CONVICTO (NÃO)

CONVICTOS (NÃO)

PERSONAGENS
GUILE
LEANDRA
EFIGÊNIA
LAIO
IGOR
LETÍCIA
CESARINA
VOZES

CENA I: MORTE

(um foco destaca a cabeça de Guile na escuridão)

GUILE
Mortais, queiram ou não, estamos certo de uma coisa, eu tenho uma resposta: O que te faz você, e o que me faz eu, e o que faz de todo mundo indivíduos separados, separadinhos, iguaizinhos mas diferentes, acompanhados mas eternamente sozinhos, é a memória de todas as experiências vividas de cada centésimo de segundo único que nunca é igual em cada canto desse planeta colorido, nunca é a mesma coisa pra mim e pra você, nunca foi e nunca será igual pra ninguém nesse mundo. E mesmo as experiências compartilhadas são divididas por sentimentos e percepções únicas, nas quais cada um – cada um! – recorta e absorve de uma maneira completamente diferente o fato, por necessidade, ou às vezes, porque ela quer. Eis o motivo para o não julgamento. Uma experiência não vivida, não faz parte de você, então não te influenciou na molda. O molde é o tudo. Nascemos folha branca, mamãe nos dá o seio. A moda dita, o molde força. (pausa) E onde se instala a memória? Você me pergunta. Se instala nas quânticas nanas partículas dentro da nossa cabeça. São esses raios ultra violentos de dentro do nosso cérebro que comanda todos os nossos sentidos e opiniões e convicções. Você, e eu.  Quando o raio se apaga, puff!, já era. A memória já era. O sentimento já era. Quem você era já era. Não me venha com esse papo de que não consegue imaginar que quando morre acaba tudo, que tem que ter alguma continuação. Quando morre, o individuo que era vivo, que existia porque as suas memórias diziam quem ele era, desaparece. Quando alguém perde a memória ele não se importa mais com isso. Ele não sabe mais quem ele é e tá se fudendo pro que vem depois. Sobra-se apenas as consequências do que ele tinha feito em vida. Esse sim é seu real espírito. Não espere quando morrer, acordar em algum lugar e pensar: “Puxa vida, fulano estava certo, é assim que é morrer”. Quando morrer esse sentimento não vai vir. Não vai dar tempo. Talvez seu cérebro brinque um pouco antes de desligar e te faça ter as últimas brisas e sensações da vida. Talvez até te enganar mostrando Jesus vindo num túnel pra te buscar. Porque você vai saber que está morrendo, e vai se lembrar de todos os mitos, sobre todas as teorias. E com certeza acredita em alguma delas. Iguais aqueles que tiveram a experiências de quase morte. Todos voltam dizendo das experiências com luzes e da visão de outras pessoas que morreram. O cérebro é um bagulho louco. Quem já usou algum tipo de alucinógeno sabe bem do que ele é capaz de mostrar e fazer. Imagine um cérebro em tilt.  

(as luzes se acendem; Leandra está sentada próximo à um telefone; ela acabou de desligar e recebeu uma notícia triste)

GUILE
O que foi, Le? Ela piorou?

LEANDRA
(chora)

GUILE
Morreu?

LEANDRA
Morreu.

(silêncio; eles não se olham e não dizem nada; Guile não chora; Leandra, calmamente, pega um caderninho de telefones e disca)

LEANDRA
Oi, Gê. Sim. É. Não, ela não resistiu. Sim. Obrigada. Não precisa. Obrigada. O Gui tá aqui comigo. Tá bom. Eu sei. Beijo. Amém, obrigada.

(desliga e disca vagarosamente)

GUILE
Agora a gente tem que ir no hospital?

LEANDRA
Tia, oi. Eles ligaram. Não. Ela não resistiu. (silêncio) Tá tudo bem sim. (ela chora com a tia) Ai, tia. (silêncio) Você pode ver o negócio da funerária, eu não sei o que fazer... (chora soluçando; Guile se aproxima meio envergonhado; ele coloca a mão no ombro dela, sem muita intimidade) Sim. Por favor. Eu vou ficar bem, tia. Fique bem a senhora também, tá? Obrigada, viu. Amém.

(Leandra desliga já exausta)

GUILE
Deixa que eu ligo.

LEANDRA
Não. Eu quero ligar.

(silêncio; eles não se movem)

GUILE
Tem que avisar o papai.

LEANDRA
Não. Esquece o papai.

GUILE
Eles se gostavam ainda, apesar de tudo.

LEANDRA
Não. Alguém vai contar pra ele.

GUILE
Deixa que eu ligo.

LEANDRA
Eu disse não!

(silêncio; Leandra tem uma crise de choro dolorida; Guile não sabe o que fazer)

LEANDRA
Ai, Gui.

GUILE
Eu sei, eu sei. Vai ficar tudo bem.

LEANDRA
Posso te dar um abraço?

GUILE
Claro.

(eles se abraçam; Guile um pouco desconfortável)

LEANDRA
Eu tô com medo.

GUILE
Eu sei. Fique calma. A gente tem que ir pro hospital agora? O que a gente faz?

LEANDRA
Você não tá triste, Gui?

GUILE
Você acha que eu tô feliz?

(silêncio)

LEANDRA
(chora muito) Ai, Gui. O que eu vou fazer...? (soluça com dor)

GUILE
Fique calma, Le. A gente tem que continuar.

LEANDRA
Ela era tudo... (tosse sofrendo)

GUILE
Eu vou trazer um copo de água.

LEANDRA
Não precisa. (ela se recupera um pouco) É uma sensação aqui... (aperta o peito)

GUILE
Eu sei.

(silêncio)

LEANDRA
Você não tá triste, Gui? Você não quer chorar?

(silêncio)

LEANDRA
Gui, pode chorar se você quiser.

GUILE
Pare, Le.

LEANDRA
Pode chorar. Você tá com vergonha de mim.

GUILE
Lógico que não.

LEANDRA
Tá sim. Você tem que chorar, Gui. A mãe de todo mundo morre.

GUILE
(ri sem graça)

LEANDRA
Por que você tá rindo?

GUILE
Eu não tô afim de chorar, tá bom? Não é que eu não quero. Não tô afim.

LEANDRA
Mas ela morreu, Gui. A gente nunca mais vai ver ela. (chora um pouco paranoica)

GUILE
Calma, Le.

LEANDRA
Nunca mais, Gui. O natal. Na praia. O doce de abóbora com cravo...

GUILE
Eu sei, Le. Me deixa passar por essa experiência do meu jeito. Talvez não tenha caído a ficha ainda.

LEANDRA
É. (derrotada, ela o abraça) Desculpe.

(silêncio)

GUILE
Quer deitar um pouco, Le?

LEANDRA
Não.

(silêncio)

LEANDRA
Você não acha mesmo que ela vai pra algum lugar melhor, Gui? Que a gente vai se ver de novo?

GUILE
Você sabe o que eu acho.

LEANDRA
Mas, Gui... (chora ressentida) É mais triste ainda pensar assim do jeito que você pensa.

GUILE
Pois eu estou menos abalado que você.

LEANDRA
Não é isso. (pausa) Eu não sei! Não quero pensar que nunca mais vou conversar com ela...

GUILE
Então não pense. Essa é nossa história, Le. É pra ser assim.

LEANDRA
É pra ser assim?

GUILE
A gente tem que vivenciar isso.

(silêncio)

GUILE
Eu não sei o que a gente tem que fazer agora. A gente vai no hospital?

LEANDRA
A mamãe dizia que você era frio mesmo, sabe?

GUILE
Ai, meu deus do céu...

LEANDRA
Que deus? Você nem acredita! Você é igual o papai! Igualzinho. Não tá nem aí pra ninguém, pra nada! Quando eu morrer você vai ficar com essa cara de “tudo bem, a vida é assim, segue a vida”, é isso? Frio!

GUILE
Você tá de brincadeira, né? Quando eu morrer eu espero que você se recupere logo e não fique se martirizando, porra. Você quer que os outros sofram por você? Que pensamento mais injusto, Le! A mamãe não quer que a gente morra porque ela morreu.

LEANDRA
Você não sabe! Que sintam falta sim! Tem que sentir falta sim!

GUILE
Mas você acha que eu tô feliz que a gente nunca mais vai ver ela, caramba? Claro que eu queria ter ela sempre com a gente. Claro que eu queria... (ele quase chora, mas esconde) Mas agora a gente pára a vida? Deixa de viver?

LEANDRA
A gente acabou de receber a notícia. Você devia pelo menos chorar.

GUILE
Você está me pressionando. Talvez eu chore quando eu ficar sozinho.

LEANDRA
Hum.

(silêncio)

LEANDRA
Desculpa. Eu tô... Desculpa.

(silêncio)

GUILE
Eu vou beber água.

LEANDRA
Eu não consigo imaginar que quando a gente morre acaba tudo. Não é possível.

(Guile sai; Leandra fica pensando sozinha; ela chora e conversa com deus em pensamento, olhando para cima, desesperada)

LEANDRA
Eu acho que ele tá errado, mãe. Eu queria pelo menos dizer adeus. Por favor, deus. Por favor. Só mais um minuto. Deixa eu ver. Só um minutinho, senhor. Se o senhor existe mesmo deixa eu dizer um último adeus.

(ela aguarda ansiosa alguma aparição)

(black-out)


CENA II: GENTE DE BEM

(um foco destaca a cabeça de Efigênia)

EFIGÊNIA
Eu fui assaltada! Acabaram de roubar minha bolsa. Eu tinha tudo lá dentro. Celular, carteira. Ai, saco. Que bosta! Pensei em chamar a polícia, mas não vai dar em nada. Vão falar pra eu fazer o boletim de ocorrência e tchau contatos do celular. Bosta. Eu tinha um monte de foto! Esses filhos da puta querem mais é nos foder. Os porras dos marginais e a polícia também, sério. Eu não sei por que a polícia não faz a rapa nessa molecada de uma vez. A gente paga por esse serviço. Seria bom uma mega operação nacional, sabe, pra prender e matar, se for preciso, esses filhos da puta. Hoje em dia, o bandido não tá só contente em roubar. Por causa de uma bosta de um celular eles dão um tiro e tchau o amanhã. Aí vem aqueles ordinários dos ativistas que se dizem de coração bom e defendem a porra do marginal que destrói a nossa sociedade aos poucos. A gente trabalha que nem um camelo pra vir um filho da puta e roubar meu celular que eu nem terminei de pagar! Gente, se eu pudesse eu enfiava um pau do cu daquele menino. Sabe o que ele fez? Primeiro pediu informações, foi super educado, agradeceu, daí continuou andando do meu lado, e depois disse: “Perdeu, madame. Foi mal aí.” (ri) Filho da puta. Ele teve o descaramento de pedir desculpas ainda. Você acredita? Por isso que eu sou a favor da pena de morte no Brasil. Os caras iam começar a ficar com medo, e a criminalidade ia baixar. Sem dúvida nenhuma. (pausa) Uma vez ouvi dizer que esse é o preço que a gente paga por alimentar a diferença. Meu cu pra isso. Tenho um amigo que foi assaltado e aí ele correu atrás do bandido e pegou ele. A polícia demorou uma hora pra chegar. O que ele fez? Teve que dar um jeito de segurar o filho da puta. Aí a mídia, manipuladora, junto com os ativistas cheios de compaixão, meteram o pau porque ele usou uma corrente de bicicleta pra segurar o garoto. Deu uns cacetes, também, sim! Deu mesmo e eu apoio! Tem que aprender, o filho da puta, e tem que apanhar pra aprender. Não é assim que nossos pais faziam? Não deu certo? Quem conheceu a cinta e a vara hoje é gente de bem. E não venha me dizer que esses caras não tem oportunidades de ser uma pessoa de bem porque ele tem sim! Tem um monte de trabalho, tem um monte de jeito de se fazer uma faculdade hoje em dia. Só não é decente quem não quer.

(as luzes se acendem; Laio entra)

EFIGÊNIA
Onde você tava, Laio? Eu tô tentando falar com você e seu celular só dá caixa postal. Eu passei um sufoco hoje. Teve um acidente no trânsito. Graças a deus que a Bárbara conseguiu furar a fila no hospital pra mim. Quem julga, né? (ri) Ainda bem que ela trabalha lá. (pausa) Onde você tava?

LAIO
O Igor foi preso.

EFIGÊNIA
Oi? O que?

LAIO
Foi preso. O Igor foi preso. A polícia invadiu a casa da sua mãe e pegou ele. Ela tava super nervosa, mas foi pra casa da sua irmã, não se preocupe.

EFIGÊNIA
Ai, meu deus do céu! Mas ele foi preso por quê? Maconha, aposto. Caralho, Igor, eu falei! Eu não falei? Eu não vou buscar ninguém! Eu falei que essa bosta ia dar merda.

LAIO
Ele tá sendo acusado de matar três garotas, Gê.

(silêncio)

EFIGÊNIA
O que? É mentira, isso.

LAIO
Pois é. Eles têm provas. A acusação é essa.

(silêncio)

EFIGÊNIA
(ri) Você tá brincando, né?

LAIO
Tô com cara de quem tá brincando, Efigênia?

EFIGÊNIA
Mas, Laio! O Igor... Não é possível!

LAIO
Pois é. Quem diria?

EFIGÊNIA
Mas calma. Eu tenho que ir lá. Onde ele tá? Impossível isso. Deve ser algum engano. Que meninas são essas?

LAIO
Não sei também. Foi pro vigésimo terceiro, perto do fórum.

(uma pedra atinge uma janela)

EFIGÊNIA
Ai, o que é isso?

VOZ
(em off) Assassino!

(outra pedra)

LAIO
Tranque a porta, Gê.

(Efigênia corre e tranca)

EFIGÊNIA
Ai, meu deus do céu, Laio. Eu não acredito nisso. Não pode ser. Deve ser alguma confusão, o Igor não faria isso, Laio.

LAIO
Pois parece que fez.

EFIGÊNIA
Ele tá machucado? Você não sabe nada, Laio? Fala alguma coisa, caralho!

LAIO
Eu não sei, caramba! Sua irmã tá tentando te ligar a horas. Ela me ligou e eu corri pra cá.

EFIGÊNIA
Meu celular deve tá com problema, droga. Me empresta o seu.

(o celular de Laio toca antes de ela discar)

EFIGÊNIA
Olha lá! É ela. (atende) Ju. Fale. O que foi? Sim, eu sei, eu sei. Hã. Uhum. Mas, Ju... Aham. Mas é certeza, isso, Ju? Pelo amor de deus. (ela chora) Ai, Igor. Eu não acredito, Ju. Não pode ser. Não foi ele, Ju. Impossível o Igor ter feito isso. Pode ser alguém parecido... (silêncio) Tá. Tá bom.

(outra pedra voa pra dentro de cena, quebrando vidros)

EFIGÊNIA
Ai!

VOZ
(off) Eu vou matar seu filho, Efigênia! Aquele desgraçado tem que morrer!

(Laio vai até a janela; Efigênia fica em choque)

LAIO
Tem uns repórteres aí na frente, Gê. Um carro da Band.

(silêncio; Laio tira o telefone da mão dela)

LAIO
Alô? Tá tudo bem. Tem umas pessoas tacando pedra aqui. Tá chegando um monte de gente lá fora. Eu vou ficar aqui com ela aqui. Tá bom. Tchau.

(ele desliga; silêncio)

LAIO
Quer um copo de água?

EFIGÊNIA
Eu quero ir ver ele.

LAIO
Vamos esperar a poeira baixar um pouco. Aí a gente vai.

EFIGÊNIA
Por que ele faria isso, Laio? Impossível ele ter feito isso.

LAIO
Não sei também. Não dá pra gente saber os motivos dos outros.

EFIGÊNIA
Meu menininho não faria um negócio desse.

(black-out)


CENA III: DOLOROSO

(um foco destaca a cabeça de Guile; ele chora terrivelmente dolorido; um tanto cômico)

GUILE
Mãe! Manhê! Mãezinha! Ah, deus. Por que? Que saudade. Eu queria... Eu queria só falar tchau.

(as luzes se acendem e Leandra entra)

LEANDRA
Opa. Desculpe. Não quis interromper.

GUILE
(esconde o choro) Não, tudo bem.

(silêncio)

LEANDRA
Quer chorar pra mim, Gui?

GUILE
Não, Le. Valeu.

LEANDRA
Faz bem chorar.

GUILE
Eu sei, eu sei.

LEANDRA
Tá bom. (pausa) Ela amava muito você, viu?

(silêncio)

LEANDRA
Tá?

GUILE
Tá.

LEANDRA
E pense que deus está no comando de tudo, Gui. Ele chamou ela por um propósito. Tudo tem um propósito sim. 

(silêncio)

LEANDRA
Eu sei que você não acredita, mas essa é a verdade. Você acreditando ou não. 

GUILE
Pare, Le.

LEANDRA
Nós vamos nos encontrar de novo, Gui. Eu não tenho nenhuma dúvida disso. Eu sinto isso.

GUILE
Eu já não sou tão certo dessa teoria. E é um pouco mais dolorido pensar como eu, talvez, você estava certa. 

LEANDRA
O que?

GUILE

Você teve o baque. Sofreu. E aceitou que em breve vocês ficarão juntas de novo. Porque acredita nisso. Eu lidei de começo na lógica e na razão. Mas a lógica e a razão é tão estranha e dolorosa como acreditar em um deus. Eu sei que não nos veremos mais, e não sei mais lidar com isso...  

LEANDRA
Deus não é estranho e não é nada doloroso. Deus é o conforto nessas horas.

GUILE
Pode ser. Mas não garante a existência...

LEANDRA
E a gente vai se ver sim! Eu tenho certeza absoluta disso. Pode apostar.

GUILE
Se eu estiver certo, não terei como exigir meu prêmio na aposta.

LEANDRA
Se eu estiver certa, você vai pro inferno por não acreditar. É assim que é.

(silêncio; Gui, incomodado, sai sem dizer nada)

LEANDRA
O que foi?

(black-out)


CENA IV: DOENÇA

(num telão, um vídeo caseiro mostra uma criança em 1994; ele corre da pessoa que filma e brinca com alguns brinquedos; outros vídeos de outros dias mostram a felicidade de uma família com seu único filho em descobrimento; Efigênia aparece brincando com ele algumas vezes)

(um foco destaca a cabeça de Igor)

IGOR
Eu amo boceta. (longo silêncio; ele ri e faz algumas caretas, descontraindo o ambiente) A vida é assim. Você nasce, aí sua mãe ou seu pai nos apresenta algumas coisinhas quando criança. Aí tem os tios, aquela realidade de vizinhos, televisão. Mas a parte mais importante é quando você começa a conseguir descobrir as coisas sozinho, sabe. Acho que na adolescência, talvez. Na época das espinhas e do descobrimento sexual. (pausa) E aí minha mãe perguntou quando veio me visitar: “Filho, o que foi que eu fiz de errado? Porque você fez isso?” Eu disse: “Você não fez nada, mãe. É assim que era pra ser.” Eu sei que eu fiz merda, mas quem tá aqui pra julgar, não é? Quem nunca fez merda que atire a primeira pedra.Vai saber o que passa pela cabeça daquele mendigo que você tromba todo dia naquela mesma esquina. Vai saber quais são os motivos dele? Vai saber o que moveu o ladrãozinho que roubou o celular da minha mãe? Naquele dia ela chegou revoltada em casa. Disse que enfiaria um pau no cu do desgraçado, se tivesse chance. (pausa) Eu matei três mulheres na flor da idade. Desculpem pela convicção. Ela chegou aqui e chorou por mim. Aposto que a mãe do marginal também já deve ter chorado bastante também. Principalmente dos marginais pobres e surrados. E será que a culpa é só da mãe? Ou do pai? É culpa da favela, da rua, será? Não. Tem muita gente de bem por aí. Tem gente que podia ser bandido, mas num estalo decidiu fazer uma faculdade. Sorte. (pausa) Gente de bem é um conceito meio estranho, não é? Gente de bem é gente que pensa o bem, sabe.  Não digo daqueles que acham que são de bem, mas que furam fila quando vê que dá pra se dar um jeitinho, que reclama da polícia militar e da corrupção de políticos, mas não devolve um troco errado, que acha que a punição com dor é pouco. Digo dos de bem mesmo. Que compreendem. Que sabe que ser branco de classe média alta tem suas aflições – e tem que ser roubado sim! – por alimentar a diferença quando olha com receio dois jovens de rua se aproximando. (pausa) Tínhamos que aprender com isso tudo. Entender que o bandido teve oportunidades de não ser bandido; mas se ele chegou nos finalmente como um bandido ativo, ladrão, larápio, quer dizer que é assim que é e é culpa de todos nós – repito: de todos nós! Não só da mãe que não deu um cacete quando criança. Porque ele pode ter tido oportunidades de trabalho, de estudo e tudo o mais, eu entendo. Mas as experiências que ele teve não foram suficientes para gerar essa compreensão de que a vida não precisa ser violenta e que dá pra se dar um jeito honestamente. A vida não fez a cabeça dele adquirir pensamentos de honestidade. Assim como acontece com muita gente que se considera “gente de bem”. Pra ele, a realidade é essa, e pra mudar cansa. Como muita gente de colarinho branco também pensa. (pausa) Enfim, você é a favor da pena de morte? O bandido que roubou seu celular devia ter a mão decepada? O pedófilo devia ser amarrado em praça pública? Justiça é medida por quem e por qual ordem divina? Sinta ódio, se quiser, sinta. Mas eu recomendo que não. Me disseram: “E se matassem seu filho, sua filha? Você iria dar um abraço no filho da puta?” Não. Eu não iria dar um abraço. Eu com certeza ia ficar com muita raiva e talvez num surto de ódio talvez até capaz de fazer uma loucura. E eu ia me igualar a todos. A ele, também. Pois fez o que fez num surto de ódio. Matou, porque tinha ódio. E combater ódio com ódio não dará efeito jamais. Então, eu esperaria a poeira da minha cabeça baixar, ia querer sim que ele fosse punido, mas não acho que ele devesse sofrer. Não acho que os presídios são luxos pra essa ralé. Que a ralé deveria ser exterminada, sofrer. Fico pensando que ele também já foi criança e chegou ao ponto que chegou por culpa do molde. Então ele tá na mesma que eu. E que você também. Estamos todos iguais. Uns nasceram com sorte, essa é a diferença. Com menos melanina na pele e mais dinheiro. (pausa) Sei, essa é minha desculpinha. Não sei por que fui capaz de matar elas três, tô tentando descobrir a vida toda. (pausa) Ponto final. 

(as luzes se acendem e Letícia está só de calcinha e sutiã)

LETÍCIA
Você gosta como?

IGOR
De quatro.

LETÍCIA
Tem que ir devagarzinho, tá bom?

IGOR
Tá bom. Eu gosto de um pouco mais de romance, também.

(Letícia se aproxima e beija Igor sensualmente)

LETÍCIA
Assim?

IGOR
Uhum.

(ela pega no pau dele; ele se irrita e tira a mão dela)

LETÍCIA
Quer que eu me finja de puritana?

IGOR
Quero que você finja que não tá afim.

LETÍCIA
O que?

IGOR
Finja que não quer.

LETÍCIA
Você quer à força, é isso?

IGOR
Quero.

LETÍCIA
Hum. Que sensual.

IGOR
Sim.

(pausa)

LETÍCIA
Desculpe perguntar, é só uma curiosidade. De onde que vem esse fetiche?

IGOR
Oi?

LETÍCIA
De onde vem esse tesão? Você curte uma parada mais violenta, é isso?

IGOR
Não. Eu até que sou bem calmo. Mas é que eu tô pagando.

LETÍCIA
Ah, sim, a gente pode atuar, se é isso que você quer. Só perguntei porque achei curioso.

(silêncio)

LETÍCIA
(interpreta falsamente infantil) Senhor, por que me trouxe pra esse quarto? Não posso ficar sozinha do seu lado. Minha mãe me disse pra eu não conversar com estranhos. Acho melhor eu me vestir. (ela abre o sutiã) Opa. Meu sutiã arrebentou. Não olhe. Vire-se para lá.

(Igor obedece bobo; black-out)


CENA V: A MORTA

(um foco destaca a cabeça de Letícia)

LETÍCIA
Eu tenho a convicção de uma coisa: morrer é uma coisa muito louca.

(as luzes se acendem e Cesarina dança como um espectro ao fundo)

LETÍCIA
(surpresa) Caralho! Eles estavam certos. É assim que é morrer. Olha! Tem mais gente. Tem surrealismo. Pode-se acontecer de tudo, eu sinto. Eu sei. É estranho. O que aconteceu? (ela coloca a mão no pescoço) Estrangulada. (coloca a mão na boceta; silêncio) Filho da puta. Eu tinha tanta coisa pra fazer. E amanhã? (silêncio; ela se desespera num surto) Ah, meu senhor! Será que ainda dá tempo de me arrepender? Eu não queria. Eu juro que não queria. É tão complicado. Que lugar é esse, meu deus, que lugar é esse? (silêncio) Não é o inferno, não é o inferno. Por favor, não seja. (silêncio) Pai, me perdoa. Não me mande pro inferno. Eu não tive tempo. Me dá mais uma chance, por favor, me dá mais uma chance. Eu não achei que fosse morrer agora. Eu ia me arrepender daquelas coisas. Eu precisava de dinheiro... Eu juro que eu ia voltar pra igreja, senhor, eu juro. Era uma fase. Eu já estava aprendendo. Eu preciso de mais tempo, senhor, por favor. (ela chora) O inferno não...

CESARINA
Todos teremos outros tempos, menina. Aqui não é o inferno não.

LETÍCIA
Ah, você fala! Você é um anjo! Me ajude à seguir a luz!

CESARINA
Não. Eu não sou um anjo, sua louca! Eu também morri. Estou morrendo na verdade. Estive por dois meses internada, um câncer. Eu já estava bem velhinha. Nesse exato momento meu cérebro está desligando, por isso a gente ainda está aqui. Vai saber quanto tempo isso vai durar. Quero que meus filhos não sofram por mim, é minha única preocupação agora. Aqui o tempo corre diferente.

LETÍCIA
Quantos filhos você tem?

CESARINA
Dois. Um menino e uma menina.

LETÍCIA
Eu não tive tempo. Eu queria ter tido.

CESARINA
O que aconteceu com você?

LETÍCIA
Fui estuprada e estrangulada. Um maníaco. Eu era...

(silêncio)

CESARINA
O que?

LETÍCIA
Eu precisava de dinheiro.

CESARINA
Eu não sou um confessionário.

LETÍCIA
Deus vai me julgar. Eu estou ferrada.

CESARINA
Não se preocupe. Você parece ser uma menina inteligente.

LETÍCIA
Pareço? Mas e deus? Ele tem planos maiores.

CESARINA
Exatamente. Você disse certo. Ele tem planos maiores.

LETÍCIA
Não, quero dizer... Eu sabia que o que eu fazia era errado. Antes, eu ia na igreja, eu ia e eu juro. Minha mãe é da Congregação. Mas depois... foi difícil. Eu esperei. Mas... Eu não quero ser condenada a passar a eternidade no inferno! 

CESARINA
(ri) Menina, você acreditava em quê, na Terra?

LETÍCIA
Oi?

CESARINA
Em que você acredita?

LETÍCIA
Eu me prostituía, moça. Eu era puta. (silêncio) Eu precisava de dinheiro. Mas eu acredito na bíblia. E um cliente me estrangulou e estuprou.

CESARINA
Não sou ninguém pra te julgar. Com a prostituta temos um exemplo clássico no livro que você diz que acredita. Preciso citar?

LETÍCIA
Não.

(Cesarina, com os dedos, desenha um olho no chão)

LETÍCIA
Mas eu deveria me arrepender antes. Antes de morrer.

CESARINA
Eu acredito que todos temos tempo. Pra sempre. E é sempre uma mutação de convicções! Estou me sentindo tão bem, que não me importa o que virá depois. Meu filho acredita que quando morremos é o fim. Minha filha costumava ir na missa quando eu ia. Mas, por enquanto, nesse último momento de sensações corporais que estou tendo, eu quero mais é que se foda tudo isso. Desculpe o termo. Se acabar, não vou poder contestar. Se continuar, tomara que não seja como os mal interpretadores da bíblia acham que vão ser. Porque sim, eu também não sou nenhuma santinha.

LETÍCIA
Os católicos acreditam em purgatório, não?

CESARINA
Você não entendeu? Que se dane o que os católicos acreditam, menina! Venha dançar comigo!

LETÍCIA
Eu sou protestante.

CESARINA
Você não é mais nada. Talvez você ainda não esteja morta. Talvez você esteja como eu. Num hospital. Morrendo. Ou não. Talvez em coma só.

LETÍCIA
(se empolga com a ideia de estar viva) Sim! Sim, sim sim!

(black-out)


CENA VI: MÃE

(um foco destaca a cabeça de Laio)

LAIO
Nós não temos nada a dizer. A nossa família, a mãe dele, tá todo mundo muito abalado com isso também. Eu gostaria de pedir pra que vocês nos deixassem em paz, porque tá sendo muito dolorido pra todo mundo. Por misericórdia.

(Efigênia empurra Laio do foco, e toma a palavra)

EFIGÊNIA
As pessoas estão destruindo a minha casa! Se ele fez o que estão dizendo que ele fez, ele vai pagar com o que é justo. Mas quebraram um braço dele na delegacia! Os filhos da puta da polícia! Quebraram um braço do meu filho! Estão deixando ele sem água! Enjaulado num lugar onde ele tem que cagar no chão! O mínimo – o mínimo, é o que eu peço! Até que se prove. (pausa) O Igor sempre foi um menino muito bom. Se ele fez essa merda, ele tem que ser punido. Mas eu não quero que ele sofra. Ele não devia sofrer mais do que já sofreu na vida.

(as luzes se acendem; Efigênia senta-se ao lado de Laio; ambos demonstram cansaço; longo silêncio)

(uma cadeira voa pra dentro de cena; eles nem se assustam mais)

VOZ
(off) Efigênia, sua folgada! Seu filho é um maníaco sem alma!

VOZ
(off) Isso não é gente! É um monstro!

(silêncio)

LAIO
Eles nunca mais vão nos deixar em paz.

(o telefone toca; Efigênia, num surto de raiva, joga o telefone longe; longo silêncio)

EFIGÊNIA
Você é a favor da pena de morte, Laio?

(silêncio)

EFIGÊNIA
Eu era. (pausa) Que bosta.

(um longo silêncio preenche a cena; a luz cai vagarosamente)

(black-out)


CENA VII: DOR

(um foco destaca a cabeça de Guile; ele está terrivelmente abatido)

GUILE
Eu tô com depressão. É uma doença isso. Eu tô fodido. Minha mãe morreu, eu não acredito mais em deus. (pausa) Algumas drogas despertam uma loucura de verdade mesmo, sabe? O foda é que é uma loucura óbvia que te faz pensar que foda-se. Entende? Igual minha mãe dizia às vezes. (ri) Mesmo que haja prazeres, não há sentido pela busca deles. Entende? (pausa) Cheguei num ponto que me afundei na falta de perspectiva. Eu não consigo mais colocar de volta no automático. Eu tenho mais medo do que o normal. Medo das coisas, medo de não aguentar. (pausa) Não foi só a morte da minha mãe. A morte foi só uma chavinha pra piorar tudo daqui de dentro. (pausa) Nós não servimos pra nada. Pra um analfabeto, a palavra nada tem o mesmo significado de tudo, quando lido.

(as luzes acendem; Leandra entra)

LEANDRA
A menina sobreviveu, Gui.

GUILE
Que menina?

LEANDRA
A que foi estuprada. Que tava junto com a mãe no quarto do hospital.

GUILE
É mesmo? Ela acordou?

LEANDRA
Talvez fique com alguma sequela. Mas falaram que ela acordou rindo. Você acredita?

GUILE
Que bom, né?

LEANDRA
O menino que tentou matar ela deve tá contente. Dez anos a menos na cadeia.

GUILE
As outras duas morreram, não morreram?

LEANDRA
Sim, eu sei. Enfim, pelo menos uma notícia boa em meio à tanta desgraça.

GUILE
É. Tem razão. 

LEANDRA
Você tá bem?

GUILE
Mais ou menos.

LEANDRA
Hum.

(silêncio; um rápido momento de tensão: Guile saca um revólver, coloca na boca, e antes de Leandra gritar, ele atira; black-out)

(as luzes se acendem e ambos estão na mesma posição que antes; o revólver não existe; Guile suspira dolorido)

LEANDRA
Você tem que parar de ser tonto, Gui. Você precisa se recuperar da morte dela.

GUILE
Não é só a morte dela. É tudo, sabe? Tudo. Nada.

(black-out)


CENA VIII: PERDÃO

(um foco destaca a cabeça de Letícia)

LETÍCIA
O que eu diria pra ele? (pausa) “Eu sinto muito”. Eu acho. Só quem passa por isso vai conseguir entender o que eu tô sentindo. Não, eu não tenho raiva dele. É culpa de nós todos, a criação de monstros. Podem rir. Eu tive uma experiência sensacional. Eu fiquei dois meses em coma ao lado de uma senhora, no hospital. E se eu disser, vocês não vão acreditar. Mas a gente passou todo esse tempo juntas. Juntas, mesmo. Conversando no realismo. E lá do outro lado o tempo passa diferente, foi quase que uma eternidade de muitos assuntos. (pausa) Eu, antes de acontecer tudo isso, me prostituía. É verdade. Eu parei com esse pensamento não porque alguns dizem que é pecado, ou porque talvez ainda seja moralmente indecente. Eu parei porque eu quis e porque tenho convicção de que as coisas agem da forma que a gente quiser. O que eu quiser ser, eu vou ser. (pausa) Um recado para as prostitutas cristãs que sentem culpa: Não se preocupem. Não tem perigo nenhum. A gente quem cria nosso inferno e nosso paraíso.

(as luzes se acendem; Igor está frente a frente com ela, com as mãos algemadas)

(longo silêncio; de começo, Letícia observa curiosa; por alguns segundos tenta dizer alguma coisa, mas não consegue; por fim, Letícia dá um murro na cara de Igor)

LETÍCIO
Corno! (vira-se para a plateia) Mortais, queiram ou não, estamos certo de uma coisa, eu tenho uma resposta: O que te faz você, e o que me faz eu, e o que faz de todo mundo indivíduos separados, separadinhos, iguaizinhos, mas diferentes, acompanhados, mas eternamente sozinhos, é a memória de todas as experiências vividas de cada centésimo de segundo único que nunca é igual em cada canto desse planeta colorido, nunca é a mesma coisa pra mim e pra você, nunca foi e nunca será igual pra ninguém nesse mundo. E mesmo as experiências compartilhadas são divididas por sentimentos e percepções únicas, nas quais cada um – cada um! – recorta e absorve de uma maneira completamente diferente o fato, por necessidade, ou às vezes, porque ela quer.

(Cesarina aparece em um foco)

CESARINA
O cérebro é um bagulho louco. Quem já usou algum tipo de alucinógeno sabe bem do que ele é capaz de mostrar e fazer. (pausa) Boa sorte lá fora, menina! Você ainda vai viver bastante! Independente de qual será a resposta que eu descobrirei morrendo, eu nunca irei te contar. Abraços.

LETÍCIA
Abraços! Espero que eu não acorde deste coma, grávida do filho da puta. Boa sorte pra você também nesse mistério!

(black-out)


CENA IX: FILHO

(as luzes se acendem e Igor está sentado frente à uma mesa; ele está algemado e de cabeça baixa; Efigênia entra abatida e senta-se frente à frente com o filho)

EFIGÊNIA
Oi.

IGOR
Oi.

(silêncio)

EFIGÊNIA
Você tá bem?

IGOR
Tô.

(silêncio)

EFIGÊNIA
A garota sobreviveu. Uma delas.

IGOR
Eu sei.

EFIGÊNIA
Vão diminuir a pena, eu acho.

IGOR
Sei lá.

(silêncio)

EFIGÊNIA
Eu tenho tanta saudade.

(silêncio)

EFIGÊNIA
Por que fez aquelas coisas, Igor? O que eu fiz de errado?

IGOR
Você não fez nada, mãe. É assim que é pra ser.

EFIGÊNIA
Foi alguma coisa que eu não te ensinei, foi alguma coisa que eu te disse...

IGOR
Não é culpa sua, mãe. Eu tenho problemas com as coisas que passam pela minha cabeça.

EFIGÊNIA
É culpa minha, sim. Você é meu filho. Eu tinha que ter feito alguma coisa. O que você sentia, Igor? Você sentia raiva delas, filho, é isso? Eu não consigo entender.

IGOR
Eu também não sei explicar.

EFIGÊNIA
Elas também tinham mães, Igor. Você... (ela desaba) Ah, meu deus, Igor. Por que, meu filho? Por que?

IGOR
É difícil, mãe. Talvez seja melhor você me esquecer e seguir sua vida adiante.

EFIGÊNIA
Cale essa boca! Você é meu filho, Igor. Eu vou tomar conta de você aconteça o que acontecer. (pausa) Eu só queria entender. Entender de onde veio isso.

IGOR
Talvez a gente já nasce predestinado.

(silêncio)

EFIGÊNIA
Eu te trouxe aquela bolacha que você gosta. (tira uma sacola da bolsa) E um leite condensado, pra você misturar.

IGOR
Obrigado.

EFIGÊNIA
Tem um potinho também.

IGOR
Valeu.

(silêncio)

EFIGÊNIA
Eu amo você. Tá?

IGOR
Tá.

(ela se levanta e dá um beijo nele; longo silêncio)

EFIGÊNIA
Eu queria tanto saber o que você pensa. Eu sinto como se fosse minha culpa.

(Igor se levanta, tira um revólver de algum lugar e aponta para a mãe)

IGOR
Na verdade, a culpa é toda sua mesmo, mãe!

(um tiro; black-out)

(as luzes se acendem e ambos estão na mesma posição; não existe revólver nenhum)

IGOR
Você não tem culpa de nada, mãe. Ninguém tem culpa de nada...

(black-out)


CENA X: DO ALÉM

(um foco destaca as cabeças de Guile e Letícia; as luzes se acendem por completo e ambos se olham)

GUILE
Você disse que queria falar comigo.

LETÍCIA
Sim. Vai parecer estranho.

GUILE
Eu ouvi dizer o que você tem falado por aí. Eu não acredito nessas coisas.

LETÍCIA
Não tô dizendo sobre algo paranormal. Tô dizendo sobre realidade física.

GUILE
(ri) Tá bom. Qual é o recado que minha mãe te deu do além?

LETÍCIA
Ela me disse que você é um garoto frio. Que não divide os sentimentos.

(silêncio)

LETÍCIA
Mas disse que isso é uma defesa. É sua defesa pra um sentimentalismo profundo e quase depressivo.

GUILE
(se irrita) Tá bom, muito obrigado pelas palavras que me confortam. (se arruma pra sair) Agora eu preciso ir.

(Letícia fecha os olhos; ao fundo, Cesarina aparece espectralmente)

LETÍCIA e CESARINA
(cantam como uma música de ninar)
“Minhas criancinhas que eu cuido aqui dentro
Serão borboletinhas nesse mundo violento
Mas tudo o que eu puder, eu farei pra ajudar
Nem o boi, bicho papão,
Nem a cuca vai pegar”

(Guile se emociona)

LETÍCIA
Eu ouvi essa música por quase uma eternidade enquanto estive em coma. Um mês e meio aqui fora. Eu tinha que decorar.

Guile
Minha mãe cantava pra mim e pra minha irmã. (chora mais)

LETÍCIA
Eu sei. Ela me disse. Ela foi uma mulher maravilhosa.

GUILE
Por que está fazendo isso?

LETÍCIA
Ela gostaria que você parasse de se preocupar.

GUILE
Eu já disse que não estou sofrendo só por causa dela! Eu não tenho visto mais sentido na vida, eu tô meio que cansado dessas besteiras, dessas convenções ridículas, de tudo! Cansado do mundo. De ter que ver gente morrendo... Você consegue ver sentido nisso? Eu sei que eu tô parecendo um louco depressivo, mas só quem já usou algum tipo de alucinógeno pode dizer. (pausa) Eu não acredito nisso que você diz! Pode ser uma terrível coincidência, mas eu não acredito na vida após a morte.

LETÍCIA
Sua mãe também não acreditava. E nunca saberemos. Eu tô falando de outra coisa. De uma despedida quântica. De telepatia, não psicografia. A gente ficou um mês no mesmo quarto. Eu cheguei depois. E vi ela indo embora.

(silêncio)

LETÍCIA
Não sei se descobri o sentido da vida, querido. Não é isso. Mas eu aprendi uma coisa com sua mãe. Ela estava tão contente indo embora. E ela disse que só queria que não fosse como os mau interpretadores da bíblia pensam que é.

GUILE
(ri enxugando as lágrimas) Ela é inteligente.

LETÍCIA
Muito. Não sei aqui fora, mas lá dentro ela era sensacional. Ela queria que parássemos de nos preocupar com as coisas. Os prazeres da vida tem sentido sim! Ela me ensinou um botãozinho que já é clichê e bastante conhecido, sabe.

GUILE
Botãozinho?

LETÍCIA
Do foda-se.

GUILE
(ri) O botãozinho do foda-se? 

LETÍCIA
Sim. Foda-se o tudo! Segue em frente, caramba. Sai dançando. Sai gritando por aí. Sai fazendo o que quiser. Pula, chuta, faz o que quiser. Quer matar alguém? Mata, porra! Foda-se!

GUILE
O que? Você tá louca?

LETÍCIA
Foda-se! Se alguma coisa acontece nessa realidade, é assim que é pra ser. As pessoas morrem na hora que deviam morrer. Os assassinos existentes hoje são assassinos porque essa é a história dessa era. Aprenderemos com isso. Não eu e você. O futuro. Não tô realmente dizendo pra você matar alguém, não é isso, pelo amor de deus. Digo que se for de seu caráter, já criado até agora, eu não vou poder impedir. Irá acontecer. Amanhã ou depois. Olha, tente me entender. Você se lembra de dois mil e treze? Aquele ano, por exemplo, foi um ano gay. Muitos gays foram assassinados – e não tô dizendo que isso é bom e aceitável –, mas foi um estopim pra que o assunto fosse parar na boca do povo, e fazer com que muita gente entendesse mais sobre o assunto, e depois que fosse parar o beijo gay até na novela. Então, eu concluo, que se eu nascesse sabendo que com treze anos eu morreria por uma causa totalmente justa, que eu morreria – mesmo jovem – pra que nosso futuro não precisasse mais morrer, pra que o ser humano pudesse entender pouco a pouco que precisamos ter paciência e compaixão com o próximo, seja qual for o destino e caráter daquele próximo, eu morreria orgulhosa de mim mesma. Por ter importância no aprendizado na vida do planeta, que hoje, tenho certeza absoluta, respira sozinho. Exatamente. O planeta respira sozinho. Nós somos suas células imbecis. As pessoas morrem na hora que devem morrer. Só se conclui uma aventura quando chega a hora da morte. Então até lá temos importâncias infinitas no decorrer de diversos assuntos. Nós somos importantes em tudo e até quando morre “precocemente”, como dizem por aí. (pausa) Eu não odeio o cara que me estuprou. Virei um grande exemplo na luta contra a violência contra a mulher, dei até entrevista pra Band. (pausa) Me desculpa. Foi uma experiência sensacional, a que eu tive e estou tendo.

GUILE
Fique longe da minha família, por favor.

(Guile sai; black-out)


CENA XI: O PADRASTO

(Efigênia está deitada no colo de Laio)

EFIGÊNIA
Talvez seja a porque o pai dele nunca foi presente. Pode ser isso, não pode?

LAIO
Não sei. Ele não gostava de mim.

EFIGÊNIA
Você já pegou ele grande. Como ele teve coragem de fazer aquilo, La? Ele nunca foi violento, nunca. Ele sempre foi tão calmo.

LAIO
Eu sei. Não dá pra saber o que passa na cabeça dos outros.

(silêncio)

EFIGÊNIA
Eu não sei o que eu faria sem você aqui comigo, Laio. De verdade.

LAIO
É minha função como companheiro, não?

EFIGÊNIA
A gente não casou ainda.

LAIO
Isso seria um pedido, é?

EFIGÊNIA
Agora que o Igor foi preso, eu vou ficar sozinha aqui. E já faz nove anos que a gente namora sério.

LAIO
Eu vou ficar aqui com você. Eu gosto de você.

EFIGÊNIA
Eu amo você.

LAIO
Eu também. Amo você, também.

(eles se beijam)

EFIGÊNIA
Agora me pede em casamento.

LAIO
Ai, meu deus.

EFIGÊNIA
Brincadeira, brincadeira. Eu tô brincando, viu?

(black-out)

(as luzes se acendem e Laio está metendo realisticamente em Letícia; que geme enlouquecidamente)

LETÍCIA
Você é casado?

LAIO
Eu namoro só.

LETÍCIA
Ah, namoro não tem problema.

(black-out)


CENA XII: CONVICTA (NÃO)

(um foco destaca a cabeça de Leandra)

LEANDRA
(fria) Pois bem. Meu querido irmão se enforcou com o cadarço do tênis do meu namorado. Ele não suportou a perda da nossa mãe e fez isso pra me provocar.

(a cabeça de Guile entra em destaque também)

GUILE
Não foi só por causa da mãe, caralho. Foi um estopim. Não foi pra te provocar!

LEANDRA
Eu ainda não consegui chorar. Eu não sei o que eu tô sentindo nesse momento. (Guile reage à tudo) Ele foi bem filho da puta em fazer isso. (repensa) Se bem que foi uma boa declaração de amor à mãe. Eu, egoísta, fiquei aqui. Segui em frente. (repensa) Não. Coitado. Vai saber o tamanho do sofrimento que ele tinha. A gente não era muito, muito próximo. Era só briga, quando a gente era criança. Mas lógico que eu gostava dele. (pausa; ela engole em seco) Os católicos dizem que quem se mata é condenado ao terror, sabe. Eu ia na missa com a minha mãe. Eu gosto de acreditar neles, eu acho bonito. (Guile sofre contido; silêncio) Ele era um irmão legal. Não sei. (ela finalmente chora) Eu não acho que ele mereça sofrer mais do que já sofreu. Não acho. Foi uma pena. (pausa) Eu pedi pra deus pra eu poder ver minha mãe quando ela morreu. Pra pelo menos falar tchau. (Guile sai do foco e se dirige até ela) Mas ele eu não quero ver. Eu não quero saber. Eu não quero ter que olhar no olho dele. (Guile pára surpreso) É triste pensar que eu nunca mais vou ver eles. (ela desaba num choro dolorido; Guile volta ao foco da cabeça; logo, ela se recupera enxugando os olhos apressada) Enfim, hoje eu acho que eu não sou mais convicta com meus pensamentos. Acho que deus não é aquele tirano que eu achava lindo, não. Com aquela história bonita; bonita de vinganças e histórias macabras. Não, acho que eu não quero mais acreditar neles, porque eles fazem com que eu tenha que aceitar que meu irmão foi pro inferno e que vai arder por toda a eternidade! (Guile comemora) Sofrer e sofrer e sofrer, mais do que já sofreu! (silêncio; Guile está orgulhoso) Eu acho que não tenho mais convicção em nada nessa vida. Tem hora que eu argumento, e depois me contradigo. (Guile fica confuso) Eu digo que acredito numa porra de uma ideia, mas amanhã eu mudo, caramba. Eu não sei se me darão credibilidade, por isso. É foda. É mais que foda. Pensar dói.

GUILE
Existe vida após a morte. Olhe eu aqui, Le. Eu mesmo me comprovei. Eu estou aqui! Olha pra mim!

(silêncio)

GUILE
(chamando a atenção) Le-e?! Eu disse que existe mesmo vida após a morte. Estou contradizendo tudo o que eu já tinha discutido com você. Lembra? Mas acho que não é igual você falava também. Ninguém acertou. É bastante estranho, sério. Eu não tô em coma, tô? Eu me matei mesmo, né?

LEANDRA
(para a plateia) Vocês já ouviram falar daquela nova tecnologia que chamam de nuvem? Por exemplo, hoje em dia guardamos nossos arquivos em partículas finas e pequenas, mas visíveis à olho nu. Estão testando uma tecnologia onde não existirá mais limite de armazenamento. Será um arquivo armazenado no ar. Assim como funciona o Wi-fi.

GUILE
Você ouviu que eu tava falando com você? Eu tô aqui, menina. Eu voltei.

LEANDRA
Talvez um espírito seja isso. Um resto de memória vaporizada.

(silêncio; Guile retorna pensativo pro seu foco)

LEANDRA
Um resto de memória vaporizada.

GUILE
Um resto de memória vaporizada.

(silêncio; a cabeça de Guile desaparece; Leandra apenas respira pensativa; a luz cai em resistência muito lentamente)

(black-out)


CENA XIII: O VINGADOR

(Laio come Letícia em outra posição)

LAIO
Finja que não tá gostando.

LETÍCIA
(interpreta) Para! Para! Por favor!

LAIO
Isso, cadelinha. Toma. Toma.

LETÍCIA
Oh, não.

LAIO
Eu ainda gosto de comer você.

LETÍCIA
Meu cliente VIP.

(Igor entra com um machado e enfia nas costas de Laio; Laio demora pra morrer; ele se contorce enquanto Igor e Letícia se encaram)

LETÍCIA
Você.

IGOR
Ele namora minha mãe, sabia disso?

LETÍCIA
Eu tô precisando de dinheiro. Eu ia parar com essa vida...

IGOR
Não sou confessionário.

LETÍCIA
Como saiu da cadeia?

(Laio dá os últimos suspiros e morre)

LETÍCIA
Como você saiu da cadeia? Não me mate, por favor.

IGOR
Me desculpa por aquilo. Eu era um cara diferente até ontem.

LETÍCIA
Tudo bem. Eu não vou contar pra ninguém. Por favor, me deixa ir embora.

IGOR
Eu não vou te machucar.

(Igor vai até Letícia e beija sua boca; ela treme de medo)

IGOR
Eu acho que eu mudei. Vou virar um justiceiro agora. Contra os marginais e filhos da puta. A única coisa de que eu tenho convicção é de que as convicções sempre mudam. 

(Igor veste uma máscara ridícula e tira a roupa disfarce revelando um traje colorido de super-herói; música e pose de final de saga)

LETÍCIA
(corta) Que porra é essa, cara?

IGOR
O futuro! O futuro! De assassino psicopata pra herói vingador com fantasia e tudo! Grande evolução existencial, não?

(silêncio; por um instante Letícia parece não acreditar no que está vendo; de repente ela também tira a roupa e por baixo há uma roupa de heroína, com capa e tudo)

LETÍCIA
Eu pensei que eu estava sozinha!

IGOR
Não, baby. Eu estou aqui.

(eles saem voando abraçados; black-out)


EPÍLOGO

(vários focos destacam as cabeças de todos os personagens; eles cantam terrivelmente toscos)

TODOS
“Juro porque juro bem jurado no que digo
Burro é todo mundo que se diverte discutindo
A verdade hoje é exata só pra hoje
Amanhã quem sabe, quem serei e quem será?
A mãe não tem culpa, mas mesmo que assim fosse
Nós somos grande luta, num planeta à respirar
Hoje eu sou convicto e defendo à dente e unha
Ontem eu era cínico e nem podia palpitar
Amanhã quem sabe se realmente a chuva vem
Eu não sei se a certeza vem de mim ou de alguém
Perdida por aí
Que talvez eu ainda nem conheça
Ou que nunca conhecerei”.

CESARINA
Mortais, queiram ou não, estamos certo de uma coisa, eu tenho uma resposta. A resposta pra todas as nossas dúvidas, hipocrisias e convicções é a seguinte:

(black-out)

FIM 





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