ATO

ATO

PERSONAGENS
LULU
PABLO LEÔNCIO
EDILAINE

CENA I

(Pablo Leôncio está sentado sozinho num foco em cena; enquanto a plateia entra ele observa curiosamente e atentamente cada espectador, um tanto malicioso; quando todos se acomodarem ele pigarreia e inicia)

PABLO LEÔNCIO
Eu sou ator. (com desdém) Tenho registro profissional. Eu canto, também. Gosto de cantar. Danço. Eu danço. Muita gente é também. Gente boa, gente ruim. Gente estudada, gente achada. (toscamente adolescente) Mas isso tudo não é pra qualquer um, não. Eu gosto de falar que eu sou ator, sabe. Quando eu vou fazer algum cadastro, quando alguém pergunta. Eu encho a boca. E cuspo orgulhoso. Atores são assim. Os bons sabem que são bons, possuem o melhor camarim e esbanjam confiança numa simples tossida. Confiança é tudo na imagem de um ator. Sem confiança um ator se torna um eterno colegial nas artes. (pausa) Ouso dizer – não posso afirmar cem por cento –, mas acredito que isso tudo talvez até seja uma baita de uma camuflagem pra cobrir uma carência existencialista mais profunda que a de um contador, por exemplo. Ou talvez seja sem-vergonhice mesmo. Não, é? (pausa) Desculpem, não posso ser simples, generoso, atencioso com todo mundo. Eu sou um ator. Porque quando eu estou no palco... Ah! Quando eu estou no palco é isso aqui. Percebem? Vocês me olhando. Me dando real atenção, até pagando pra me ouvir falar. Tem como não viciar nesse caralho, gente? Não tem. E aí depois vem os paparicos. E os aplausos. E aí as pessoas querem te adicionar freneticamente no Facebook pra dar parabéns depois da peça. E as pessoas que convivem com você não querem nada contigo, mas quem te assiste quer dar o rabo pra você. (ri) É muita carência. E eu sei que tem muito ator que vai assistir uma peça de teatro e tem inveja do coleguinha que tá no palco, na necessidade de estar em cena o tempo todo. Eu sou assim, por isso posso falar. Nói sômo bicho feio, cara. Pode crer. Eu não sou nada inteligente, tenho uma porrada de contas pra pagar – igual todo mundo. Me aproveito da minha profissão pra trepar, pra entrar nas festas de graça, pra convencer as pessoas daquilo que eu acho que é mais justo de elas pensarem. E aí o povo lá de fora, e os de dentro também, vão um endeusificando o outro. Na medida que chega uma hora que as pessoas esquecem que você também caga. Que todo santo dia você também senta na privada e caga, caralho. É a mesma coisa. Eu não sou ninguém, odeio tietagem, odeio que as pessoas queiram saber quem eu sou. Mas eu amo que as pessoas precisem e queiram me olhar, me ver, falar de mim, quererem trepar comigo. Mesmo que eu não queira. Não é um absurdo de controvérsias? Pois bem. (pausa) Eu tenho medo de morrer aos vinte e sete.

(Edilaine entra)

EDILAINE
É nada. Você quer. É isso o que você mais quer. A coisa que você mais quer nessa vida é ser tratado profissionalmente com o respeito que você acha que merece. Eu sei que é. É um carma não ser nada. Não ser ninguém. Mas é foda perder parte da privacidade. Você não quer ser tratado como a Madona, mas isso é o que você fala. No fundo, você queria ser a Madona. Que as pessoas babassem. Por anos. Um título. Rei, rainha, mestre. O que mais teve, o que mais se sobressaiu em tal época. Você bem que gostaria de morrer aos vinte e sete pra entrar na lista das lendas. Você não é cantor. Você canta pro teatro. Teatro não existe isso dos vinte e sete, o mínimo exigido é morrer em cena. Numa tragédia. Com plateia ou sem plateia. Estaria preparado pra não terminar o serviço? Virar lenda é uma bosta, já que você não estaria mais aqui pra levar os créditos.

PABLO LEÔNCIO
Talvez seja uma forma de nos eternizar.

EDILAINE
Cara, pegue uma foto sua, embrulhe num pacotinho e enterre num lugar onde você tem certeza que nunca acharão. E nunca mais desenterre a sua foto. É a mesma forma de eternização.

PABLO LEÔNCIO
Não é a mesma forma. Uma foto enterrada ninguém nunca vai ficar sabendo.

EDILAINE
Exatamente. Quando você morrer, nada mais vai importar dentro dessa sua cabecinha. E esses conceitos de importância não terão mais sentido nenhum, porque os rainhos daí de dentro irão parar de te eletrocutar. Ou seja, naquele momento você não terá mais importância. Talvez até fique alguma ideia propagada, alguma ajuda no avanço, mas de mais, daqui cinco mil anos, as lendas serão ninguém. Pó. Que Zeus nos perdoe, não é?

(Edilaine encara a plateia e se destaca na luz)

EDILAINE
Eu sou atriz. Tenho registro profissional. Sou uma fudida. Nunca nem leram os editais que mandei pras leis de incentivo, que eu tentei pelo meu grupo. É. Eu sou do tipo: dona de grupo. Fiz um curso bacana de teatro e adoro falar que eu sou atriz, também. Posso não ser lá grande coisa, mas dou pro gasto. E dou pra caramba, viu. E quando eu digo pra caramba é pra não dizer pra caralho. Porque eu gosto de dar, sabe. De verdade. Sem exagerando nos trocadilhos. Foi a profissão que mais me acolheu, pra não precisar virar prostituta. Sem preconceitos. Eu acho que as pessoas tem que dar mesmo e foda-se. Dar e comer. Todo mundo. Eu mesma fumo um baseadinho. Gosto de falar que fumo porque passa uma imagem de descolada – porque atriz careta é uó! Enfim. A vida de atriz não é pra qualquer uma. Se o sexo feminino é tão forte – como ultimamente tem se espalhado – nós atrizes somos hiper mega poderosas a mais que as outras mulheres. É assim que somos. Não tem como tentar mudar.

(Lulu entra)

LULU
Atriz? Você é atriz? Mas é tipo novela?

EDILAINE
Ai, meu saco. É só novela que você acha mesmo que um ator faz ou você tá tirando com a minha cara, menina?

LULU
Não. Desculpe. Eu fiquei curiosa. Eu já tinha ouvido falar de gente como você, mas eu nunca tinha visto alguém assim antes.

EDILAINE
Assim como? Eu também cago, garota, me penteio. Eu sou normal.

LULU
Não. Eu vejo alguma coisa. Você tem um brilho.

EDILAINE
Menina, você tá tomando meu bife inteiro.

LULU
Espera! Mas você não quer fazer novela? Você é tão bonita. Tem cara. Acho que se você tentasse ia ser incrível.

EDILAINE
Eu nunca faria uma novela.

LULU
Ué, e por que não? Você ia ficar famosa, todo mundo ia te conhecer, todo mundo ia querer namorar com você. Você ia ter dinheiro e depois ia ser entrevistada no programa do Jô. Você não acha legal? Ai se eu fosse você. Eu ouvi dizer por aí que fazer teatro não dá muito dinheiro. Eu mesma acho que nunca fui ver uma peça pessoalmente.

EDILAINE
É por culpa de gente como você que a gente não ganha dinheiro, então. Valeu, lazarenta.

(silêncio)

LULU
Desculpe.

EDILAINE
(desiste) Tudo bem. É culpa da minha gente também que a gente não ganha dinheiro. Mas não, eu não me interesso por fazer novelas. Você quer tirar uma foto? Vamo logo com isso.

LULU
Não, não precisa de foto, não. Obrigada. Eu acho que eu gostaria de fazer uma novela.

EDILAINE
E por que?

LULU
Sei lá. Nunca fiz. Por que você só gosta de fazer teatro? Você nunca fez novela também. Nem sabe se é legal.

EDILAINE
Não me interessa. Só isso. Eu gosto de fazer teatro. E acho que se você quer fazer uma novela um dia você devia começar – antes de qualquer coisa – no teatro, sabe. É o mínimo de gratidão na iniciação.

(uma música grandiosa e confiante mostra Lulu recebendo uma luz divina com a mensagem que ela esperava; ela finalmente decide que quer ser atriz, de repente)

LULU
Meu deus. Você tem razão. Se a gente quer realizar um sonho, a gente tem que correr atrás, não é?

EDILAINE
Oi?

LULU
Foi ótimo ter te conhecido. Eu acho que eu decidi o que quero fazer da vida. Aquilo que me motiva.

EDILAINE
E o que é?

LULU
Teatro.

EDILAINE
Oi?

LULU
Exatamente. Já tinham me falado que era pra eu fazer quando eu era mais adolescente, porque eu era muito tímida. Mas eu sempre fui adiando um destino, eu acho. Era essa a mensagem que eu esperava, moça. Como é seu nome mesmo?

EDILAINE
Edilaine Corrêa. Meu DRT é o número zero, dois...

LULU
O que é que eu faço? Como eu faço? Eu começo por onde? Você consegue arranjar um papel pra mim na sua peça? Eu faço qualquer coisa, contra-regragem, qualquer coisa. Seu nome é como mesmo?

EDILAINE
Edilaine.

LULU
Edilaine, meu nome artístico será Lulu Amarantes. Anota aí. Não. Lurdinha Polly. Não, Lurdinha é feio. Lu Albuquerque.  Lurdes Albuquerque. Luque Albuquerque. Joyce. Com ípsilon. Ai, não sei! Preciso de ajuda.

PABLO LEÔNCIO
Como é seu nome?

LULU
Luciana Cibele da Silva.

EDILAINE
Por que Lurdes, então?

PABLO LEÔNCIO
Você não gosta dos sibilos?

LULU
O que?

PABLO LEÔNCIO
Você tirou os sibilos do seu nome. Seu nome é sibilante. Luciana Cibele da Silva.

LULU
Ah, não. Não gosto. Tira os sibilos.

PABLO LEÔNCIO
Que tal, só Lulu?

LULU
Como?

PABLO LEÔNCIO
Lulu. Só Lulu. Tá na moda nome único.

LULU
Hum. Gostei. Lulu, a atriz. And the Oscar goes to...

PABLO LEÔNCIO
Lulu! (ri)

LULU
(ri junto) Gostei.

EDILAINE
Ai, meu deus do céu. Incentiva. Incentiva a estupidez. A classe artística tá indo pra merda.

PABLO LEÔNCIO
Deixa ela. Ela vai aprender.

EDILAINE
Ora, menina. Quantos anos você tem?

LULU
Vinte e quatro, por que?

EDILAINE
Tá um pouco tarde pra começar, não acha?

LULU
Tarde?

EDILAINE
Eu comecei aos oito anos de idade, minha filha.

LULU
E você?

PABLO LEÔNCIO
Comecei com dezoito. Já tinha feito uma peça na escola.

LULU
Você acha que não tem espaço pra mim?

EDILAINE
Ai, menina, não é isso! Eu acho que a vida não é um sonho de ir pra novela, entendeu? Não é assim que funciona a nossa importância.

PABLO LEÔNCIO
Mas como é que a gente pode falar de importância pra alguém? O que importa pra mim não importa pra você.

EDILAINE
Mas existe um coletivo, Leôncio! Existe um coletivo! É toda uma história, uma luta, pessoas que ralaram pra falar alguma coisa. Poxa, Leôncio. Você sabe bem. É só pra isso que você faz teatro? Pela fama?

LULU
Eu queria conhecer o Malvino Salvador. Ele é lindo, não é?

EDILAINE
Não adianta discutir. (vai sair) Eu não vou falar pra que serve a arte porque você já sabe que não é pra essa merda.

PABLO LEÔNCIO
Não tem como a gente discutir o que é arte e o que não é? E se for uma inspiração divina mandando essa garota falar alguma coisa pro mundo seja qual jeito for?

EDILAINE
Numa novela, Leôncio? Pelo amor de deus. O que é que ela vai falar lá?

PABLO LEÔNCIO
Eu não sei, Edilaine. Sei lá. Sei lá. Você tem razão. Acabe com o sonho da menina que você nem conhece.

EDILAINE
Eu tô falando pro bem dela, Pablo, puta que o pariu! Menina, Luciana, olha, desculpa, mas a vida não é linda desse jeito. Você vai sonhar e os sonhos se realizam e aí um sonho realizado vira rotina. Ponto final. Você não vai chegar a namorar o Malvino Salvador, porque por um acaso ele já é casado e tem dois filhos. O teatro tem mais coisa, sabe. A arte de interpretar tem outro sentido, entende? Tem uma profundidade que, nem quem é da área – às vezes – sabe. Te juro.

LULU
Mas eu quero, poxa. Eu quero poder fazer uma novela um dia. Por que não? Por que tanto preconceito?

PABLO LEÔNCIO
Se for pela experiência, vale tudo. Tudo.

(silêncio)

EDILAINE
Desculpem. Eu não vou discutir. Você sabe o porquê que você gostou dela, Pablo. Não sabe? Se a gente tivesse em qualquer outro lugar que não fosse aqui e fosse outra ocasião, você iria achar essa menina fútil e sugeriria pra que eu desse um murro na cara dela. Mas você sabe o porquê.

LULU
Por que?

(Edilaine sai)

LULU
Por que?

PABLO LEÔNCIO
Por nada. Na arte, garota, vale tudo. Vale até ser idiota. Não tem um deus onipresente que julgue espetáculo melhor e espetáculo pior. Foda-se a boca das pessoas.

LULU
Em que tipo de ocasião você me acharia fútil e sugeriria que ela desse um murro na minha cara?

PABLO LEÔNCIO
(se cansa) Sei lá, garota. Sei lá. Você é bonitinha, sabia? Pode até que dê certo.

LULU
Sério? Você acha?

PABLO LEÔNCIO
Sim. Eu conheço algumas pessoas do meio.

LULU
Sério?

PABLO LEÔNCIO
Sim. Você curte um vinho?

LULU
Não muito. Mas aquele que é docinho eu gosto.

(Pablo sai e volta com uma garrafa)

PABLO LEÔNCIO
Você já montou alguma peça?

LULU
Nunca. Eu acho que eu tenho um pouco de vergonha ainda. Mas hoje eu sinto que eu tô destinada ao teatro.

(Leôncio vai se aproximando sorrateiramente de Lulu)

PABLO LEÔNCIO
Tem uns cursos bacanas que você paga e faz um intensivo de três meses. Sai com diploma e tudo. Depois de um ano dá pra gente fazer um esquema pra você já tirar o registro profissional.

LULU
Poxa, um ano?

PABLO LEÔNCIO
Calma, menina. Tem tempo. Você é nova ainda.

LULU
Ela disse que eu tô muito velha já.

PABLO LEÔNCIO
Ela não vê talento no que eu vejo.

(silêncio; ele entrega a taça e olha bem no fundo dos olhos dela; ela ri envergonhada)

LULU
Eu tenho a impressão de te já ter te visto em algum lugar.

PABLO LEÔNCIO
Eu sou comum.

LULU
Hum.

PABLO LEÔNCIO
O vinho, garota, tem um grande significado pra nós atores, sabe.

LULU
É mesmo?

PABLO LEÔNCIO
Teve uma peça que eu fiz – na minha época dionisíaca – que se tirassem todas as cenas que a gente colocava vinho nas taças, reduziria o espetáculo em trinta e dois minutos. É sério. Eu cronometrei.

LULU
Nossa.

PABLO LEÔNCIO
Beba.

(ela obedece)

LULU
Nossa. É forte, né?

PABLO LEÔNCIO
Forte. Quente.

LULU
Que legal. Eu sempre só tomei aqueles vagabundos.

(silêncio; os dois ficam num silêncio constrangedor por alguns segundos)

PABLO LEÔNCIO
Eu já fiz uma peça que eu ficava peladão, sabia?

LULU
Mentira. Você?

PABLO LEÔNCIO
É. É uma delícia.

LULU
Mas você não ficava com vergonha?

PABLO LEÔNCIO
Ué, quando tá calor a gente não tira a roupa?

(ele tira a camisa calmamente)

LULU
(ri envergonhada) É. Tira.

PABLO LEÔNCIO
Então. É igual.

(outro silêncio; Pablo fita Lulu esperando alguma resposta)

PABLO LEÔNCIO
E então?

LULU
Então o que?

PABLO LEÔNCIO
O que vai ser?

LULU
O que vai ser do que?

(Pablo, inesperadamente se irrita, e joga a própria taça no chão; Lulu pula de susto)

PABLO LEÔNCIO
Pra ser ator tem que ter drama. Tem que ser dramático, sabe. Tem que ser sensual. Tem que ter fogo, entende? Tem que se abrir à possibilidades. Tem que querer experimentar tudo e todo tipo de experiência. Comer homem. Comer mulher. Comer. Cheirar. Lamber. Tem que ser nua, entende? Pra ser ator tem que se alimentar do outro. Trocar saliva. Fazer soar um sibilo no cu do outro.

LULU
Chega!

PABLO LEÔNCIO
Não! Não chega! Não tem fim! Pra ser ator tem que saber que não tem fim. O espetáculo de amanhã não vai ser igual o de ontem. Nunca ninguém fará o Hamlet que Shakespeare imaginou. Nunca! Ninguém! Talvez chegue perto, mas teria traços diferentes!

LULU
Eu só quero fazer uma novela!

PABLO LEÔNCIO
Você daria pro Malvino Salvador? Chuparia a rola dele porque ele parece todo gostoso no vídeo?

LULU
Por favor, não fale essas coisas...

PABLO LEÔNCIO
Você tem medo de mim? Eu não vou fazer nada que os dois não queiram. Tô tentando te excitar.

(silêncio)

PABLO LEÔNCIO
Melhor você ir. Você está me fazendo perder meu tempo.

(Lulu sai receosa; Pablo fica sozinho se sentindo um merda; ele acende um cigarro e bebe a garrafa pelo bico)

PABLO LEÔNCIO
Constantin Stanislavski. Vai tomar no cu, cara.

(black-out)


CENA II

(Edilaine está em um foco)

EDILAINE
“Um dia você ficará cego, como eu. Estará sentado num lugar qualquer, pequeno ponto perdido no nada, para sempre, no escuro, como eu. Um dia você dirá, estou cansado, vou me sentar, e sentará. Então você dirá, tenho fome, vou me levantar e conseguir o que comer. Mas você não se levantará. E você dirá, fiz mal em sentar, mas já que sentei, ficarei sentado mais um pouco, depois levanto e busco o que comer. Mas você não levantará e nem conseguirá o que comer. Ficará um tempo olhando a parede, então você dirá, vou fechar os olhos, cochilar talvez, depois vou me sentir melhor, e você os fechará. E quando reabrir os olhos, não haverá mais parede. Estará rodeado pelo vazio do infinito, nem todos os mortos de todos os tempos, ainda que ressuscitassem, o preencheriam, e então você será como um pedregulho perdido na estepe.”

(silêncio)

EDILAINE
Aplaudam, caralho! É o mínimo.

(ela aguarda os aplausos; insiste se for necessário)

EDILAINE
(saindo) Essa porra é daquele cara que escreveu esperando Godot. Samuel. Becket. Samuel Becket. Se alguém se importa com as referências. (sai)

(um foco destaca Pablo Leôncio)

PABLO LEÔNCIO
Referência é o caralho! É tudo cópia mesmo. “Um é a coroa da cara do outro”. O cara, às vezes, abriu a página de um livro na sorte e copiou alguma frase de efeito bacana e aí todo mundo aplaude. Se nossa amiga atriz Edilaine não tivesse dito de quem era o bife que ela deu, ninguém aqui nunca iria saber e talvez o texto se misturaria ao nosso sem nenhuma diferença estética gritante. Mas quando se é jovem e vivo – principalmente vivo – quem é que dá credibilidade nas opiniões? (pausa) Saiu numa revista. “Pablo Leôncio diz: prefiro fazer novela que teatro.” Eu nunca disse isso, mas enfim. Eu ganho melhor, como algumas garotas, sou convidado pra festas bacanas. Eu gostei de fazer as poucas novelas que eu fiz.

(Lulu entra)

LULU
Eu não acredito! Por que você não me disse? Eu sabia que eu te conhecia de algum lugar!

PABLO LEÔNCIO
Garota, eu só queria te comer. Se quiser a proposta ainda tá em pé. Mas não me venha encher o saco.

LULU
Me coloca numa novela? Eu fiz dois cursos! Dois! Foi super caro, mas valeu a pena. Eu já me sinto preparada. Eu aprendi muito com o Marcos Giovaneti. Você conhece?

PABLO LEÔNCIO
Não.

LULU
E o Carlos Albuquerque?

PABLO LEÔNCIO
Não. Também não conheço.

LULU
Ah, mas o André Cunha você conhece, não conhece? Ele já fez novela também.

PABLO LEÔNCIO
Não conheço. Tem muita gente no mercado, sabe.

LULU
Bom, enfim, eles podem falar bem de mim. Eu fui super desinibida. Fiquei pelada também. Você acredita? Fui assistir o Zé Celso e eles abaixaram a minha calça. Foi sensacional. Eu amei. Agora eu mostro a bunda pra todo mundo. Quer ver? (ela abaixa a calça)

PABLO LEÔNCIO
Já dá também?

LULU
Oi?

PABLO LEÔNCIO
Dá também? A bunda? Bonita a sua bunda.

LULU
Ainda não dou. Não assim desse jeito que se possa dizer: “nossa, como ela dá”. Mas tô tentando quebrar uns paradigmas ainda. Você sabe, né? Vida de atriz não é fácil. (ri)

PABLO LEÔNCIO
Não. Não é fácil. Mostra a bunda de novo, então.

LULU
Oi?

PABLO LEÔNCIO
A bunda. Mostra de novo. Pra eu ver se cabe na televisão.

(Lulu pensa e depois mostra novamente; black-out; um foco rápido destaca Edilaine)

EDILAINE
“A coroa que a gente coloca em gente comum é a maior babaquice que a gente podia ter inventado. Quando a gente endeusifica qualquer coisa, a gente tá cometendo o maior pecado que se possa imaginar. Nem Cristo queria ser tratado como tratam o papa. Acho que o mundo tem girado mais rápido que antes. Precisamos de foco na arte. De cara a tapa. De embasamento. Mas antes de tudo de experiências, sim. Quando descobrirmos que a arte é feita por todos e para todos, ninguém nunca mais vai escolher a futilidade.” (pausa) Esse é meu mesmo. Eu escrevi ontem no meu tablet enquanto eu cagava. 

(Edilaine sai; em seguida, Lulu entra; ela se aquece e se alonga no jeito mais clichê)

LULU
Porra, eu dei. Ai, eu dei. Dei mesmo. Eu já tô fazendo umas figurações, até.

(no meio dos movimentos, Lulu trava a coluna)

LULU
Ai. Caralho! Ai! Ai, senhor! Alguém! Ai, caramba! Travei, porra. Travei.

(uma música instrumental grandiosa arrebenta a cena e Lulu, de um contorcionismo torto, passa a dançar magistralmente pelo palco)

LULU
(gargalhando) Ah! Eu descobri! Eu descobri qual é a sensação do medo de uma atriz! Eu era de uma inocência. (ela continua dançando afobada) As asas dessa lagarta demorarão a desabrochar. O vinho que eu bebi eu mijei no mesmo dia. A porra que eu engoli não vai chegar a virar um feto. E eu dei o cu com uma camisinha de morango! Eu amo ser atriz! Eu amo poder gritar e cuspir falas que eu nunca falaria na vida real. Quando tudo isso acabar eu vou pegar minhas coisas e vou voltar pra casa como todo mundo. Talvez eu pare em algum bar pra tomar uma cerveja, mas quem nunca? Eu amo ser atriz e dizer pra todo mundo que eu tenho registro profissional e que um dia algum diretor me valorizou em um espetáculo qualquer! Eu me sinto tão poderosa com todos me olhando enquanto eu giro, giro, giro. Igual uma retardada. Qual é a graça nisso? Qual é a graça de ver corpos fazendo macaquices? Por que diabos alguém paga pra ver outra pessoa mostrar a bunda? (pausa) Eu também não sei. Não sei se vou descobrir. Mas agora eu já estou viciada nesse caralho. Eu necessito que quando a música terminar e eu parar de dançar e falar, que aplausos ecoem por esse teatro e que depois alguns me adicionem no Facebook pra tentar saber um pouquinho de quem eu sou. Porque daí no fim eu vou ser seu deus por aqueles segundos que você me deu atenção. E eu amo ter pessoas me paparicando mesmo que eu não queira perder a minha intimidade.

(a dança freia; ela aguarda por aplausos; se tiver, ok, ela agradece e sai; se não, ela somente sai sem drama)

(Pablo Leôncio e Edilaine entram numa preliminar animal; eles se lambem violentamente, um tirando a roupa com mais ansiedade que o outro)

PABLO LEÔNCIO
Vai rolar um sexo ao vivo?

EDILAINE
Eu topo. Adoro misturar a vida com a arte.

(eles se beijam mais um pouco)

PABLO LEÔNCIO
Vai ser simples. (ainda beijando) Eu pego seu currículo e algumas fotos e tudo vai ficar legal.

EDILAINE
Ah, é? Que delícia.

(se chupam mais ainda)

PABLO LEÔNCIO

O bom é que você já tem experiência.

EDILAINE
Eu tô precisando de uma grana.

(eles se beijam mais um pouco; Edilaine percebe algo errado nas calças de Pablo)

EDILAINE
Tá tudo bem?

PABLO LEÔNCIO
Calma.

(ele a beija envergonhado; Edilaine desanima um pouco)

EDILAINE
Não tá curtindo?

PABLO LEÔNCIO
Tô. Calma. Eu bebi muito.

(Edilaine se ajoelha e abaixa as calças dele; obviamente, o pinto de Pablo está mole; ela segura o órgão com bastante delicadeza e diz)

EDILAINE
Pra ser ator tem que ter drama. Tem que ser dramático, sabe. Tem que ser sensual. Tem que ter fogo, entende? Tem que se abrir à possibilidades. Tem que querer experimentar tudo e todo tipo de experiência. Dar pra homem. Dar pra mulher. Comer. Cheirar. Lamber. Tem que ser nu, entende? Pra ser ator tem que se alimentar do outro. Trocar saliva. Fazer soar um sibilo no cu do outro.

(Edilaine vira Pablo de quatro, abaixa as próprias calças onde um pênis de borracha está amarrado; ela penetra nele com bastante macheza; eles gritam de tesão; Lulu entra)

LULU
Por que? Por que? Pra que isso, gente? Pra que diabos precisava dessa cena?

PABLO LEÔNCIO
Isso é teatro, minha filha.

EDILAINE
Vale tudo. Eu fiquei afim, ele curte também. Qual é que o problema?

PABLO LEÔNCIO
Punhetação artística é uma coisa muito comum.

LULU
Mas parem! Parem! Já deu! Todo mundo já viu! Vocês não esperam realmente serem aplaudidos de pé nessa cena cheia de falta de embasamento teórico e sensato, esperam? Putaria é putaria. Arte é arte.

EDILAINE
Cale a boca, menina. Arte é putaria. Em todos os sentidos.

PABLO LEÔNCIO
Vale tudo. O que a gente quiser. O que você quer por? Coloque. Não tem ninguém julgando.

LULU
Como assim?

PABLO LEÔNCIO
Você, como atriz, que tipo de cena gostaria de fazer?

LULU
Ah, sei lá...

PABLO LEÔNCIO
Sei lá, uma cena de estupro, que exige? Uma cena onde você foge de um macaco gigante? Uma cena onde você voa!

LULU
Voar? Sim, eu gostaria de fazer uma cena que eu voasse. Dá pra fazer?

PABLO LEÔNCIO
Dá. Dá tudo, menina. Tudo dá.

LULU
Então eu quero. Vamo lá. Eu quero voar em cena. Vai.

(silêncio)

PABLO LEÔNCIO
Não. Agora não dá. A gente tem que planejar isso. Teria que ter uma contra-regragem mais bem detalhada e bem produzida, sabe. Nós estamos começando ainda. Sem orçamento.

EDILAINE
Ninguém tem uma corda?

PABLO LEÔNCIO
Olha, escolha algo que dependa do seu trabalho de atriz. Não de uma maquinaria. O que você gostaria de fazer, por exemplo? Que cena de filme você acha que seria super divertido fazer?

LULU
Ah, lembrei de uma! Peraí que eu vou fazer.

(ela se arruma, respira fundo e interpreta como se estivesse endemoniada toscamente)

LULU
Me coma, Jesus! Me coma! Me possua! Me possua! (ela grita bem mal interpretada)

(ela termina a interpretação)

EDILAINE
Dercy Gonçalves?

LULU
Não! É a menina do “exorcista”. Ah, eu queria tanto ter que fazer uma cena de endemoniada.

(black-out)

PABLO LEÔNCIO
Liberdade artística é perigosíssimo.

(fecham-se as cortinas)


CENA III

(a cortina se abre; quando as luzes se acendem, Lulu é uma endemoniada bem interpretada e maquiada; Pablo Leôncio é um padre; Edilaine é a mãe de Lulu; tudo acontece realisticamente bem encenado dessa vez)

ENDEMONIADA
(com voz demoníaca) Eu vou comer a porra do coração da sua mãe no inferno, padre!

PADRE
Deus todo poderoso, liberte a alma dessa inocente. Eu repreendo todo o mal!

ENDEMONIADA
(ri) Inocente é o meu rabo, padre. Ou você acha que a garota é uma puritana? Essa buceta já tomou muita bala. Em todas as poses e velocidades possíveis! (gargalha)

EDILAINE
Oh, meu deus! Misericórdia!

ENDEMONIADA
Meu cu pra você, mamãe! Meu cu!

PADRE
Meu senhor Jesus Cristo é mais poderoso que qualquer espírito! Não existe força maior que a do meu santo deus!

ENDEMONIADA
(enfiando uma cruz na buceta) Me coma, Jesus, me coma bem gostosão!

PADRE
Eu ordeno que saia agora! Saia, demônio! Em nome do pai, do filho e do espírito santo! Amém!

EDILAINE
Amém!

PADRE
Saia!

(no auge do suspense, a Endemoniada grita e se contorce horripilantemente pela última vez; a garota desmaia; uns segundos de silêncio)

(black-out)

(por longos segundos a escuridão reina)

(em off, os atores terminam)

TODOS
Acabou. Aplaudam, caralho. É o mínimo.

(black-out)

CENA IV

(Lulu está terminando de arrumar seus pertences depois do espetáculo; ela recebe uma mensagem no celular e ri vaidosa)

(com máscaras, Edilaine e Pablo Leôncio entram em cena)

EDILAINE
Ei, você! Parabéns, viu. Você estava ótima.

LULU
Obrigada.

EDILAINE
Você é muito boa.

LULU
Ah, imagina.

PABLO LEÔNCIO
A gente podia tirar uma foto com você?

LULU
Uma foto? Claro!

(eles se posicionam e tiram a foto)

EDILAINE
Nossa, mas você é muito mais bonita de perto, sabia.

PABLO LEÔNCIO
Muito mais. Aquela hora que você mostrou a bunda é sensacional de profundo.

LULU
Obrigada, gente. Muito obrigada mesmo. É muito bom ter uma plateia satisfeita.

EDILAINE
Eu faço teatro, também, sabia?

PABLO LEÔNCIO
Ela começou pequenininha.

LULU
Nossa, que legal. É. Bom, eu meio que acabei de começar.

PABLO LEÔNCIO
Sério? Nossa. Mas você mostra tanta segurança.

LULU
Sim, essa é minha primeira peça.

EDILAINE
Sério?

LULU
Sério. Eu tava tão nervosa. Mas acho que deu tudo certo.

EDILAINE
Se acostume, a sensação é sempre assim.

(Edilaine sai um pouco decepcionada)

LULU
O que aconteceu?

PABLO LEÔNCIO
Não se preocupe. Ela tem problemas com o sucesso dos outros.

LULU
Sucesso? Eu acabei de estrear.

PABLO LEÔNCIO
Mas é que você é boa, menina. Teve efeitos especiais, não teve?

LULU
Não, eu costumo ficar longe das drogas. Sei que é muito comum no meio.

PABLO LEÔNCIO
Não, eu quis dizer se houve trabalho da maquinaria. Você parecia mesmo um demônio.

LULU
Ah, sim! Sim, sim. Eles colocam a parte grossa da minha voz lá da cabine de som.

PABLO LEÔNCIO
Ah, imaginei. Foi impressionante. Ninguém esperava uma cena dessa num espetáculo sério como esse.

(Edilaine gargalha debochando fora de cena)

LULU
Um amigo meu costumava dizer que vale tudo. O artista pode fazer o que quiser.

PABLO LEÔNCIO
(desanima) Ah, sim.

(silêncio)

LULU
Bom, eu tenho que arrumar minhas coisas.

PABLO LEÔNCIO
Claro.

(ele vai sair, mas volta)

PABLO LEÔNCIO
Olha, escuta. Você acha então que qualquer um pode fazer teatro também? Qualquer merda escrita pode ser considerada dramaturgia? Nessa questão do “vale tudo”?

LULU
Ah, acho. Meu amigo sempre dizia que arte é um bagulho foda de se julgar.

PABLO LEÔNCIO
Mas existe um consenso coletivo, também, não existe?

LULU
Mas em arte existe exatidão?

PABLO LEÔNCIO
Não, mas não tem como eu não criticar um espetáculo ruim, por exemplo.

LULU
Já pensou que alguém com outras referências e experiências pode achar um significado magistralmente sensacional num espetáculo que você diz que é uma bosta?

PABLO LEÔNCIO
Já pensei. Mas temos que concordar que se alguém decide fazer um musical e nenhum dos atores tiver qualquer tipo de preparação vocal para cantar, e mesmo assim eles assinarem a produção como musical, podemos e veremos que o produto final dessa fábrica – que é o espetáculo em si – não estará direito. Não porque eles não possuem alma de artista suficiente, mas porque assumem uma estética que ainda não dominam.

LULU
Acho que se alguém pintar qualquer bosta e dizer que aquilo é arte e que significa muito pra ela, ninguém tira o crédito. Eu acho que se eu pegar um quadro em branco agora e desenhar qualquer bosta e depois disser e convencer alguém de que aquele quadro é do Leonardo da Vince, por exemplo, as pessoas iriam procurar profundidade. Se eu dissesse que o quadro é do André Cunha, foda-se o André Cunha, porque quem diabos é André Cunha, né?

PABLO LEÔNCIO
Mas o problema tá se o tal do André Cunha divulgar que aquilo é uma pintura a óleo e ter pintado com guache. Nesse quesito acho que podemos criticar, sim. Não as escolhas da alma, mas toda a parte técnica da coisa.

LULU
Hum.

(silêncio)

(um foco destaca Edilaine histericamente pintando um quadro)

EDILAINE
Quem vem falar que essa bosta não presta? Quem? É reflexo das coisas que eu sinto. E não importa se eu não tenho embasamento pra colocar nome de gente famosa como referência da minha arte! Essa porra não importa! Não importa se eu faço o que faço por dinheiro, ou por amor, porque sou burro ou inteligente. Não importa se você não entendeu o que eu quis dizer, alguém deve ter entendido, e alguém um dia vai entender. E se não, foda-se! O mais importante pra mim – sem querer ser egoísta, mas é assim que todo mundo é – sou eu mesma. E eu quero tirar uma foto do meu quadro pintado à guache e postar na minha rede social. E foda-se de novo. É coisa de dentro de mim.

LULU
Viu? Quem vai falar alguma coisa?

(Edilaine continua num expressionismo)

PABLO LEÔNCIO
Olhe bem pro quadro. Tá ruim.

LULU
Mas pela perspectiva de quem?

PABLO LEÔNCIO
Pela minha perspectiva.

LULU
E quem é você?

PABLO LEÔNCIO
O mesmo ninguém que você, também.

EDILAINE
Exatamente.

PABLO LEÔNCIO
O artista faz o que faz pra chamar atenção. Tenho vários amigos atores. Todos carentes tanto sexualmente como apenas de paparicos.

EDILAINE
Tem razão.

PABLO LEÔNCIO
Sem plateia não existe encenação.

LULU
A arte faz eternizar parte de nossos pensamentos. Sejam eles inteligentes ou idiotas. Com plateia ou sem plateia.

EDILAINE
Pegue uma foto sua, embrulhe num pacotinho e enterre num lugar onde você tem certeza que nunca acharão. E nunca mais desenterre a sua foto. É a mesma forma de eternização.

(silêncio)

LULU
Então eu não entendo mais o significado.

PABLO LEÔNCIO
Não procure. Muita gente já tentou. Eu nem sou de teatro e já me sinto com tantos problemas existenciais só de conviver com eles.

(Pablo sai)

LULU
Meu deus. No que é que eu fui me meter?

EDILAINE
Na vida, menina. O problema é que a gente vive imitando e sugerindo a vida e aí não tem como não pirar. Porque a existência é uma puta de uma piração, foi daí que surgiu a arte. De começo, com endeusificações. O teatro real era o ritual onde se incorporava personagens do fundo da alma que eram recebidos como seres divinos. O deus de hoje nada mais é que um puta teatro, também. Ligue a televisão naqueles programas de pastores pra você ver o puta teatro. É a insuficiência. A carência. A solidão. E não só dos atores, de todos os humanos. Os atores só foram os azarados que quiseram saber mais de como é que as pessoas vivem, e o que é que elas fazem, que jeito reagem a devida circunstância. Tome cuidado pra não morrer aos vinte e sete, garota. Vão te enfiar uma profundidade que você nem tinha e que é igual a profundidade de todos. Vazia.

LULU
Vocês atores são horríveis.

EDILAINE
Nós atores.

LULU
Vocês. Eu só queria fazer uma novela. E tá demorando pra cacete.

(Lulu sai; Pablo Leôncio entra correndo com alguns livros na mão e um jornal)

PABLO LEÔNCIO
Você não vai acreditar. Olhe isso.

(Edilaine pega os livros e lê)

EDILAINE
O que é isso?

PABLO LEÔNCIO
Veja o nome da autora.

EDILAINE
Lurdes Albuquerque. Claro. Eu já li esses livros. Um professor me disse pra eu prestar atenção nela porque ela era a nova cara do teatro contemporâneo.

PABLO LEÔNCIO
Você sabia que ela tem vinte e quatro anos? Escreveu o primeiro livro aos dezesseis.

(ele entrega o jornal pra ela)

EDILAINE
“Performer famosa desaparece no Amazonas”

PABLO LEÔNCIO
Eu nunca tinha visto uma foto dela. Olhe aí.

(Edilaine se espanta quando vê)

EDILAINE
Não acredito. Mas...

PABLO LEÔNCIO
Pois é. A Lulu é a Lurdes Albuquerque. Leia embaixo. A família diz que ela era viciada, vivia na base de tarjas pretas e começou a ter surtos de amnésia. Ela tinha ido pro Amazonas pra performar com uma tribo. Ela é a garota atriz contemporânea.

EDILAINE
Meu deus do céu.

PABLO LEÔNCIO
Ela deve ter pirado de vez.

EDILAINE
Mas ela disse que nunca tinha feito teatro antes.

PABLO LEÔNCIO
Amnésia. Você sabe o que é isso?

EDILAINE
Lógico. Mas...

PABLO LEÔNCIO
Vê? Mesmo sem saber, o teatro a fisgou novamente. Não é uma maluquice?

EDILAINE
Como ninguém a reconheceu?

PABLO LEÔNCIO
Sei lá. Nós temos que contar pra ela quem ela é.

(os dois saem determinados)

(black-out)


CENA FINAL

(Lulu está dançando nua frente a um espelho)

LULU
Eu mostro a minha bunda todo dia que eu quiser
E não é só pra ser fútil é porque é assim que é
A loucura me afunda num teato sem exatidão
É o gosto, o olfato, o tato
É o que nos dá tesão
Um rio na contra mão
A lagarta que vai demorar pra sair do seu casulo

Sem sentido, sem metáfora real
O rio na contra mão
A bosta da borboleta que não sai dessa vida, desse mundo
É só uma frase bonita mal enfiada
Que é igual a nada
É igual ao tudo

Uma frase bonita é fácil de inventar
Quero ver chegar e interpretar
Do jeito que Shakespeare imaginou que fosse
Do jeito que André Cunha quis se comunicar

O problema é dele
O problema é seu
O problema é nosso

(Lulu encana com algo em sua nuca; ela coça freneticamente parte da sua cabeça)

LULU
Alguma coisa acontece dentro da gente. E pra ser um bom ator – me disseram uma vez – quanto mais você souber como é que funciona a cabeça do ser humano, melhor você vai conseguir interpretar e reagir corretamente. Quanto mais fútil e preconceituoso você for, menos artista. Essa bosta coça.

(um foco em outro canto mostra Pablo Leôncio e Edilaine procurando por Lulu)

EDILAINE
Como é que ninguém dessa porra de produção tinha o endereço dessa garota? Ninguém sabe onde ela tava morando?

PABLO LEÔNCIO
Ela apareceu, começou a frequentar os ensaios.

EDILAINE
Nem um telefone?

PABLO LEÔNCIO
Ela nunca faltava. Era a mais pontual e a única que se aquecia. Eu disse que eu sabia reconhecer um talento, não disse?

EDILAINE
E eu lá ia saber que ela era a tal da Lurdes Albuquerque. Esse nome é um nome de velha.

PABLO LEÔNCIO
Esse fato deve ter ajudado na piração dela.

EDILAINE
A gente tem que dar um jeito de achar ela logo, Pablo.

PABLO LEÔNCIO
Ou a gente espera até sábado. Ela com certeza vem. Melhor ligarmos pro telefone que tá no jornal.

EDILAINE
Pablo, você tem noção de como isso vai nos ajudar na publicidade do negócio?

PABLO LEÔNCIO
Nosso teatro não é o mesmo estilo que ela defendia. O teatro dela é bem mais profundo que o nosso. Vai ser estranho quando descobrirem.

EDILAINE
Como assim o teatro dela é bem mais profundo que o nosso? Não tem nada a ver isso.

PABLO LEÔNCIO
Sou eu que escrevo as nossas peças. Eu sei bem o que tô dizendo.

EDILAINE
Ah, é? Só porque ela ficou louca ela é bacana agora, então.

PABLO LEÔNCIO
Não, cara. A gente refaz a cena do Exorcista descaradamente. Ela foi ter com os índios.

EDILAINE
E pra que que ela foi ter com os índios? Me responda essa. Pra que? Pra quem?

PABLO LEÔNCIO
Sei lá. Mas tem muito mais.

EDILAINE
Muito mais de que? Eu não tô entendendo. Nós somos famosinhos aqui em São Paulo.

(silêncio)

PABLO LEÔNCIO
Você falou de famosidade lá no começo do espetáculo. Jogou na cara da menina que – mesmo que o sonho dela fosse entrar no Big Brother pra ser atriz – ser atriz não tem nada a ver com famosidade. Você disse isso.

(silêncio)

EDILAINE
Bem. Que bom que eu ainda consigo me contradizer.

PABLO LEÔNCIO
Bem. Que bom.

(black-out no foco; Lulu volta muito mais insana)

LULU
Eu vou arrancar a minha cabeça fora!

(longo silêncio; suas últimas palavras ecoam pelo espaço; Lulu está exageradamente inquieta; ela percebe que está mal, mas a loucura a faz voltar para situações que chegam a alucinações; ela ri sozinha e acende um cigarro; em algum momento, de tanto rir, ela quase cai numa tristeza; mas logo se recompõe; finalmente, subitamente, ela desperta; ela se arruma pra sair completamente séria e sensata)

(duas figuras demoníacas, com máscaras estranhas, Edilaine e Pablo Leôncio entram com uma música grandiosa)

EDILAINE
Não tem como não falarmos de morte quando o assunto é o teatro.

LULU
Ué, e por que não?

PABLO LEÔNCIO
Porque não, burra.

EDILAINE
A cena é nossa e a gente pode fazer o que a gente quiser.

PABLO LEÔNCIO
Mate no teatro e sofra as consequências.

EDILAINE
Existe uma porrada de jeito de se fazer, mas tem que tomar muito cuidado pra não ser uma morte em cena desnecessária. O realismo é um perigo agora que temos a possibilidade de assistir um filme que as facas passam do lado da cabeça e os monstros enfiam a mão fora da tela – pra chegar a um palmo da sua cara – ao invés de ir ao teatro.

PABLO LEÔNCIO
Eis a porra da desvalorização teatral! Precisamos de festa por não termos sobrevivido ao cinema e a televisão!

EDILAINE
Antes o teatro era uma diversão fina. Tentaram popularizar, mas formou-se a classe. A classe teatral.

PABLO LEÔNCIO
Palpiteiros. E não só com interesse em aprender, viu.

LULU
E o que diabos isso tem a ver com morte?

PABLO LEÔNCIO
Você soube o que aconteceu com a garota que fez a garota principal do filme que vocês costumam repetir todo sábado num teatro vagabundo do centro da cidade?

LULU
O que aconteceu?

EDILAINE
Virou uma prostituta! Deu pra todo mundo! Todo mundo sabe disso e todo mundo comeu ela.

LULU
Ué, atriz.

PABLO LEÔNCIO
(misterioso) Ela ficou endemoniada na vida real.

LULU
(sensata) Hum. Se é isso que vocês acreditam...

(silêncio)

EDILAINE
Nós somos demônios e iremos te atormentar.

LULU
Beleza. Artista precisa passar por experiências.

PABLO LEÔNCIO
Não é nada disso! (revela) Nós existimos só na sua cabeça. Mas talvez isso seja muito mais perigoso que possíveis seres malignos católicos. Porque é você que está ficando louca. E tá ficando louca sozinha...

PABLO LEÔNCIO e LULU
E no fim das contas isso também não significa que não somos demônios reais, porque se está vendo e experimentando, é assim que é a realidade de todo mundo. A gente vê e experimenta e nunca sabe se dá pra confiar cem por cento no que é a realidade. Você está completamente louca e sensata ao mesmo tempo com demônios eternizados nos raios do seu cérebro.

LULU
Eu já sabia faz tempo, que isso ia acontecer. Mas eu pensei que fosse chegar pelo menos nos vinte e sete.

EDILAINE
Você nunca quis expor sua vida pessoal. Ninguém sabia quem você era. A galera curte os seus livros, não é?

LULU
Umas besteiras.

PABLO LEÔNCIO
Ah, então você lembra, cabeça!

LULU
Lembro. Lembrei agora a pouco depois de uma coceira que eu tive na nuca.

EDILAINE
Mas de qualquer forma você está ficando louca porque a gente não existe fisicamente no seu mundo.

LULU
Sei. Eu me acostumarei com vocês. Talvez com as minhas habilidades possa até adestra-los.

(silêncio; Edilaine e Pablo Leôncio riem da coragem de Lulu)

PABLO LEÔNCIO
Adestrar um demônio? (gargalha sinistramente)

EDILAINE
Não. Isso não é metalinguagem!

LULU
Eu já entendi! Podem tentar me atormentar, caralho. Vão fazer o que? Vai. Vão começar com o que?

(Edilaine aparece com uma corda pendurada no teto)

LULU
O que é isso?

(Edilaine solta a corda; um líquido vermelho cai sobre Lulu; o balde cai em cima de Pablo Leôncio que cai morto)

(um foco vermelho destaca Lulu com sangue nos olhos; grande suspense; depois de segundos de tensão onde parece que algo de grandioso vai acontecer, Lulu quebra o silêncio)

LULU
(toscamente explicativa) Stephen King.

(as luzes voltam ao normal e Lulu está sozinha; ela olha para os lados confusa; ela se conforma com tudo aquilo, simplesmente porque ela sabe que é louca)

(Edilaine e Leôncio, sem roupas de demônio, entram afobados)

EDILAINE
Menina, finalmente! Você não sabe como a gente te procurou. Onde que você mora, Lulu? Como você tem sobrevivido? Que sangue é esse, menina?

(silêncio)

EDILAINE
Eu tô falando com você, Lulu. Você sabia que seus pais estão te procurando que nem louca? Você foi pro Amazonas e de repente apareceu aqui em São Paulo? Como é que foi isso, menina? Você sabia, disso? Você não se lembra. Ela não lembra, Pablo. Lulu, seu nome verdadeiro é Lurdes Albuquerque.

(Lulu ri)

EDILAINE
Quando você estava escolhendo um nome artístico você falou ele. Eu lembro. Você já era atriz, Lu. Você sempre foi atriz. Você também começou pequena. Isso está no seu sangue.

(Lulu ri descaradamente)

EDILAINE
Por que você tá rindo? A gente quer te contratar mesmo assim.

(Lulu gargalha loucamente)

EDILAINE
Olha, garota, escuta aqui...

PABLO LEÔNCIO
Deixa que eu falo com ela.

(inesperadamente, Lulu empurra Pablo sem encostar nele fisicamente; suspense; depois de segundos de tensão onde ninguém sabe o que foi que aconteceu, Lulu diz)

LULU
Agora eu não quero mais novela, nem cinema e nem teatro. Eu tô meio que indo atrás de vida real. Posso?

EDILAINE
Não com poderes sobrenaturais.

(ela também empurra Edilaine)

LULU
A gente pode tudo na vida real também. Anote isso. A gente pode tudo.

(o espetáculo finaliza secamente)

(black-out)

FIM


Texto de Gabriel Tonin




Nenhum comentário:

Postar um comentário