OS ÂNUS PASSAM

OS ÂNUS PASSAM

PERSONAGENS
ANIBAL
MARCUS
RAIMUNDA
CELSO CENSURA


PRÓLOGO

(os três personagens apresentam seus cus)

ANIBAL
Doze anos de homossexualidade. Três só comendo, nove revezando.

MARCUS
Três meses de uma diarreia surreal. Dois exames de próstata.

RAIMUNDA
Um estupro.

(silêncio)

ANIBAL
Consolos e escovas de cabelo, eu comecei adolescente a me descobrir.

MARCUS
Um fio terra mau sucedido por uma ex-namorada moderna. Eu nunca mais quis.

RAIMUNDA
Hemorroida, fissura anal, retocolite ulcerativa – a doença de Crohn – , pólipo e câncer. Tudo por culpa do pinto sujo do meu querido estuprador.

ANIBAL
Um cacete negro de vinte e dois centímetros por quinze dias seguidos, nas férias em Macaé. Doce. Renan, o nome.

MARCUS
Um acidente de carro feio com a penetração do freio de mão bem exato no meu rabo. Cirurgia, internação e curativos por oito meses.

RAIMUNDA
Sangue vivo nas fezes, fezes em fita – igual serpentina –, dor no reto, alternância entre diarreia e prisão de ventre, alteração do hábito intestinal, cólica, muco, cansaço, anemia, barulhos na barriga.

ANIBAL
De quatro. De frango. Em pé. De ponta cabeça!

MARCUS
Coceira. Bolhas. Pus.

RAIMUNDA
Literalmente arrombada, sem prazer.

ANIBAL
Literalmente comido, com um imenso prazer.

MARCUS
Literalmente cuidadoso e cheio de pudor. Mas quem consegue cuidar do próprio cu cem por cento?

RAIMUNDA
No meu, ninguém nunca mais tocará...

ANIBAL
Aqui tá tudo liberado!

MARCUS
Eu sou da parada da heterossexualidade.

RAIMUNDA
Ninguém. É incomparável a frequência dos nossos problemas.

(silêncio dramático)


CENA 1

(eles se olham e erguem as calças)

RAIMUNDA
Foi um prazer conhecer seus segredos mais baixos e profundos.

ANIBAL
O prazer foi todo meu.

MARCUS
Não contem pra ninguém. Pense só o quanto eu já fui zoado com o lance do acidente.

RAIMUNDA
Agora eu consigo me sentir mais tranquila com meu passado. Dá pra perceber que no cu do outro, parece que dói menos.

ANIBAL
Ou igual. Jamais saberemos.

RAIMUNDA
É. Jamais saberemos.

MARCUS
Posso garantir que ter um freio de mão enfiado no cu dói mais que bater a cara no volante e quebrar o nariz. O nariz não chega nem perto do cu.

ANIBAL
Sem dúvida. Depende de que forma estamos falando. Mas à seco, assim, quem é que aguenta? Meus pesares, amigo.

RAIMUNDA
Eu tive sorte. O filho da puta foi até que gentil comigo. Deu uma cuspidinha antes de meter.

MARCUS
Que ótimo.

ANIBAL
Na minha opinião, você deveria ter sentado e conversado com o cara.

RAIMUNDA
Que? Como assim? O que eu ia dizer? “Oi, senhor sadomasoquista que me agarrou nessa rua escura, me estupre, mas antes coloque uma camisinha nesse pau cheiroso”?

MARCUS
"Me pague um drink, que está tudo certo". Por um Martini, até eu dava se eu soubesse que não ia ter jeito mesmo, que fosse acontecer de qualquer jeito. Melhor que seja curtindo, então.

RAIMUNDA
Babaca. Você não tem noção nenhuma.

ANIBAL
Você podia ter falado exatamente isso, mesmo. A hora que você viu que não tinha mais jeito, você podia ao menos ter pedido pra ele colocar uma camisinha. Teria te poupado das consequências. "Cara, tá bom, me estupra, eu já tô fodida, mas coloca uma camisinha pra gente não ter problemas depois".

MARCUS
Ou ter falado pra ele meter na frente. Ah, mas aí tem o problema de gravidez, né? Caralho, que fita.

RAIMUNDA
Era realmente nessas coisas todas que eu estava pensando enquanto eu chorava achando que ele ia me matar, fazer sei lá o quê. Do cu do outro, parece ser fácil de falar, né?

MARCUS
Parece. Mas dói. Eu sei que dói. 

ANIBAL
Eu já me acostumei. Consigo me divertir com aquela dorzinha.

MARCUS
Eu sou da opinião de que a mulher tem que tomar cuidado. Não andar sozinha, não vestir shorts curto...

RAIMUNDA
AH, vá se foder, cara! Eu vou usar a roupa que eu quiser usar!

MARCUS
Eu sei que devia, é óbvio que isso é um absurdo, mas na realidade os caras que não se seguram quando vêem uma bunda estão aí fora. Fazer o quê?

RAIMUNDA
Eles vão me estuprar se eu estiver de burca, se eles não seguram quando vêem uma bunda. Eu estava voltando da igreja, amigão, olha que curioso!

MARCUS
Eu entendo, eu entendo...

ANIBAL
E a vida sexual pós isso?

RAIMUNDA
Eu nunca mais quis saber. Eu nunca mais nem tentarei. O filho da puta acabou com trinta e três por cento da minha sexualidade.

MARCUS
Como assim?

RAIMUNDA
Oras, eu ainda posso, se eu quiser, fazer sexo oral, e posso fazer papai e mamãe também, se eu quiser. Agora com os outros trinta e três por cento eu estou traumatizada eternamente. Jamais eu voltarei pro anal.

MARCUS
Acho que consigo te entender.

ANIBAL
Você dividiu o sexo por três. Não é só por três lugares que dá pra brincar.

RAIMUNDA
E tem outros buracos? Você ainda, se estivesse no meu lugar, teria perdido cinquenta por cento.

MARCUS
Exato. Porque não tem boceta.

ANIBAL
Só acho que sexo é muito mais que três variações.

MARCUS
É, pode ser. Tem a mão, também. Os dedos. Que dá pra enfiar no cu das minas que curte.

RAIMUNDA
É. Todo mundo faz isso todos os dias e nem percebe. Usando do cu como metáfora, claro.

(instantaneamente, os três são atacados por uma terrível dor de barriga)

ANIBAL
Caralho!

MARCUS
Folhas e milho!

RAIMUNDA
Tomara que não seja um pedaço de mim querendo sair de novo.

(eles correm ao fundo do palco e se agacham; todos com muita força e dificuldade)


CENA 2

(musical clássico)

TODOS
Eu cago com a minha bunda
Que é duas carnes rachadas no meio
No meio uma rachadura
Um buraco
Um espaço com espessura

De cócoras espero ela cair
E não acenda um fósforo
Eu posso explodir

Os ânus que se passam pertence só a ti
O ânus que a mamãe cuidou
Cuidou com amor
Limpava a nossa bunda
De domingo à segunda
Que alegria!
E continuação!

Até que eu decorei o meu nome e aprendi

MARCUS
MarCUs!

ANIBAL
Anibal!

RAIMUNDA
Raimunda!

TODOS
E eu entendi o papel
De cuidar do próprio cu
A mamãe limpou a bunda, o papai até tentou

Oh, deus! Meu deus!
Que dor é essa que o senhor me deu?
Jesus! Meu deus!
Qual o medo de mostrar?
Tem tanta gente descolado, posta que é quatro e vinte
Que quer o sexo liberado

Mas no cu rola mentiras que não podemos contar
Que é feio de falar

Minha filha, seja esperta!
A sodomia é permitida se você for hétero
É aquele tipo de hemorragia analfabeta

(todos gozam de prazer quando a merda sai)

TODOS
Ah!
Minha gente.
É quente.
Você sente?
Tá grosso.
Gostoso.
Os pêlos
Não mentem

Tá mole
E duro
Ou áspero
Uh!

(silêncio; eles se limpam calmamente)

ANIBAL
Foi bom pra vocês?

MARCUS
Pra mim foi ótimo.

RAIMUNDA
Eu tô até mais murcha.

ANIBAL
Os anos passam e é isso que acontece. O cu é uma coisa que não tem volta.

MARCUS
Ouvi dizer que tem gente que coloca as pregas de volta.

ANIBAL
Como?

MARCUS
Cirurgia plástica.

RAIMUNDA
De qualquer forma ele não será jamais do jeito que foi.

ANIBAL
Principalmente a memória. Quem já deu o cu, sabe bem que não importa se você não quiser mais dar. Deu, deu. É assim que funciona a natureza.

RAIMUNDA
Então quer dizer que mesmo eu não querendo mais dar o cu – quer dizer, querer eu até queria, mas não consigo –, isso me faz uma passiva anal eterna?

ANIBAL
Deu, deu. Por exemplo, não existe ex-viado.

MARCUS
Nem meio-viado?

ANIBAL
Você já viu alguém meio-grávida? Alguém com Meio-câncer-terminal? Meio-travesti? Se o cara gozou uma vez dando o rabo, ele é viado. Pro resto da vida.

RAIMUNDA
Mesmo se ele se curar na igreja?

ANIBAL
(ri) É sério essa pergunta?

RAIMUNDA
Claro. Eu tenho um amigo que hoje é pastor. E era uma bicha desgraçada, viu.

ANIBAL
Acredite, ele ainda é bicha.

RAIMUNDA
Imagina! Ele até casou.

MARCUS
Acredite, ele é bicha mesmo. Hoje em dia casar é sinônimo de viadice. Homem que é homem quer comer todas, não só uma.

(silêncio)

ANIBAL
Adorei a sua ideia de vida, cara. Sério. Parabéns. Achei super moderno. Você fuma maconha?

MARCUS
Não, não. Minha família é formada por militares.

RAIMUNDA
Eu já levei maconha num pacotinho num presídio.

ANIBAL
Sério? E o que você foi fazer num presídio?

RAIMUNDA
Visitar um conhecido.

MARCUS
Levou como? Não foi revistada?

RAIMUNDA
É. Eu levei lá dentro.

MARCUS
Do cu? Que coragem, menina! Imagine se o cachorro sente o cheiro.

RAIMUNDA
Do cu?

MARCUS
Da maconha. Você estaria fudida.

RAIMUNDA
Fudida eu já sou. Foi fácil de pôr lá dentro. Minha hemorroida deixou um espaço bacana no reto. Eu poderia me profissionalizar nisso.

ANIBAL
Raimunda: a profissio-anal!

RAIMUNDA
Anibal: os anos passam, os anus afrouxam. E por prazer!

MARCUS
Marcus: no meu cu só o Doutor Fritz.

(silêncio)

MARCUS
Olha, não querendo ser chato, mas já sendo, eu acho que a gente devia transcender um pouco esse assunto.

ANIBAL
Como?

MARCUS
As partes baixas – ou vergonhosas, como diz a bíblia – são assuntos fáceis de serem aceitos. Você fala cu, o garoto ri. Você fala pau, todo mundo faz aquele sorrisinho com o canto da boca. Você fala buceta, os paus levantam. Aí fica fácil, sabe. De ganhar atenção, de ganhar o publico. E aí bota maconha no meio ainda, só pra ficar mais ilegal, o bagulho.

RAIMUNDA
Eu não tenho culpa de todo mundo ter que cagar pelo menos uma vez por dia. Essa é nossa obra, Marcus.

ANIBAL
Uma escultura de barro. (ri sozinho) Barroco. (ri mais)

(silêncio)

MARCUS
Acho que se a gente transcendesse um pouco esse papo, talvez não eles não achassem que a gente tá apelando por gargalhadas, entende.

RAIMUNDA
E como você sugere essa transcendência? Todo mundo aqui sabia sobre o que falaríamos. Tá no título. Um trocadilho infame.

MARCUS
Vocês nunca estudaram comédia?

ANIBAL
Eu já.

RAIMUNDA
Meu cu é um completo drama.

MARCUS
Pinto, cu, buceta: comédia. Ombro, pescoço, cabeça: transcendência. Eis a resposta da evolução de seres quadrupedes – que a gente era – até nos tornarmos homens com a coluna ereta apontando para o céu. Entendem? Funcionamos como uma antena. A cabeça é quem manda nas frequências.

ANIBAL
Eu devo ser uma antena com duas saídas, então. Já fiz muita cagada pela necessidade da cabeça de baixo. Ai, ai. Não gosto nem de lembrar de algumas coisas, viu.

RAIMUDA
Eu também acho que tenho duas saídas. Eu não consigo me apaixonar por um cara se o pinto dele não for legal.

(silêncio)

MARCUS
Ainda estamos falando de pintos.

ANIBAL
E tem assunto melhor, meu deus?

RAIMUNDA
O assunto não é pinto, meu querido. É bunda.

ANIBAL
Também é bom. Mas perdi a prática de adorá-la. Eu costumava ser ativo somente pelos pudores. Dá uma impressão que você é menos gay só porque come.

MARCUS
Eu?

ANIBAL
Não.

RAIMUNDA
Eu, então?

ANIBAL
Não, gente. Foi modo de dizer. Eu falei “você”, no sentido geral.

RAIMUNDA
Ah, tá.

MARCUS
Tá vendo como o cu só trás problemas e paranoias pra nossa sociedade. Nem os caras que curtem conseguem aceitar.

ANIBAL
É. Conheço várias bichas que são loucas pra dar, mas pagam uma de hétero curioso e metem reprimidos. Sonhando em estar no lugar daqueles que dividem aquele momento especial. Já ouviu dizer que a gente mete pensando no como a gente gostaria de ser tratado se você fosse a outra pessoa? Já ouviu?

MARCUS
Eu?

ANIBAL
Ai, porra! De novo?

RAIMUNDA
É. Tem razão. Eu, quando o estuprador me atacou, tava pensando exatamente que se eu fosse homem eu enfiava meu pau no cu daquele desgraçado.

(silêncio)

RAIMUNDA
Como diz o ditado: no cu do outro é refresco, né?

ANIBAL
Eu preferiria uma jarra bem grande desse refresco no meu, mesmo. Uns vinte e dois centímetros de preferência. Negro. Ai, que eu até arrepio.

MARCUS
Eu sou a favor de mudarmos de assunto. Tá começando a feder, a repetição das coisas.

RAIMUNDA
Por isso tantas nomenclaturas diferentes para esses órgãos. Pra não ficar repetitivo e clichê.

MARCUS
Vamos mudar de assunto?

ANIBAL
Tá bom, tá bom. Vai, comece.

MARCUS
Bom... é... o nariz. O nariz é uma coisa legal.

RAIMUNDA
Eu tenho vontade de fazer uma plástica.

ANIBAL
Eu adoro cheirar saco.

(silêncio)

ANIBAL
Desculpem. Não tenho culpa. Minha antena de baixo é superiora.

RAIMUNDA
Tudo bem. Você sabe por que um relacionamento heterossexual é mais equilibrado?

ANIBAL
Não. Que besteira.

RAIMUNDA
É sério. É exatamente por causa disso. Disso que você disse. Um homem e uma mulher faz uma mistura de instinto sexual com sensibilidade. Dois homens, imagine. É só putaria.

ANIBAL
Cala a boca.

MARCUS
E duas mulheres? Eu acho legal.

RAIMUNDA
Affe. Duas mulheres é mais poético que sexual.

MARCUS
Sério? Que saco.

RAIMUNDA
Você nunca verá uma mulher estuprando um cara, por exemplo. 

MARCUS
Óbvio.

ANIBAL
Nossa. Pode ser que você tenha razão mesmo. Uma vez eu fui numa festa gay e aí – eu lembro bem – tinha um casal de dois homens se pegando. E aí eles não pensaram duas vezes, nos primeiros dez segundos já estavam com a mão um dentro da calça do outro. Sem antes saber o nome do outro! Um tesão descomunal. Aí na mesma festa tinha duas amigas minhas sapatão se pegando – adoro elas. Meu, e elas colocaram até uma música. E acenderam umas velas e foi uma pegação quase que coreografada, sabe.

RAIMUNDA
Ai, que bacana, Anibal.

ANIBAL
Interessante, né?

RAIMUNDA
Muito. Dá até vontade de virar sapatão também. Mas eu não gosto.

ANIBAL
É. De qualquer jeito, óbvio que logo depois uma colocou a mão dentro da calça da outra também. Não é necessariamente uma regra. E aí vocês mulheres tem uma vantagem de poderem gozar com mais discrição e sem volumes salientes.

MARCUS
Verdade. Que maluquice.

RAIMUNDA
Em compensação nós levamos toda a culpa e somos nós quem tomamos no cu literalmente.

MARCUS
Como assim toda culpa? Lá vem feminismo.

RAIMUNDA
Lá vem feminismo mesmo, ouviu? As pessoas lá do meu bairro começaram a comentar, por exemplo, que a culpa de eu ter sido estuprada era minha mesmo.

MARCUS
Ah, isso é coisa que esquerdista fala!

RAIMUNDA
Tô te falando. Falaram na minha cara:“Tava fazendo o que ali naquelas horas? Com essa saia, né?”. E meu deus, como eu pedi pra que isso acontecesse. Eu pedi com tanta força, com tanta força, que deus não teve piedade nem quando parte do meu reto saiu pra fora.

ANIBAL
É, minha filha, deus atende a tudo e a todos.

RAIMUNDA
Deus vai ter que me pedir desculpa, se ele existir.

ANIBAL
Nossa.

(silêncio)


CENA 3

(repentinamente, os três sacam seus celulares e se infiltram hipnotizados)

RAIMUNDA
Meu deus do céu. Olha que absurdo. A Jéssica lá da igreja acabou de postar a foto de um cu.

ANIBAL
Sério? Que moderna.

RAIMUNDA
Ah, não é. Parece um cu, mas é uma boca fazendo beiço. (ri) Boa.

MARCUS
Assim? (faz beiço)

RAIMUNDA
É.

MARCUS
Parece mesmo um cu?

RAIMUNDA
Não o meu.

ANIBAL
Nem o meu.

RAIMUNDA
O meu seria mais ou menos assim. (abre totalmente a boca) Eu não tô exagerando. Eu tenho graves problemas. E porque eu sou mulher.

(continuam hipnotizados com o celular)

MARCUS
Olha, isso sim é uma foto de um cu. Tá ensinando o que eu devo fazer com a minha opinião.

RAIMUNDA
O que? Como assim?

MARCUS
Pegue a sua opinião, deite de bruços, e enfie bem lá dentro do rabo.

ANIBAL
(ri) Bacana. Gostei. Se não tiverem lugar pra enfiar a opinião de vocês, estou à disposição.

(continuam vidrados; Anibal abaixa as calças e tira uma foto do próprio cu)

MARCUS
O que está fazendo?

ANIBAL
Vou causar uma revolução. Vou compartilhar.

MARCUS
O que? Você vai postar uma foto do seu cu no Facebook?

ANIBAL
Ah, do nariz pode?

RAIMUNDA
Vai ser bloqueado.

MARCUS
Claro, o nariz tá na parte dos transcendentes. É super diferente.

ANIBAL
Eu já disse. Minha transcendência tem diversos pontos matriz. Pronto. Olha! Duas curtidas já. Esse povo adora uma sacanagem. Meu cu é bonito.

RAIMUNDA
Vou curtir também pra te dar status. Antes que apaguem.

ANIBAL
Curta também, Marcus.

MARCUS
Eu não. Todo mundo vai achar que eu sou viado pra ficar curtindo cu de homem.

ANIBAL
Ai, você é daquele tipinho que tem medo de falar que um outro homem é bonito porque fere com a sua masculinidade, é isso? É só curtir a foto de um amigo, bobo.

MARCUS
Do cu de um amigo, né, cara? Isso não é natural.

RAIMUNDA
Mas se fosse uma foto da minha bunda, aí podia, né?

MARCUS
Da sua bundinha eu fazia até corrente. Se gosta curte, se quer comer compartilha, se é viado só olhe.

ANIBAL
Faça as piadinhas que quiser, mas deixe os viado quieto, ouviu bem? Viado não é bagunça pra ficar tirando sarro de viado em piadinha.

MARCUS
Esse mundo tá muito chato.

(silêncio; uma outra dor de barriga os ataca)

ANIBAL
Cacete!

MARCUS
Leite com manga!

RAIMUNDA
Agora é a porra do meu intestino querendo virar um amuleto externo!

(eles viram o cu para a plateia)

TODOS
Veja o charuto bater na portinhola
Pondo para fora a língua feita de barro
Não importa se você é uma senhora
Todo mundo caga
Todo mundo adora
Não tem hora marcada
Ao menos que tome Actívia
Ao menos que o cu seja quietinho
E quentinho
E cheirosinho
E sem segredos pra compartilhar no Facebook

Eu gostaria de um mundo mais bonito
Onde as pessoas olhariam pra minha bunda
E elas cuidariam assim como fez minha mãe
Um compartilhamento que a vida não afundaria
Um encantamento sem pudor e sem frescura
Que desencadearia um avanço na evolução

Em breve estaríamos com a bunda apontada para o céu


CENA 4

(Celso Censura entra grandiosamente)

CELSO
Vamo parar com essa porcaria aqui! Vai! Todo mundo abre essa porra desse cu que eu quero ver. Acabou a mamata de artista contemporâneo querer fazer o que bem quiser sem fiscalização! Todo mundo! Mostra a bunda, vai! Mostra a bunda! Cadê esses cuzinhos? Cadê esses cuzinhos do artistinha moderno, hein? Rápido! Rápido!

(ele confere o cu dos personagens)

CELSO
(em Anibal) Bicha. Passiva. (em Marcus) Freio de mão? Como é que foi isso?

MARCUS
Longa história, senhor.

CELSO
(em Raimunda) Estupro. Pra ficar mostrando cu em peça de teatro, boa gente que não era, né? Quer ser respeitada, se dê o respeito. Como eu vou saber que você não é uma puta querendo dar numa rua escura da noite?

(Celso surge com um rolo de fita isolante)

RAIMUNDA
O que vai fazer?

CELSO
Antes de tudo, vou cantar uma bela canção dos anais da criatividade.

ANIBAL
Ai, céus.

CELSO
(romântico) Deus
Está sobre todas as coisas
Ele olha, ele sabe de tudo
Ele sabe bem dos seus segredos anais

Meus
Irmãos, vamos compartilhar
A alegria de sermos limpinhos
De não deixar ninguém ali se aproximar

A vida passa e as pregas não voltarão
Não adianta plástica
A regra é clara
Não adianta ser “nego bão”

Deus sabe bem dos seus segredos anais
E não nos julga como se fôssemos animais
Transcender é a importância da nossa vida
Cuide do seu nariz
E deixe que eu isole o seu cu, querida
A vida passa num raio, num triz
Com cu arrombado eu não saio, ninguém tem coragem de assumir
Assim não dá pra ser feliz

Deus...

(silêncio; com muita violência, Celso cobre o cu dos personagens com a fita isolante)

CELSO
Segundo as regras do bom costume e da continuidade social cristã, todo cu deve ser registrado e monitorado pela corporação RSA. Repressão Sexual Amiga. Meu nome é Celso Censura e acabamos aqui com a apelação pelas partes vergonhosas.

(os três personagens saem cabisbaixos; Celso se ajeita em uma cadeira para discursar; ele faz um sinal para um contrarregra distribuir mini espelhos para a plateia)

CELSO
Esse é um brinde muito útil. Não, não. Não é para olharem para o próprio nariz, por favor. Hoje, o título e o trocadilho já explicam o que é que vocês devem olhar. Só conhecendo o próprio rabo que conseguiremos evoluir e esquecê-lo de vez. Vocês precisam ser classificados! É como um cão que reconhece o coleguinha pelo cheiro do cu dele. Vamo lá. Todo mundo que pegou um espelho. Comigo. (ele abaixa as calças e incentiva que o público faça o mesmo; coloca o espelho onde consiga enxergar o próprio cu) Vejam bem, meus queridos. Esse é o cu de vocês. Veem? Estranho, né? Todo mundo aqui tem esse buraquinho na rachadura da bunda. Isso é um cu. E pra que? Vocês sabem me dizer? Pra cagar! E só. Você come, come, come e depois caga. Essa é a lei da natureza. “Mas Celso Censura, será que essa é a única função mesmo? Tem gente que arrepia.”. Minha gente, se tivesse uma outra função, por que tanto tabu em cima dessa ideia libertina? Me respondam. Por que? O tabu, o que é o tabu? O tabu nada mais é que nosso instinto gritando que aquilo é estranho e errado e que devemos reprimir pra que ninguém fique nunca constrangido. (pausa) Quem aqui já deu o cu? Sejam sinceros. Podem falar, o que acontece aqui, fica aqui. O povo de teatro não costuma ser fofoqueiro. Podem falar, por favor. Todos vocês que já deram o rabo irão sofrer as consequências da perda das pregas. Quando deus os julgar, ele vai contar cada uma delas pra ver se estão no lugar. Dizem que são doze, iguais os doze apóstolos e as doze estrelinhas daquele arco da cabeça de Jesus. E não adianta plástica. Não dá pra enganar deus. Ele saberá. Ele reconhecerá a sua criação. Ele saberá se você usou mais a antena vergonhosa do que a antena transcendente. Pode ter certeza. E Jesus não ri de coisas fúteis. Gente diplomada, gente culta não vai ir assistir uma peça com a palavra ânus no título. E não vai rir das piadas com cu, caralho, buceta e bunda. Porque ele é mais inteligente que isso. Ele é cristão. 

(uma dor de barriga ataca Celso)

CELSO
Ai, é bosta. Juro que minha história é só bosta do almoço! Juro por deus!

(ele vai até um canto e caga; Anibal, Marcus e Raimunda entram dançando toscamente)

TODOS
Vai censurar 
Quem te pariu
O cu é meu e eu faço que eu quiser
Se eu quiser dar
Quiser chupar
Só apalpar
O dedo enfiar
Ou defecar mesmo
Nos encaixar, sexo
Tudo o que eu fizer com os ânus que se passam interessa só a mim
Só a mim, só a mim, só a mim

Eu só queria que ninguém tivesse a vergonha de contar a história das suas genitálias
De ter medo de mamilo
Cu, boceta
Pau, virilha
E tudo aquilo que a gente nem pode falar

Ficar nu ainda choca por que, senhor?
Todo mundo é fisiologicamente igual

(eles tiram a roupa por completo)

TODOS
E vá cagar
Se alimentar
Cagar de novo
Cagar, cagar
Depois comer
E então cagar
Comer, comer
Para crescer
E finalmente a disenteria te fará enlouquecer

Porque não é só pra isso que deus inventou esse buraco
Ele queria mais, ele queria o ponto G
Fez o pelo arrepiar ali
Quando sai ou quando entra aqui
Quando come ou quando tenta lá
Atenta, tenta

Ah, tenta uma cuspida!

Não tenha vergonha se você é um passivo carente
Se tem o rabo quente cheio de atitude e emoção no cu
Há romance e há beleza mesmo nas partes indecentes

Estou tão entalado, poeticamente
Que da minha bunda vai sair um pedaço do meu coração

(Celso grita fazendo muita força)

CELSO
É a porra do meu coração! É a porra do meu coração! Oh, deus! Oh, deus! Eu acabo de cagar o meu coração!

TODOS
Quem tanto fala é quem tem o que esconder.
Quem se reprime finge que está tudo bem

(num estrondo surreal Celso Censura não se aguenta e se masturba loucamente)

TODOS
Quem tanto fala é quem tem o que esconder.
Quem se reprime finge que está tudo bem
Quem tanto fala é quem tem o que esconder.
Quem se reprime finge que está tudo bem
Quem tanto fala, quem tanto fala
Quem tanto fala...

CELSO
Tudo bem! Puxa vida. Eu sinto um vazio. Um vazio que precisa ser preenchido. É aquele mesmo vazio. Que você e você e você sentem. É químico! É só sexo! Não é um monstro. Eu tenho medo. Eu tenho muito medo. Não é medo. É vergonha... eu tenho vergonha, eu acho... (pausa) Algum de vocês poderia me descabaçar? 

ANIBAL
O que?

CELSO
Eu não aguento mais! Eu sou a vítima! Eu persigo porque eu sofro! Eu quero livrar a barra do meu cu! Algum de vocês poderia me descabaçar, por favor? 

ANIBAL
Eu não posso porque eu sou só passivo agora.

RAIMUNDA
Eu não tenho pênis, se eu tivesse...

MARCUS
Eu sou heterossexual. Não curto bunda de homem.

CELSO
Oh, céus! E o que eu faço agora? Eu acho que é deus me mandando uma mensagem pra eu continuar com a missão de celibato e caça aos libertinos tudo isso. 

TODOS
Não!

CELSO
Pode ser...

ANIBAL
Tenta com uma escova de cabelo. Escova de cabelo é massa. Mas não a parte da escova, o cabo, pelo amor de deus.

MARCUS
Exame de próstata é quase a mesma sensação, eu acho. Porque eu nunca dei o cu.

RAIMUNDA
Ou saia com um decote numa rua escura. Que tal? Quem sabe?

CELSO
Vocês estão me desviando do caminho. Vocês são o demônio. (chora) 

MARCUS
Porra, o cara tá chorando...

RAIMUNDA
Que caminho, meu filho! Acorda.

ANIBAL
O caminho de recalcado infeliz.

RAIMUNDO
Eu também sou infeliz pra porra, cara. Para de chorar!

MARCUS
Quer liberar, libera, cara. Ninguém aqui tem preconceito, não. Eu só não curto muito. Tenho um monte de amigo que curte dar o rabinho. (ri)

(silêncio)

MARCUS
Que foi, gente?

ANIBAL
Qual a graça, porra?

CELSO
Vamos fazer assim então: só um beijinho?

ANIBAL
Oi?

CELSO
Um beijinho de cada um, pelo menos. E eu libero vocês da censura. Eu ainda sou autoridade nesse local. Posso estar saindo do armário, mas continuo sendo crítico teatral e o Celso Censura. E não contem nada pra ninguém, ouviram bem?

MARCUS
Não beijo boca de homem nem fodendo.

CELSO
Eu estou pedindo, mas na verdade é uma ordem. Ou vocês me dão um beijo ou eu mato cada um de vocês. (saca um revólver)

ANIBAL
O que é isso?

RAIMUNDA
Pelo amor de deus, moço!

MARCUS
Tá bom! Um beijinho na boca não vai me fazer virar viado. Vai?

ANIBAL
Não existe meia-grávida, meio-morto. Não existe meio-gay.

CELSO
Ninguém falou em beijo na boca, amigão. Eu quero um beijinho grego.

OS TRÊS
Um beijinho de grego. Porque somos artistas e a arte teatral veio da Grécia. Faz todo sentido a minha necessidade fisiológica artística ser tão depravada. 

(eles pensam e acenam com a cabeça; Celso fica de quatro e os três, um de cada vez, beija o cu dele ao som de uma música épica)

CELSO
Ótimo. Obrigado. Não contem pra ninguém. Não deixe que vejam vocês falando sobre esse assunto de novo. Cu é uma coisa muito suja. E deve ser feita em silêncio. E nos cantos em segredo. Entre quatro paredes...

(Celso sai misterioso)

ANIBAL
Doze anos de homossexualidade. Três só comendo, nove revezando. O cu tá frouxo.

MARCUS
Três meses de uma diarreia surreal. Dois exames de próstata. Um acidente de carro. O cu tá frouxo.

RAIMUNDA
Um estupro. O cu tá frouxo.

TODOS
Oh, deus! Meu deus!
Que dor é essa que o senhor me deu?
Jesus! Meu deus!
Qual o medo de mostrar?
Tem tanta gente descolado, posta que é quatro e vinte
Que quer o sexo liberado

Mas no cu rola mentiras que não podemos contar
Que é feio de falar

Minha filha, seja esperta!
A sodomia é permitida se você for hétero
É aquele tipo de hemorragia analfabeta

Em segredo
Escondida
No escuro
Quando o seu cu não me afeta
O seu cu não me afeta
Quando o seu cu não me afeta.

(black-out)


FIM





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