UM C.R.Q.
QUATRO ATORES
CENA I
(com muita lentidão, o espetáculo se inicia com três atores
com alguma referência egípcia de acessório e uma pilha de tijolos; calmamente,
o quarto ator constrói sozinho uma pirâmide considerável)
OS TRÊS
Sabonete, o carro, um foguete espacial
Megabytes, cigarro, anticoncepcional
A roda, a arte, transplante de coração
Um robô em Marte, cinema e televisão
Bem antes de surgir qualquer coisa, qualquer cântico
Flagrantes de real imaginativo: raio gama, aspirina,
jogatina, pesadelos, sonhos bons, profecias
Dentro de um computador, bem menor que a sua unha
Um giga orgânico criação do meu Senhor!
Méliès sonhou com a lua
Silvio Santos trabalhou de camelô
Armstrong pisou na chuva
Hoje, eu e você, todos temos celular
Quase que um robô
Que só falta fazer café
Há cinquenta anos se dissesse que a mulher deveria ter os
direitos por igual
Entenderiam que você só pode ser uma bicha louca, de
outro mundo, retardada, surreal
Há pouco mais de cem, numa praça só de brancos, negros
olhavam de fora, e nada de sentar nos bancos que era isso que deus queria e
também queria ver a nossa guerra começar
Tudo começou numa particulazinha
Uma imagem que sabe-se lá quem inventou
Dentro da cabeça de um ordinário ser humano
Ele lembra fisicamente, um pouco de mim e de você
É isso que a gente sente, que se chama inspiração
Quando eu descobri, eu disse: isso é insano pra caralho!
E fica fácil, de um mísero bagaço transformamos em
multiplicação
De pães, de peixes e maconha. De vinho! Desculpe, qual a
diferença?
Tudo isso foi culpa de quem sonha
Quem quis, quem pôs, quem fez
Quem brica, quem canta, quem “seus males espanta”
Somos todos uma antena de transmissão
O tempo inteiro
Literalmente
Se gritarmos com o desastrado garçom
Quem se fode é todo mundo, toda gente
Presentes, não se assustem, sei que parece autoajuda
Mas se eu te conto um segredo, se eu te falo da minha
bunda
Eu juro que eu tenho coisas que parecem coincidências
Mas de segunda a segunda, testemunho evidências
Sim! Juro muito de pés juntos!
QUARTO ATOR
Oras, conte mais sobre essas coisas
Não te vejo dirigindo uma Mitsubishi ou um Corola
Bem, falar é fácil
O meu pai me ensinou, pra conseguir tem que suar
Tem que fazer valer as botas
E honrar as nossas bolas
Para as coisas conquistar
Bem, sonhar é fácil
Mas cadê o seu Jaguar?
UM ATOR
E no fim das contas, mesmo suando
Papai sonhou e comprou alguma dessas bostas?
Me diga, valeu tanto trabalhar?
(silêncio)
QUARTO ATOR
ÓCIO. Argh!
OS TRÊS
Tudo bem, quem define qual tipo de desejo é melhor?
Que tipo de sonho tem mais a ver?
Quem é mais feliz?
Eu que estou aqui, ou você que está aí?
Todo mundo precisa ter um carro pra ser bem sucedido?
Nada é pior, nada é tão grande que não se possa ter, se
quiser
Das mãos saem calor, o áudio são partículas físicas
O cérebro funciona como um o querido e amigo wi-fi
Pro meu particular, quem escolhe sou eu, e não você
Pro geral, escolhemos juntos
Você quer, toma aqui
Mesmo se o desejo for do mal
O que importa é a frequência
E quem diz é a ciência
Por favor, vilão, tente ser um pouco mais legal
Tente ajudar o animal, teste a paciência anormal
Pois somos parte de uma coisa só
Em Marte não deve ter só o pó
Onde duas ou mais cabeças pensarem em meu nome
Eu estarei vivamente e perfeitamente e ativamente presente
Pensemos juntos no fim da fome
O que diabos pode acontecer, minha gente?
(black-out)
CENA II
(as luzes se acendem e todos estão num metrô; três deles,
bem sucedidos – melhor dizendo, felizes de formas variadas – riem bastante de
nada; eles riem exageradamente de tudo, da vida, da janela, do ferro que
seguram pra não cair; o quarto ator está desanimado, o único sentado; ele pisca
escondendo a tristeza)
(depois de muitas risadas, os três cantam em cânone
alguns “Oh”, “Ah” e “La-la-lás”; pode ser também alguns “Dim-dim-dom-dim” ou “thicala
catunga kururum auê”, e o que mais; o quarto ator começa a se irritar)
QUARTO ATOR
Essas pessoas que gostam de aparecer
Dizem que sabem de tudo
Que do meu deus devo esquecer
Essas pessoas fingem alegria
Nada é real, é todo mundo fudido nessa harmonia
Nesse bacanal
Nessa putaria de gente querendo ser mais que a outra
TRÊS ATORES
Não, não, não
Você não entendeu
Não deve esquecer de deus
É dele mesmo que estamos falando
Quando foi que pareceu?
Claro que não é desse tirano que o povo prega por aí
Essa explicação comprova milagres reais
Meu irmão
Olha só pra você
No fim, nunca se esqueça de deus
Só quebre a ridícula condição de limitá-lo sem saber
Basta querer abrir os olhos que ele fala com você
QUARTO ATOR
De onde vem tanta alegria que eu não consigo ver?
Eu sou quase um camelo, já até construí pirâmides
TRÊS ATORES
Você quem escolhe
Tá se assumindo um fracassado
A primeira coisa a ser feita
É mudar o discurso falado
Eu sei que é foda, de começo é retardado
Mas assim como a criança devemos ser sofisticados
E sonhar
Senhor, sonhar
Compartilhar nossa esperança
Senhor, sonhar com abundância
Vivenciar o que queremos pro futuro e pros seus filhos
QUARTO ATOR
Amigo, eu já tentei
Eu juro que sonhei
Foi fácil acreditar quando existia tempo
Minha simpatia ao positivismo foi embora com o vento
Todo mundo se comprova com os pés no chão
Filme é filme, sonho é sonho
No real, a coisa não é assim, não
Tem coisa que a gente quer, que a gente jamais irá
conseguir
TRÊS ATORES
Um dia um homem quis virar mulher
Um dia um homem quis virar mulher
E hoje é uma coisa fácil com um bisturi
QUARTO ATOR
Mas leva tempo!
Senhores, eu juro que eu tento
Mas o mundo é uma armadilha
A terra gira sozinha, não importe o que eu ache
Nesse exato momento talvez esteja nascendo uma ilha
Uma estrela que brilha
E eu não estou sabendo e sentindo isso
Então não somos uma coisa só
Estamos perdidos
Esperando morrer
É só isso, meu amigo
Somos pó
Pó sou eu e você
(os três atores se comovem, mas
logo percebem que às vezes, com algumas pessoas, não tem mais o que fazer e
dizer, e voltam à cantoria em cânone com novas combinações de vogais e onomatopeias)
QUARTO ATOR
Esperem! Não irão tentar mais?
TRÊS ATORES
(eles riem)
Temos uma surpresa pra você
Basta você mostrar que vai querer
QUARTO
É claro que eu quero
Eu preciso de ajuda
Mas eu sou cabeça dura
Me desculpem por insistir
Mesmo que haja evidências
Não é fácil pra todo mundo
Não acredito na decência
O ser humano é um bicho mentiroso e imundo
Como vou saber em quem aqui acreditar?
Se minha mãe disse que Maria é a nossa advogada
Minha vó acreditava até em Saci-Pererê
Minha professora é ateia daquelas chatas
E minha tia vê espíritos em você
OS TRÊS
Com que frequência?
QUARTO ATOR
Todo o tempo
OS TRÊS ATORES
Eles querem acreditar
Isso vai acontecer
Se acreditar que existe fadas
Elas vão aparecer
Se acreditar no azar e na comodidade
Você vai se entristecer
Faça tudo o que quiser
Beije e sonhe com o mundo
A energia gira todos os segundos
Sem botão de pausa
Um tesão que acalma
Teste e veja você mesmo
Claro que isso leva tempo e confiança
Sei que dá medo
Volte a ser criança mesmo se está nos cinquenta
O que adianta, quem é que aguenta
Viver só pra esperar morrer?
QUARTO ATOR
Esperar morrer é um tipo de esperança
OS TRÊS
Esperar morrer é uma retardadância.
Fique quieto e venha ver
(os três amarram o quarto ator em uma corda com cintos de
segurança; eles cantam cânones românticos e divinos com a mesma linha de
sílabas; por fim, a corda puxa o quarto ator para o alto que, instantaneamente,
vibra emocionado com a visão)
QUARTO
Oh, meu deus! Meu santo magnífico deus!
Meu esquisito e inesperado poder!
O que é C.R.Q?
(ele gargalha)
Oh, meu deus! O que é C.R.Q?
O que é C.R.Q?
Meu deus, agora eu te pergunto
O que é C.R.Q.?
(gargalha)
(black-out)
CENA III
(quando as luzes acendem todos fumam; uma fumaça bastante
espessa toma todo o palco)
TODOS
Muita gente irá dizer que é besteira isso falar
Isso vai comprometer até o conceito sobre nós
Sim, ser sonhador tem suas próprias complicações
Mas posso testemunhar
Magia e previsões
Todo santo dia eu enxergo uma avenida
Quando o sinal tá verde sei que posso atravessar
Essa maquinaria dentro desse planeta louco
Pode tudo, tudo é pouco, tudo o que pode se imaginar
Hora ou outra transbordará sem mesmo perceber
O sinal tá sempre mudando, mas o próprio mato é verde
Use o tempo que não se arrepende
Atravesse sem morrer
Basta ser prudente e ter fé
E ser mais gente humana
Insistência e compaixão
E propagar a fé sem santos
Sem anjos, sem nomes
Não dar crédito à ninguém sem ser você
Da sua mão, sim, sai calor
De uma barriga, por fim, nasce um bebê
(silêncio; um dos atores entra em trabalho de parto; os
outros o acodem e o ajudam com a respiração)
UM ATOR
Você não devia fumar. Pode passar para o bebê.
ATOR EM PARTO
Você não devia se importar.
O bebê é meu!
OUTRO ATOR
Ele é nosso.
(o parto se finaliza)
ATOR EM PARTO
O que é C.R.Q.? Afinal que bosta é essa?
Eu odeio usar siglas, ninguém nunca entenderá
TRÊS
Um C
Um cântico
Um R
Romântico
Um Q
Um lance todo quântico
Um cântico romântico e completamente cheio de quiromancia
Já deu pra entender?
O que eu vim defender
Eu posso te dizer, te comprovar com a minha vida
Só tive alegrias, pois tudo o que queria
Surgiu num desses dias que a gente quase nem vê
E quanto mais você perceber
E sempre agradecer
Em breve testemunhará um mundo surreal e animal
Onde quem escolhe o rumo é todo mundo
Onde aquilo que você planta
Brota num segundo, sem dúvida, sem fundo
Sem fim, eterno
Profundo
Não é um autoajuda
É um desabafo de alguém extraordinariamente impressionado
com a grandeza dessa porra de loucura que somos
(black-out)
CENA IV
(quando as luzes acendem; um ator está vestido de bebê,
com frauda, chupeta e etc, em uma cadeirinha; os outros o vendam e amarram uma
mamadeira pendurada em um fio de nylon a uma distância de uns dois metros; posicionam
a mamadeira numa mesa, tiram a venda do bebê e saem)
(o bebê, sozinho, fica por alguns segundos apenas
brincando sozinho com o próprio pé; logo, ele vê a mamadeira e faz sinal que
quer; ele insiste em tentar pegar a mamadeira de longe; ele começa a se frustrar
e tenta sair da cadeira; sem sucesso; ele estica bem os braços tentando
alcançar a mamadeira, com toda a força do mundo; ele desiste e chora; tenta
mais vezes; tenta e tenta)
(um dos outros atores entra com a outra ponta do fio de
nylon; sem que o bebê perceba que exista um fio, o ator faz com que a mamadeira
chegue até perto da cadeirinha; o bebê a pega e bebe; black-out)
(luz; mais uma vez a mesma cena acontece; o bebê está
tentando alcançar a mamadeira; outro ator entra com a outra ponta do fio e faz
a mamadeira chegar até o bebê; black-out)
(luz; outra e última vez, o bebê, achando estar sozinho,
tenta pegar a mamadeira e ela vem até suas mãos; black-out)
(luz; por fim, com os olhos do bebê vendados, os outros
atores cortam o fio de nylon e posicionam a mamadeira no mesmo local de sempre;
eles retiram a venda do bebê e saem; o bebê, naturalmente, estende os braços
para pegar a mamadeira; os três atores enfiam a cabeça pra dentro da cena e
aguardam algo acontecer)
(black-out)
FIM