim?

ARIEL
Vou perguntar pra quem?

MYMO
Olha esse monte de gente.

ARIEL
Não tenho intimidades com eles.

MYMO
E comigo tem?

ARIEL
Pouco. Mas sei lá. Esperar com você me fez próxima.

(silêncio)

ARIEL
Nós conseguimos, Mymo! Chegamos lá. Vamos encher a cara!

MYMO
Tanta gente. E tão pouca gente, não é?

ARIEL
Né? Estranho, isso.

MYMO
Pra caralho.

ARIEL
Pra caralho.

MYMO
Olha as pessoas olhando seu sucesso.

ARIEL
Pro seu também. Olha aquela ali! Não tira o olhar do seu sucesso. Somos pessoas de renome, agora, Mymo.

MYMO
Sucesso! Sucesso, sucesso, sucesso!

ARIEL
Suuuuuuuucesso.

(silêncio; longo silêncio)

ARIEL
Mymo, nós não somos cheios da intimidade, mas eu gosto tanto do seu nome. Conheci vários Mymos na minha vida. Eu amo o ípsilon que tem. Você gostaria de trocar de nome comigo?

MYMO
O que?

ARIEL
Trocar de nome. Creio que esse seu nome me daria mais força pra lutar.

MYMO
Ai, cale a boca! E eu ficaria como Ariel? Nome de sereia?

ARIEL
Ariel é um nome unissex.

(silêncio)

MYMO
Mas...

ARIEL
Se não quiser, não tem problema, caralho! Não gosto de enrolação.

MYMO
Não, tudo bem! Eu topo. Só por um tempo ou pra sempre?

ARIEL
Pra sempre, né? Depois que acostumarmos será foda de largar.

MYMO
Mas e se a gente não se acostumar?

ARIEL
(num transe) Um nome não é nada. Um nome é inventado.
Um nome é recordado em partes.

(silêncio)

ARIEL
Prazer, me chamo Mymo.

MYMO
E eu Ariel. Prazer.

ARIEL E MYMO
Um nome não diz nada sobre uma pessoa. Há pouco tempo éramos preocupados com a imagem da nossa linhagem, do nosso sobrenome. Hoje isso está se perdendo, e graças à deus!
Às vezes dizemos e consagramos nomes de gente que nem é aquilo que a gente imagina.
Gente que apenas reproduziu aquilo que ouviu dizer. Copiou e colou. E que depois saiu dizendo por aí que foi de criação divina e existencial própria! Que ninguém é páreo para seu talento. Gente que caga igual todo mundo caga.
E aí a gente sonha. E aí a gente lê! E a gente mistifica as pessoas, os grandes mestres, as figuras públicas. Os nomes públicos! Os homens de sucesso! E a gente mistifica nossos próprios sonhos, que são terrivelmente diferentes da vida real.
Nós somos tão idiotas que uma celebridade é uma figura mistificada na sociedade.
Esse celebridade também caga, igual eu e você. E ela faz estupidez, e ela fala merda, e ela enfia coisas no cu, e mesmo que tenha feito algo grandioso e histórico, ela também vive na base do truque. Como todo mundo, ajoelhado na frente da privada!
Normalmente a gente vê e julga o que algum outro faz, melhor e mais importante. Ou com outros nos sentimos mais confiantes e bem mais qualificados, nos esbanjando na exibição e no egocentrismo. Enquanto que, o truque que você dá na vida, defendendo seus ideais e suas punhetações artísticas, são os mesmos truques que os grandes mestres dão e deram no passado. E são os mesmos truques dos idiotas que você subestima. Todo mundo se fudendo. Todo mundo está no mesmo barco cagado de conceitos e julgamentos. E todo mundo reproduzindo a mesma bosta o tempo inteiro. Comendo e cagando, comendo e cagando, comendo e cagando...
A arte é uma coisa "porralouca" da nossa existência, perdoem-me citá-la. Ela é um exemplo mórbido da nossa necessidade de expressão.
Não dá pra dizer o que é e o que não é arte. Não existe um juiz para apitar uma falta.
Ao menos que um ser divino tenha baixado no julgador e lhe dado a autonomia verdadeira mais pura de se escolher o que deve ser cultuado e o que deve ser descartado. Isso em todos os julgamentos da vida!
Creio que a arte vem de dentro, e se vem de dentro é a natureza, e a natureza tem seus altos e baixos pra expressar o sentimento do artista ao longo de nossa história. Assim como todas as ações das gerações. Na arte, nos acontecimentos, na rotina de um engenheiro.
Então a arte barroca não é mais ou menos importante que aquela musiquinha criada por uma criança de catorze anos. Nem Shakespeare é mais ou menos importante que um performer contemporâneo, que se chama Cláudio e que ninguém conhece. Nem o funk tem menos valor que Caetano.
As importâncias no geral são indiscutíveis... As importâncias são aquilo que eu conceituei e que reproduzo diariamente.
O que pra mim é considerável, pro outro não é. E assim por diante.
Mas gosto e pré-conceito não pode e não deve tirar o valor de todos.

(silêncio)

ARIEL
O que foi isso?

MYMO
Uma carta.

ARIEL
De quem?

MYMO
De um crítico.

ARIEL
Crítica positiva ou negativa? Eu não entendi muito bem.

MYMO
Não sei também.

ARIEL
Do nosso trabalho?

MYMO
O que?

ARIEL
Crítica ao nosso trabalho?

MYMO
Crítica na nossa insistência de fazer nome. Na espera “porralouca” de existir.

ARIEL
O que? Calma...

MYMO
Uma crítica em cima daquilo que a gente tanto esperou, entende?

ARIEL
Que era?

MYMO
O sucesso profissional.

ARIEL
Ai, cale a boca! Meu “lá” não era isso. Meu “lá” era aqui mesmo. No que temos agora. Meu sucesso podia ser matrimonial, se alguém quiser entender assim.

MYMO
E o que temos agora?

(silêncio)

ARIEL
Nossa. Demora, mas não tarda.

MYMO
O que?

ARIEL
O ponto e vírgula na vida.

(silêncio; eles iniciam um jogral)

MYMO
Eu gosto de couve refogada.

ARIEL
Eu prefiro ela crua.

MYMO
Cenoura.

ARIEL
Beterraba.

MYMO
Eu parei de fumar.

ARIEL
É uma luta que eu vivo.

MYMO
Eu gosto de blockbusters!

ARIEL
Eu prefiro filme francês.

MYMO
Eu amo minha família

ARIEL
Meu pai abusava de mim.

MYMO
Brecht.

ARIEL
Meyerhold!

MYMO
Lula.

ARIEL
Qualquer outra merda.

MYMO
Sônia Braga.

ARIEL
Lady Gaga.

MYMO
Café puro. Dois por dia.

ARIEL
Com açúcar. Sete.

MYMO
Real.

ARIEL
Cruzeiro.

MYMO
Roxo.

ARIEL
Verde.

MYMO
Doze.

ARIEL
Vinte e sete.

MYMO
Buceta.

ARIEL
Pinto. Pintos.

MYMO
Merda.

MYMO
Merda!

(eles terminam na gargalhada)


ÚLTIMO CAPÍTULO

(os dois se olham e não se reconhecem; ambos correm até suas xícaras e bebem mais uma vez)

MYMO
Mymo!

ARIEL
Ariel!

MYMO
Que saudade! O que tem feito?

ARIEL
Voltei pro ponto.

MYMO
Nossa, eu também. Você acredita? Não consegui abandoná-lo.

ARIEL
Você sabe se ele disse se demora?

MYMO
O meu não fala. Mas uma hora ele passa.

ARIEL
Às vezes ele passa que a gente nem vê.

MYMO
Mas não acho que pegaremos o mesmo.

ARIEL
Todos param no terminal, bobo.

MYMO
Qual terminal? Aí é que está.

ARIEL
Sei lá. Vai dar na mesma sempre.

(silêncio)

ARIEL
O que tem feito?

MYMO
Só esperando mesmo. Às vezes planto dinheiro, às vezes mudo de nome... às vezes chego lá. É a vida. Nem comprei carro nenhum, sabe. Sucesso na vida só se sabe depois que a gente morre.

ARIEL
Igual eu. Cagando muito?

MYMO
Pra caralho.

ARIEL
Nem fale. Me deu uma desinteria esses dias. Não posso com couve refogada, sabe.

MYMO
Eu amo. Viu, você curte penetração?

ARIEL
Pra caralho.

MYMO
Tô afim de reprodução dessa vez. Nada de cu. Dizem que o buzão é preferencial pra gestantes.

ARIEL
Dizem também que quando a gente chega lá, tudo fica bem. Com um filhote seria sensacional chegar lá. Mais sensacional do que esperamos que seja!

MYMO
Mas acho que tínhamos que pegar em outro ponto, então. São destinos diferentes, pontos diferentes.

ARIEL
É verdade.

(silêncio)

ARIEL
Parou de mancar?

MYMO
Parei. Topa ir caminhando?

ARIEL
Topo.

MYMO
Posso por a mão na sua bunda?

ARIEL
Pode.

(eles caminham em direção a saída)

FIM