O DIREITO DOS PREFERIDOS
ESPETÁCULO DIVIDIDO EM TRÊS ATOS E UM EPÍLOGO
ATO I: O DESTINO DOS PREFERIDOS
PERSONAGENS
LUCIANO FERREIRA
LUCIANO FERRADO
FAMÍLIA FERREIRA (PAI, MÃE, TIO, TIA, PRIMA, ETC)
FAMÍLIA FERRADO (PAI, MÃE, TIO, TIA, PRIMA, ETC)
ESPOSA DE LUCIANO FERREIRA
GAROTA
PARTEIROS
POLICIAIS
BANDIDOS
TREINADORES
REPÓRTERES
REPÓRTER A
MÉDICOS
JESUS CRISTO
(as luzes se acendem e dois partos acontecem em focos
paralelos; em ambos os lados, tudo é repetido simetricamente; a mesma
quantidade de parteiros e acompanhantes; tudo idêntico)
(uma quebra no áudio e na luz faz a cena congelar como em
vídeo; Jesus Cristo entra jovem e palestrante)
JESUS CRISTO
Boa noite. Eis me aqui. Voltei.
(ao fundo, ouve-se um cânone de “Ave Maria”)
JESUS CRISTO
Meros mortais, vocês devem estar se perguntando: “o que
diabos Jesus está fazendo aqui? Oras, vejamos.” (pausa) Bem, acredito que o pai
celestial tem uma obra científica para discorrer na Terra. Os meios nem sempre
importam. Talvez um camponês que ninguém sabe o nome tenha tido mais
importância real para a evolução do planeta que a minha própria figura, e nunca
saberemos. Mas como é de mim que sabem, e de mim que sai a desculpa para tentar
– repito: tentar! – ser santo, pelo menos pela maioria dos brasileiros e em uma
porcentagem considerável de deputados; eis me aqui novamente. Em carne e osso.
Com chagas e tudo o mais. Com remorso e arrependimento, talvez. (para si) Eu
devia ter dito pra me seguirem, mas pra não me endeusarem. (volta) Eu odeio ser
tratado como o papa. E o pior, é que muitos atribuem pensamentos que eu não
tive, à minha pessoa! Acreditam? Saem por aí pregando incompreensão e usam de
mim! Os índios, coitados, deixaram pra trás uma porrada de ideias para a
formação de caráter bastante bacanas. E eu vou levar a culpa? Ma, jamé!
TODOS
Mas jamais coloque a culpa em terceiros não avisados
Mas jamais coloque a culpa em terceiros não avisados
Num discurso eloquente de justiceiro requintado
Jesus não nos deixou um cajado de julgador supremo e
alado
Apenas profetizou um difícil e inteligente
Plano sofisticado
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
Avisa que todo mundo tem direito a liberdade
À vida e à segurança pessoal
Isso tudo poderia ser legal
Se refere as crianças
A mim e a você
Que envolve o marginal que está na rua pra comer
A culpa sua? A culpa é minha?
JESUS CRISTO
Não quero me envolver
Lidem com o monstro
Você criou
Agora aguente
Não me coloque a culpa
Eu sei, também fui gente
TODOS
Somos todos frutos do que é pra acontecer
Dessa nova era só depois dá pra entender
Não incite guerra, isso pode piorar
Regredir não é o melhor caminho
Vamos tentar nos socorrer
E isso não se faz sozinho
Precisa de carinho
E não só com quem você conhece
Só com quem quis conhecer
(o parto retorna; tudo ainda acontece coreografado)
JESUS CRISTO
Duas crianças estão nascendo nesse exato momento. As mães
não se conhecem. Não existe nenhuma ligação entre as duas famílias. Mas elas,
por coincidência, estão nascendo nas mesmas circunstâncias. No mesmo nível
financeiro, quantidade de melanina na pele, classe social e cultural. Por incrível
que pareça, as duas crianças terão o mesmo nome. Serão do mesmo signo e terão
quase que a mesma criação e crença. Toda a energia física e astrológica do
planeta daquele segundo que o cérebro sugar o oxigênio pela primeira vez será
único, mas os dois, por algum motivo estarão respirando a mesma quantidade de
luz e treva que o outro. As mesmas chances. Talvez quase que uma cópia falha de
deus. Posso afirmar que a vitória da diferença fica para as digitais e para as
feições que cada um levou da descendência. Mas de resto, eles poderiam ter sido
almas gêmeas em outra vida...
(os bebês nascem)
JESUS CRISTO
Se não fosse a heterossexualidade – que ainda não se
sabe, mas virá a acontecer – poderíamos até contar uma história de amor.
(os pais riem)
PAIS
Ufa.
(um foco destaca dois garotos jovens, Luciano Ferreira e
Luciano Ferrado; o parto desaparece; a família posa para uma fotografia: a mãe,
o pai, os filhos, e o que mais tiver)
JESUS CRISTO
Ambos são garotos. (pausa) Por uma infeliz coincidência,
os pais dos garotos serão assassinados quando eles completarem seis anos. Eis o
início de um grande momento para a separação na formação do caráter psicológico
dos dois. Ambos lidam com o acontecimento de formas e sentimentos diferentes.
(pausa) Mãe solteira, a viúva toma as rédeas de uma boa educação, de família
considerada de bem. Cristã, trabalhadora, consumista, materialista, homofóbica,
interessada em política, o comum. (pausa) O mundo que vivemos é fictício.
Noventa e nove por cento dos crimes são resolvidos. As cadeias brasileiras,
como não é novidade, estão superlotadas. Os casos mais extremos são condenados
a pena de morte. Todo mundo que é roubado tem noventa e nove por cento de
chance de ver justiça contra o meliante. Todo mundo agora vive na segurança de
que se for assassinado, irão encontrar e prender o assassino e assim a justiça
é feita.
(dos dois lados, um bolo de aniversário com uma vela de
seis anos de idade surge; eles cantam parabéns aos dois garotos; dois bandidos
entram, fazem um pequeno terror na família e atiram nos respectivos pais; os
pais morrem no colo dos filhos; Luciano Ferreira e Luciano Ferrado choram sobre
o corpo; os familiares surgem com cartazes e gritam)
TODOS
Justiça!
Que país é esse?
GAROTA
É a porra do Brasil!
MÃES
A justiça de Jesus prevalecerá
Deus com sua mão
O marginal esmagará
TODOS
Ô, Dilma, assim não dá!
Pega no meu e vá pra puta que o pariu!
(a polícia entra com os assassinos e injeta o soro que os
leva para a eternidade; o povo ovaciona; as mães se comovem singelamente;
Luciano Ferreira engole em seco; Luciano Ferrado ri; a cena desaparece)
JESUS CRISTO
Por coincidência, ambos também tiveram uma tia que
apanhava dos maridos alcóolatras.
(dois focos mostram a briga violenta de marido e mulher)
JESUS CRISTO
E ambos lidaram com aquela situação de diferentes formas
também.
TIOS
Você não me ama mais? Eu perguntei se você não me ama
mais?
TIAS
Eu te amo! Eu te amo! Agora para de me bater! Me larga!
Para de me bater!
(Luciano Ferrado vai até o seu tio e o espanca)
LUCIANO FERRADO
Covarde filho da puta! Deixa ela em paz!
Covarde filho da puta! Deixa ela em paz!
(Luciano Ferreira telefona para a polícia)
LUCIANO FERREIRA
Pelo amor de deus! Alguém tem que fazer alguma coisa! Onde estão as autoridades nesse momento que precisamos? Que país é esse?
Pelo amor de deus! Alguém tem que fazer alguma coisa! Onde estão as autoridades nesse momento que precisamos? Que país é esse?
(a polícia entra; de um lado, impede que o tio continue a
violência contra a tia; do outro, impede que Luciano Ferrado bata ainda mais no
tio)
LUCIANO FERREIRA
Finalmente!
Finalmente!
LUCIANO FERRADO
Deixa comigo, caralho! Me solta!
LUCIANO FERREIRA
Pode dar uns tapas que ele tá precisando faz tempo, viu,
senhor.
LUCIANO FERRADO
Eu só quero arrancar uma orelha do desgraçado! Me larga,
caralho!
LUCIANO FERREIRA
Faz ele falar fino.
LUCIANO FERRADO
Só mais um murro!
LUCIANO FERREIRA
Violência doméstica não tem pena de morte? Que coisa
chata.
LUCIANO FERRADO
Só mais um! Por favor! Só mais um!
JESUS CRISTO
Ambos violentos; de formas diferentes.
(a polícia vai saindo com os tios)
LUCIANO FERREIRA
Espero que te estuprem na cadeia, tio!
Espero que te estuprem na cadeia, tio!
LUCIANO FERRADO
Se eu tiver de novo eu vou enfiar um pau no seu cu, seu
merda!
(a cena desaparece)
JESUS CRISTO
Ambos também tiveram primas biscates.
(um foco destaca primas gostosas)
JESUS CRISTO
E sofreram diferentemente desse primeiro amor. Importante
acontecimento na vida de todos: a dor do coração.
LUCIANOS
Eu gosto de você
PRIMAS
Eu também gosto de você. Mas somos primos. Isso tudo era
só uma brincadeira. Pra te iniciar.
LUCIANOS
Não. Eu gosto muito de você.
PRIMAS
Eu disse não.
(as primas vão sair; Luciano Ferreira a convida para um
último abraço como amantes; Luciano Ferrado agarra a sua a força; a luz cai
enquanto Ferreira beija sua prima romanticamente e Ferrado agarra a prima a
força num quase estupro)
JESUS CRISTO
Ambos quase foram abusados pelo treinador do clube, outro
pior trauma para um adolescente.
(um foco destaca dois treinadores fortões; os Lucianos
estão ajoelhados em frente)
TREINADORES
Posso conseguir que entre no time juvenil do Palmeiras.
(Luciano Ferrado continua ajoelhado e se prepara para
chupar o treinador; Luciano Ferreira tenta escapar, mas o molestador o segura
aos berros; Luciano Ferrado arranca o pinto do seu treinador com a boca; Luciano
Ferreira chora e esperneia tentando fugir dos braços do treinador; a polícia
entra e rende os dois pedófilos; os Lucianos são amparados pela mãe e por
médicos surrealistas; enquanto Jesus narra, os médicos examinam os garotos das
formas mais estranhas e escrotas possíveis)
JESUS CRISTO
O que fez duas crianças com a mesma criação, com os
mesmos traumas e com o mesmo grau de energia estelar no cérebro formar caráter
e definições de certo e errado diferentes com o tempo? Eu pergunto. O que fez?
MÉDICOS
ABSTEN-S, AKINETON, ANAFRANIL, ANDROCUR, ANDROXON, APRAZ,
ARIMIDEX, AROPAX, ARTANE, ASTRAMORPH, AURORIX, BENFLOGIN, BENTYL, BIOVIR,
BROMAZEPAM, BUSPAR, CEBRILIN, CIPRAMIL, CLOMID, CLONAZEPAM, CLOPIXOL, CRIXIVAN,
DAFORIN, DALMADORM, DECA-DURABOLIN, DEPAKOTE, DEPOSTERON, DESOBESI-M, DIAZEPAM,
DILENA, DOLANTINA, DORMONID, DURATESTON, EFEXOR-XR, ELUM, EPIVIR, HYPNOMIDATE,
LAMICTAL, LANEXAT, LEPONEX, LUDIOMIL, LUVOX, MELLERIL, NEURONTIN, PAMELOR,
PRECEDEX, REMERON, REVIA,
RISPERDAL, RIVOTRIL, ROACUTAN, SERZONE, SOCIAN, STILNOX,
SUFENTA, SULPAN, TEGRETOL, TOLVON, TRYPTANOL, URBANIL, ZYBAN, ZYPREXA.
JESUS CRISTO
CRACK, COCAÍNA, HEROÍNA, ÁLCOOL, TABACO, DIPIRONA, ALIMENTOS TRANSGÊNICOS E INDUSTRIALIZADOS. MACONHA.
CRACK, COCAÍNA, HEROÍNA, ÁLCOOL, TABACO, DIPIRONA, ALIMENTOS TRANSGÊNICOS E INDUSTRIALIZADOS. MACONHA.
(os médicos desaparecem; um foco destaca os dois jovens
na penumbra; ambos acendem um cigarrinho de maconha)
JESUS CRISTO
Ambos fumaram o primeiro baseado aos dezesseis anos.
Tarde, pela média da classe em que nasceram. (pausa) No fim, um dos Lucianos, o
nome dos garotos, teve mais sorte que o outro. Em algum ponto da vida o cérebro
de um tomou um caminho diferente do outro. Talvez uma dose a menos ou a mais de
alguns dos agrotóxicos. Não que um tenha se tornado melhor que o outro, nada
disso. Um deles apenas teve mais sorte. E nunca saberemos o porquê.
(o foco de Luciano Ferreira se apaga; Luciano Ferrado
muda a maconha para uma latinha com crack)
JESUS CRISTO
O outro entrou pelo PROUNI na faculdade. Arrumou uma
esposa cristã e materialista e entrou para o serviço público. Esse entrou na
merda.
(um foco destaca Luciano Ferreira e sua esposa)
JESUS CRISTO
Essa nova era, que o bem sucedido e colegiado Luciano tanto
defendeu na sua juventude, não foi fácil de conseguir. Muitos ativistas
defensores dos tais direitos humanos foram contra essa repressão e rigidez
contra os marginais do submundo. Mas a força do gosto pela justiça olho por
olho foi mais forte e fez – não que se acabassem os bandidos e assassinos, pelo
contrário – fez multiplicar-se a violência, na proporção que se multiplicou a
penalidade.
(Luciano Ferrado agora é um marginal de rua; ele está
sentado em algum canto baforando cola)
JESUS CRISTO
Eu olho por você também, meu filho. Mas é tão estranho
isso tudo. Você teve tantas chances de ser outra pessoa.
LUCIANO FERRADO
Não preciso da sua misericórdia. Se tiver um real ajuda
mais.
JESUS CRISTO
O que aconteceu com sua família? Onde está sua mãe? Porque
decidiu vir morar aqui?
LUCIANO FERRADO
Por que diabos decidiu usar esse corte de cabelo e essa
barba? A minha pergunta tem a mesma equivalência de valores que a sua pergunta.
JESUS CRISTO
Você é sempre assim?
LUCIANO FERRADO
Assim como?
JESUS CRISTO
Na defensiva. Eu tô tentando ser legal com você.
LUCIANO FERRADO
E tá querendo o que? As pessoas só são legais com as
outras quando precisam de alguma coisa.
JESUS CRISTO
Eu sei que você teve suas aflições, mas isso não
justifica...
LUCIANO FERRADO
(ri) Não, não. Você não sabe, não. Só eu sei.
JESUS CRISTO
Sei sim. Eu sou Jesus, meu querido.
LUCIANO FERRADO
Prazer, Jesus. Me chamo Madona.
JESUS CRISTO
Eu tô falando sério. Eu sou Jesus. Aquele que
crucificaram.
LUCIANO FERRADO
O que foi que você fumou, companheiro? Se tiver
procurando um canto, o lado direito daquela banca de jornal tá livre. Cobro
vinte reais pela segurança.
JESUS CRISTO
Não. Não é isso. Eu tô em uma missão egoísta, sabe. Tô
tentando me livrar da culpa que enfiaram nas minhas costas. E pra isso preciso
descobrir por que diabos crianças com as mesmas oportunidades tomam rumos com
conceitos sobre a realidade a que vivem completamente diferentes. Eu preciso
descobrir primeiro como é que funciona a cabeça humana, pra depois poder julgar
algum ato, seja esse ato o mais horrendo e cruel da face da Terra. Você
entende? Entende como é complicado nossa missão na Terra? Quando eu disse que
devíamos amar o próximo, lá da primeira vez, eu não tinha muita noção. Acredito
que eu realmente tenha recebido pensamentos divinos, de um ser que chamamos
deus, que me expunha regras inteligentes, mas sem explica-las. Por isso sou tão
mal interpretado por aí. Esse é meu medo, que continuem falando merda como se
eu tivesse na liderança disso tudo. A
culpa é de todo mundo, não só minha. Entende? E a culpa da criação de monstros
– que já foram bebês, que já tiveram inocência – também é completamente nossa.
Por todos os discursos que espalhamos.
(silêncio)
LUCIANO FERRADO
Vai me dar um real ou nem?
JESUS CRISTO
Nem. Eu não tenho nada.
LUCIANO FERRADO
Com essa cara de burguês...
JESUS CRISTO
É a personificação da perfeição. Hollywood e católicos.
LUCIANO FERRADO
Anda sempre por aqui?
JESUS CRISTO
Ultimamente sim.
LUCIANO FERRADO
Prazer em conhece-lo, senhor Jesus Cristo.
JESUS CRISTO
(surpreso) O prazer foi meu, homem. O prazer foi todo
meu.
(o foco de Luciano se apaga)
JESUS CRISTO
Eu ainda acredito na gentileza e na bondade humana.
(Luciano Ferreira entra ao lado de sua esposa)
LUCIANO FERREIRA
Bandido bom, é bandido morto. Eu tive as mesmas oportunidades. Por que será que esse bando de vagabundos não podia conseguir arrumar um bom emprego e ser gente de bem como a gente é, trabalhadora e batalhadora? Por quê? E ainda a gente tem que pagar a porra do colchão que o filho da puta queima na cadeia.
Bandido bom, é bandido morto. Eu tive as mesmas oportunidades. Por que será que esse bando de vagabundos não podia conseguir arrumar um bom emprego e ser gente de bem como a gente é, trabalhadora e batalhadora? Por quê? E ainda a gente tem que pagar a porra do colchão que o filho da puta queima na cadeia.
ESPOSA
É um absurdo.
LUCIANO FERREIRA
Eu aposto que essa gente nunca sofreu na mão de bandido.
Meu pai foi morto na minha festa de aniversário. Graças a deus encontraram e
condenaram à pena de morte o assassino. Isso não trouxe meu pai de volta, mas
trás um conforto.
ESPOSA
É. Trás um conforto.
JESUS CRISTO
Desculpe me intrometer, mas te conforta como?
LUCIANO FERREIRA
(ri) O que é isso?
JESUS CRISTO
Eu tô voltando de uma festa a fantasia. Não ligue pra
isso. Eu quero saber como é que te conforta tudo isso?
LUCIANO FERREIRA
Bom, porque pelo menos eu sei que o filho da puta nunca mais vai matar ninguém.
Bom, porque pelo menos eu sei que o filho da puta nunca mais vai matar ninguém.
JESUS CRISTO
Mas é engraçado, primeiro você tem um pensamento egoísta,
pensando só em você porque a vítima é seu pai, claro. Mas depois você se
importa com a vida de gente que você nem conhece. Isso não faz muito sentido.
LUCIANO FERREIRA
Oras, se o filho da mãe teve a capacidade de tirar a vida de outra pessoa, ele não tem mais o direito de viver. Ou tem? Você acha que tem? Pra mim, roubou, arranca fora a mão. Estuprou, arranca fora o pinto. Você não acha?
Oras, se o filho da mãe teve a capacidade de tirar a vida de outra pessoa, ele não tem mais o direito de viver. Ou tem? Você acha que tem? Pra mim, roubou, arranca fora a mão. Estuprou, arranca fora o pinto. Você não acha?
JESUS CRISTO
Bom, quem sou eu pra julgar, né?
ESPOSA
É. Isso é trabalho só pra deus. Mas eu concordo.
JESUS CRISTO
Aí é que está. Então daí vocês o enviam direto pra Ele, é
isso? Pulam a seleção natural e se fazem justiceiros eloquentes? Nem eu faço coisas
desse tipo!
(silêncio)
LUCIANO FERREIRA
Ah, cara. Pare de falar merda. Aposto que nunca foi assaltado.
Ah, cara. Pare de falar merda. Aposto que nunca foi assaltado.
JESUS CRISTO
Já fizeram bem pior comigo. E eu levei no meu coração,
por consideração, até mesmo um bandido que morreu do meu lado.
LUCIANO FERREIRA
Ah, sim. Jesus. Legal a intenção. Mas na vida real não é bem toda essa belezura poética dos direitos humanos. Eu não costumo usar de violência, mas acho que tem que reprimir sim esses filhos da mãe. Eu sou a favor dos direitos humanos, mas pra quem é direito.
Ah, sim. Jesus. Legal a intenção. Mas na vida real não é bem toda essa belezura poética dos direitos humanos. Eu não costumo usar de violência, mas acho que tem que reprimir sim esses filhos da mãe. Eu sou a favor dos direitos humanos, mas pra quem é direito.
ESPOSA
É!
JESUS CRISTO
Direito em qual padrão? A partir de qual definição?
Direito em qual padrão? A partir de qual definição?
(silêncio)
LUCIANO FERREIRA
Não sei... é bem mais complicado na prática.
(o casal desaparece; Luciano Ferrado avança em cena
encapuzado)
LUCIANO FERRADO
E aí, colega!
JESUS CRISTO
(contente) E aí!
LUCIANO FERRADO
(saca um revólver) Me passa o celular, playboy.
JESUS CRISTO
Meu deus, menino! O que é isso?
LUCIANO FERRADO
Passa a porra do celular, Jesus!
JESUS CRISTO
Calma, calma!
LUCIANO FERRADO
Calma o caralho! O celular, porra! Eu não vou falar de
novo. Você tá de zoeira com a minha cara, é?
JESUS CRISTO
Eu não tenho! Eu não preciso de celular!
LUCIANO FERRADO
Vai, caralho. Tu aparece vestido assim pra impressionar
quem, porra? A carteira, Jesus. Porra, anda logo! Tu me encheu o saco aquela
hora, agora tem que me pagar.
JESUS CRISTO
Eu não tenho nada, meu filho. Eu sou quase um franciscano!
(Luciano Ferrado atira em Jesus)
LUCIANO FERRADO
Vai cagar, então, cacete. Vai brincar com a fé da sua vó,
otário! (e sai)
(Jesus cai; uma garota entra)
GAROTA
Meu deus! Mataram Jesus Cristo! Mataram Jesus Cristo!
Polícia!
JESUS CRISTO
Não precisa. Eu estou bem. Ninguém morre duas vezes. Só
preciso me recuperar e me adaptar com a bala dentro de mim.
(silêncio; Jesus se deita calmamente e meche o corpo
devagar, numa tosca metamorfose que não dá em nada; a garota fica curiosa;
Luciano Ferreira entra)
LUCIANO FERREIRA
Ahá! Tá vendo, companheiro? Tomou um tiro, não foi?
Ahá! Tá vendo, companheiro? Tomou um tiro, não foi?
GAROTA
Foi. Um marginal. Ele correu pra lá, moço. Vamos atrás dele!
Foi. Um marginal. Ele correu pra lá, moço. Vamos atrás dele!
LUCIANO FERREIRA
Conheço três pessoas que já tomaram um tiro. Viu, só?
Quer defender o delinquente agora, senhor Jesus Cristo?
JESUS CRISTO
Não, eu não tô com vontade de dar um abraço no filho da
mãe. Confesso. Mas dói menos que os pregos, sem dúvida.
LUCIANO FERREIRA
Desculpe a frieza. Quer que eu chame alguém? A polícia? Conseguiu ver quem foi?
Desculpe a frieza. Quer que eu chame alguém? A polícia? Conseguiu ver quem foi?
JESUS CRISTO
A gente ressuscita pra esses filhos da mãe nos fuder do
mesmo jeito, né. Que chato isso. Mas não liga pra polícia, não. Vão matar o
coitado. Ele é um coitado também, sabe. Teve as mesmas oportunidades que você,
de verdade. Mas alguma coisa aconteceu. Eu não sei dizer o que foi, mas espero
que ele tenha tempo de aprender. Assim como tenho esperança que você também
aprenda, sabe. Que seu discurso não combina. Que seu discurso só piora. Essa
era pode ser considerada uma das piores eras, sabe. O bandido vai preso, sai e
volta a ser bandido, aí ele vai preso, e volta a ser bandido. Crimes
resolvidos, mas as vítimas não perdem o trauma por isso. Tem alguma coisa
errada. Quando algum acontecimento vira ciclo é muito difícil de revertê-lo.
Com violência de ambas as partes, violência será o resultado final.
Eternamente. É isso que esperam?
(todos os atores entram dançando toscamente)
TODOS
Não, não, não!
A vida não foi feita pra matar
O sexo é tão bom
É a necessidade de procriar
JESUS CRISTO
Sim!
TODOS
O mundo penal agora é um pouco justo
Deixou trancafiado o menino de doze anos
Justo, justo!
Se sabe roubar, deve saber arcar com o ato
Não vale o desacato
JESUS CRISTO
Mas pobre coitado
Doze anos é uma criança
Se assim continuarmos
Pra onde vai a esperança?
(silêncio; todos pensam)
TODOS
Ao cu!
Ao cu!
(black-out; um foco destaca os dois Lucianos um de frente
pro outro)
LUCIANO FERREIRA
Cara, por favor. Eu tenho família.
LUCIANO FERRADO
Eu não vou te roubar. Tô te pedindo alguma moedinha.
LUCIANO FERREIRA
Vamo ali que eu te compro um salgado e um guaraná.
LUCIANO FERRADO
Não tô com fome. Quero uma moeda. Cinquenta centavos já
tá bom.
LUCIANO FERREIRA
Mas pra comprar o que? Se quiser eu compro alguma coisa
lá no mercadinho.
LUCIANO FERRADO
Eu não fico por aí perguntando como é que você vai gastar
o seu dinheiro.
LUCIANO FERREIRA
Exatamente. Eu não fico por aí pedindo dinheiro pros outros pra comprar sei lá o que.
Exatamente. Eu não fico por aí pedindo dinheiro pros outros pra comprar sei lá o que.
LUCIANO FERRADO
Caralho. Não quer dar? O que você faz com uma moeda de um
real, pô? Te faz falta?
LUCIANO FERREIRA
Não faz . Mas o dinheiro é meu. O que você quer fazer com uma moeda de um
real?
LUCIANO FERRADO
Porra, é pra tomar uma pinguinha, caramba. Vai dar ou
não? Olha, tô sendo sincero contigo. Eu podia dizer que precisava de leite e o
caralho a quatro. Mas tô afim de uma pinguinha, é isso.
LUCIANO FERREIRA
Então, não. Não vou te ajudar a se afundar. Se quisesse
um lanche eu até que podia dar um jeito.
LUCIANO FERRADO
Você vai me afundar se eu não alimentar a merda desse
vício. Entende como você só estará me fazendo o bem se me ajudar com meu
prazer?
LUCIANO FERREIRA
Eu disse não. Eu suei por esse um real.
Eu disse não. Eu suei por esse um real.
(silêncio; Luciano Ferrado saca uma arma)
LUCIANO FERRADO
Então agora eu quero o celular.
LUCIANO FERREIRA
Porra, cara. Pelo amor de deus. Calma aí. Eu tenho família. Eu te dou a porra da moeda, meu.
Porra, cara. Pelo amor de deus. Calma aí. Eu tenho família. Eu te dou a porra da moeda, meu.
LUCIANO FERRADO
Não. Agora eu tive que apelar e usar um pouco mais de
adrenalina. Quero o celular. Pelo trabalho que o senhor me deu.
LUCIANO FERREIRA
Eu nem terminei de pagar, cara. Deixa dessa vida. Você
vai ser capturado.
LUCIANO FERRADO
Eu já sou um fudido de natureza. Mas sobrevivi até hoje
crendo no um por cento que me favorece.
LUCIANO FERREIRA
Eu também sou um fudido, cara. Trabalho que nem um camelo
pra sustentar minha família. Todos temos aflições, mas tem uma porrada de
oportunidades pra você sair dessa vida.
LUCIANO FERRADO
Você não sabe o que é ter aflição, rapaz. Passa a porra
do celular.
LUCIANO FERREIRA
Meu pai foi morto na minha cara quando eu era pequeno.
Por uma arma parecida com essa.
LUCIANO FERRADO
Meu pai também foi morto quando eu era pequeno. No meu
aniversário. Essa era a arma. Eu roubei do filho da puta que fez isso com ele.
LUCIANO FERREIRA
Foi no meu aniversário também. Mas eu deixei o serviço
pra polícia.
LUCIANO FERRADO
Eu matei o filho da puta quando ele saiu da cadeia. A
primeira coisa que ele foi fazer quando saiu foi procurar a arma que escondeu.
LUCIANO FERREIRA
Hum.
LUCIANO FERRADO
E fugi dos noventa e nove por cento da justiça, que é uma
bosta.
(silêncio)
LUCIANO FERREIRA
Isso não justifica.
LUCIANO FERRADO
Nem sua aflição como vítima da vida. Eu também sou vítima
nessa porra. Passa essa merda de celular ou eu não vou pensar duas vezes pra
estourar os seus miolos. Vai!
(Luciano Ferreira entrega o celular pra ele)
LUCIANO FERREIRA
Você vai pra cadeia.
Você vai pra cadeia.
LUCIANO FERRADO
E você vai tomar no cu.
(Luciano Ferrado aponta a arma decidido a atirar)
LUCIANO FERREIRA
Eu já te dei o celular!
Eu já te dei o celular!
LUCIANO FERRADO
Eu já matei Jesus Cristo, colega. Eu sou do tipo cruel.
(o áudio e a iluminação indicam que a cena congelou;
Jesus entra calmamente, tira o revolver da mão de Luciano Ferrado e põe na mão
de Luciano Ferreira)
JESUS CRISTO
Bem, eu não estou realmente fazendo e autorizando isso.
Mas será isso que será espalhado. Um milagre de Jesus.
(Luciano Ferreira atira em Ferrado; Ferrado cai
dramaticamente e morre; rapidamente a polícia entra)
POLICIAL
Mão na cabeça! Larga a arma!
LUCIANO FERREIRA
Eu sou a vitima! Ele ia me roubar! Eu me aproveitei de um
momento de distração e tirei a arma da mão dele, senhor! Foi um milagre de
Jesus eu ter sobrevivido.
POLICIAL
Olho por olho?
LUCIANO FERREIRA
Foi necessário. Eu ia perder todos os meus contatos.
Talvez até a vida.
POLICIAL
Ok. Antes ele que nós.
(um bando de repórteres atravessa a cena falando alto;
Luciano Ferreira é colocado em um púlpito)
REPÓRTER
Senhor Luciano, o que você acha da medalha que você
ganhou como justiceiro do crime?
REPÓRTER
Eu gostaria de saber: qual é a sensação de tirar a vida
de alguém?
REPÓRTER
Você tem medo de que porque a penalidade está mais
rígida, o senhor tenha algum problema com a justiça?
LUCIANO FERRADO
Naquele momento eu me senti amparado por Jesus. Eu só
posso agradecer a deus por ter sobrevivido. Eu já tinha dado o meu celular e
ainda assim ele ia atirar. Eu fiz um favor para o planeta que perdeu um
marginal para a eternidade. Que Jesus agora o julgue.
REPÓRTER
Um vagabundo a menos na Terra!
(alguns aplaudem)
REPÓRTER A
Senhor Luciano, você achou engraçado a incrível
coincidência de aquele garoto ter nascido no mesmo dia e possuir o mesmo nome
que o senhor? Vocês tem o mesmo signo, não é isso? Você soube que a classe
social de vocês dois é incrivelmente idêntica? Um absurdo de sensacional! Vocês
estudaram na mesma escola, sabia disso? Você sabia que vocês dois tiveram quase
que os mesmos traumas? Eu custo a perguntar, mas é que a minha grande dúvida é
o que te fez formar um homem com um caráter de gente do bem e ele não? Vocês
tiveram as mesmas oportunidades, não é isso que dizem por aí? O que será que
aconteceu? Eu não pude conhecer o garoto morto, mas eu gostaria tanto de saber
os motivos e as causas. Isso é uma dúvida que me percorre desde que a lei
mudou.
LUCIANO FERRADO
Eu sempre quis trabalhar. Essa é a diferença.
REPÓRTER A
(ri) Certo. Eu entendo. Mas alguma coisa fez a cabeça
daquele garoto não crescer com esse instinto orgulhoso ao trabalho. É cagada de
quem?
LUCIANO FERRADO
Talvez da mãe que não deu porrada o suficiente.
(a mãe entra chorando)
MÃE
Eu bati! Eu espanquei aquele menino como todo mundo
espanca os filhos! E não literalmente, eu digo. Eu o espanquei com bons
ensinamentos, fiz tudo o que pude fazer. Não coloquem a culpa em mim. Minha dor
já é enorme.
REPÓRTER
Talvez não tenha sido falta de surra. Boa parte tenha
sido até culpa dessa surra, talvez.
LUCIANO FERREIRA
Você lembra muito a minha mãe. Eu sinto muito pelo seu filho. Mas eu só quis me defender. Seu filho fez as escolhas que fez e teve que pagar com a vida.
Você lembra muito a minha mãe. Eu sinto muito pelo seu filho. Mas eu só quis me defender. Seu filho fez as escolhas que fez e teve que pagar com a vida.
(a Mãe, curiosa, quase que concorda com Luciano; ela
tenta argumentar mais uma vez, mas desiste; ela se dirige vagarosamente para a
saída)
REPÓRTER
Pobre mulher.
MÃE
Só quem é mãe pra saber o tamanho da dor. (sai)
LUCIANO FERREIRA
Só quem já esteve na mira de um revolver, sabe qual era o
meu medo. Eu também tenho mãe e família.
REPÓRTER A
Quem decide quem merece?
(silêncio; homens disfarçados de repórteres se
transformam em polícia)
POLÍCIA
Não viemos censurar
O trabalho é incentivar
Nunca questione a nossa lei
Direito humano, nós já até aceitamos os gays
Pensamentos de cristão
Deixe pra dentro da igreja, irmão
Viemos para bloquear
Um pensamento que pode atrapalhar
REPÓRTER A
É censura! É censura! Eu tenho a liberdade de questionar!
Eu nem sou cristão! Só tenho tido mais compaixão àqueles
do submundo!
POLÍCIA
Tá com dó? Adote um deles.
(a Polícia retira Repórter A aos berros)
LUCIANO FERREIRA
Caralho, tudo isso por causa da morte daquele marginal?
Caralho, tudo isso por causa da morte daquele marginal?
Eu estava em perigo
Chega dessa festa!
Vamos voltar à vida normal.
(um foco destaca uma mesa de jantar onde a família Ferreira
janta em silêncio; ele se junta aos seus sem dizer nada; a cena demonstra a
vida cotidiana em monotonia por longos segundos; ouve-se a penas os talheres e
movimentações leves dos corpos; a luz cai aos poucos num quase silêncio mortal)
(black-out)
FIM DO PRIMEIRO ATO
ATO II: O PREFERIDO DOS PREFERIDOS
PERSONAGENS
JORGINA (GAROTA)
MANIFESTANTES
MÃE e FAMÍLIA (MARIDO E FILHO)
BANDIDO (e FILHO)
REPÓRTER A
MANIFESTANTES COLORIDOS (AMARELOS, VERMELHOS, AZUIS,
PRETOS, VERDES)
LUCIANO FERREIRA
GAROTO
POLÍCIA
(um foco destaca Jorgina sozinha; ela é uma militante
jovem)
JORGINA
Eu faço parte da nova classe média. Mamãe abriu uma
miniempresa e fez nossa vida mudar de nível. Estudei o colegial em escola
pública, mas só pra ter o direito de pegar o PROUNI, minha mãe tinha condição.
Nessa minha nova e curta vida, consegui me atualizar com as coisas que vale a
pena discutir e dei minha cara à tapa por isso. Literalmente larguei todas as
coisas de adolescentes para lutar por um ideal. Uma bosta tudo isso. (pausa)
Perdi meu pai quando eu era criança ainda. Numa blitz policial, um PM confundiu
meu pai com um bandido e sapecou ele com quatro tiros. Isso foi o que ele
disse. Cresci lutando contra as falcatruas e injustiças dessa vida iniciada por
um trauma desse tamanho. (pausa) Falo dois idiomas além do português, acabei de
me formar na faculdade em Ciências Sociais e escrevo minhas paranoias em um
blog. Muita gente diz por aí que eu sou precoce pra minha idade e que eu tenho
futuro. Mas muita gente também critica a minha inocência e infantilidade na
crença da esperança e por discursos (faz aspas) “sem fundamento”. Vejam bem, eu
sei que tenho muito que aprender. Outro dia vi um cara que tinha acabado de
sair de uma festa fantasia tomar um tiro na minha frente. Graças a deus o cara
sobreviveu. Fui em todas as manifestações de junho e cantei o hino nacional
também. Eu sei que posso parecer um tanto idiota por falta de experiências
extraordinárias, mas cada um luta do jeito e pelo motivo que acha direito.
(o coro entra em uma manifestação violenta)
TODOS
(ao clássico ritmo)
Eu sou brasileiro
E o orgulho
De cu é rola
JORGINA
Eu fumo maconha
Recém-formada
Sem credibilidade
(silêncio; o coro endeusa Jorgina por alguns segundos)
JORGINA
Eu não acho que estamos pensando certo, cabeça.
TODOS
Todas as crianças tem o direito de pensar do jeito que
achar melhor
Mas a esperança por inteiro vai afundar
Se continuarmos com o discurso de violência e terror
Eu não sei se a lei está aqui pra ajudar
Algumas coisas são legais
Mas em outras a liberdade vai pro ralo do banheiro
Sei que cada um tem que ter uma opinião
Mas tem casos que não sei não
Se a sua opinião pode – e vai – atrapalhar
Eu tenho que ter o direito de poder te avisar da cagada
de um irmão
Não, eu não quero e não preciso ser amigo
De alguém que quer ver morto o bandido
Sei que ele fez o mal, fez família inteira morrer
Mas vai saber o que ele pensava e o que fez ele chegar ao
ponto de querer matar alguém
Não, eu não quero e não preciso ser amigo
Mas também não quero inimigos
Não espero um mundo colorido
Um mundo mais claro já seria suficientemente bem
JORGINA
Obrigada, pensamentos negativos
Que me lembram que os positivos são melhores.
TODOS
A nossa juventude mais uma vez
Mudou o nosso destino, fez o que fez
Nós abrimos os olhos para uma nova discussão
Mudaremos a lei de novo espalhando a compaixão
JORGINA
E o que acontecerá? Finalmente teremos paz? Quanto tempo
vai demorar? Por que tem ainda gente que morre sem saber por quê?
(o coro desaparece; o foco de Jorgina sozinha retorna)
JORGINA
Estamos em um mundo fictício. O Brasil estava quase sem
lei e as pessoas começaram a fazer justiça com as próprias mãos. Depois, uma
bancada bastante conhecida do planalto conseguiu fazer diminuir a maioridade
penal pra catorze anos, aprovar a pena de morte, incentivar militares
violentos, criar penalidades mais rígidas para todos os casos. Uma coisa veio
de bom: muitos governantes presos. Muito marginal preso. Bandidos, pedófilos,
assassinos; presos. Todos. Bebia e dirigia, prisão. Brigas domésticas, prisão.
Todo mundo que fazia qualquer coisa contra a lei era preso. Apenas um por cento
dos casos não eram resolvidos, o resto era sucesso para a justiça do homem.
Resultado: cadeias assustadoramente – se é possível pensar pior – super
lotadas. Mas as mortes continuaram. E também a justiça dente por dente que era
uma das únicas desculpas para se safar da condenação. E famílias eram
despedaçadas por traumas, do mesmo jeito como acontecia antes. A diferença era
que a família se via vingada noventa e nove por cento das vezes. E eis que o
ciclo da violência parecia não ter saída.
(em um foco, a narração de Jorgina aparece encenada; tudo
muito rápido)
JORGINA
O cara era assaltado e matava o bandido que roubou vinte
reais – vinte reais que ele gastava com um guaraná. Depois o filho do bandido
vinha e matava ele, por vingança. E na ação da vingança, sem querer o filho do
bandido atirava – em alguns dos casos – no filho de quatro anos do casal
também. Uma tragédia. Aí a esposa do cara, na paranoia da situação, matava o vingador
na defensiva e no susto. E então a comunidade onde a família do bandido morava
começava a fazer ameaças à burguesia. E a burguesia não era mais fina e
delicada, o armamento passou a ser comum nas classes altas e cristãs. Aí a
mulher virou uma justiceira militante contra os marginais e teve até um
programa de TV que ensinava as mulheres a se defenderem do ataque dos machos. Dizem
por aí que ela matou trinta e três ladrões, vinte e um assassinos, treze
pedófilos, vinte e oito estupradores e quatro que ninguém sabe ao certo qual
foi o embasamento da justiça dela. Contando no total exato: noventa e nove
vinganças justas. Dizem que existe nessa história um centésimo meliante que ela
tentava matar incansavelmente, mas que foi morto antes por um outro cara.
(a mãe está completamente ensanguentada e exausta; uma
outra mulher entra e a encara; eles se comunicam apenas com olhares; aos
poucos, de mulher vingadora, a mãe desaba em lágrimas)
JORGINA
Felizmente, finalmente, aos poucos, ela começou a
perceber que não tinha onde buscar justiça e conforto quando todos já estavam
mortos. Ela tinha ficado feia com o tempo. Literalmente feia. Com a testa
sempre cerrada. Ela percebeu que não tinha mais ninguém pra socorrer que
confortasse a saudade do filho e do marido. Ela percebeu que ninguém mais era
vítima. Não existia mais opressor e oprimido. Todo mundo tava na fossa, por
igual. Um bando de injustiçados buscando por justiça, cada um olhando pro seu
exclusivo e único cu.
(silêncio; os mortos e outros personagens desaparecem;
apenas a mãe, cansada, continua)
MÃE
Eu tive que tomar bastante no cu mesmo pra ser o que sou
hoje. Perdoem-me. Eu estava errada. Minha mãe concordou com aquela repórter
imbecil do SBT, meu pai batia na minha mãe, eu não podia ir pra outro caminho
sozinha. Só agora eu consegui perceber o quanto estamos atirando na nossa
própria cara quando a gente espalha que a violência é aceitável quando é por
algo justo.
JORGINA
Eu era a favor da pena de morte.
MÃE
Algo justo em qual padrão? O que diabos é justo? É justo alguns
terem dinheiro pra levar um caralho de filhos pra Disney uma vez por ano e
outros ter que ter dois empregos pra ganhar novecentos reais só pra alimentar o
caralho de filhos? É justo eu ter dinheiro pra comprar um celular e jogar na
cara da porra da sociedade que todos devem ter ao menos um celular, angustiando
aqueles que talvez nunca tenham a oportunidade de conseguir um se não pegar de
alguém. Não, caralho! As oportunidades não são iguais! Elas são, mas não são! Agora
eu vejo, meu deus. Parece tão claro. (pausa) Sim, eu sinto raiva do cara que
matou o meu marido e meu bebê. Não tenho como não sentir. Mas eu preferiria não
ter tido todo esse sangue na minha mão também. Agora eu preferiria. Eu me
vinguei de noventa nove filhos da puta de cem que eu achava que merecia. O
centésimo mataram antes. (pausa) Quando eu fiquei frente a frente com a mãe de
um deles, eu... (pausa) O que é justo? Quem decidiu que gente de bem é a minha
gente e não a gente deles que – às vezes – é dezoito – trinta – setenta vezes
mais injustiçada? Num filme inteligente, nós burgueses que nos achamos
trabalhadores e gente de bem, seríamos os grandes vilões, sem dúvida nenhuma. É
culpa da repórter do SBT e da minha mãe que meu filho e meu marido foram
mortos. E culpa dos antecessores. Avós, tataravós. É culpa minha também porque
com certeza absoluta alguém vai se espelhar nas coisas que eu fiz, achando que
estava fazendo justiça, e vai fazer uma porrada das merdas também.
JORGINA
E muita gente se espelha muitas vezes sem querer, sabe. (descobre)
A culpa é de todos. Sim, você tem razão. É culpa minha também. É culpa de todo
mundo que incentivou o filho a dar um cacete no coleguinha chato da escola. É
culpa também de quem deu um cacete no filho quando ele chegou bêbado pela
primeira vez em casa. Que deu um tapinha na mão do filho pra ele aprender que
não devia colocar o dedo na tomada de novo. Que espalhou por seus ciclos de
amizade que Corintiano não presta, que bateria em alguém se ele mexesse com sua
mulher, que dizia – com as mesmas babas e inocência de qualquer um – que
“bandido bom é bandido morto”, que xingava no trânsito, etc, etc, etc. É culpa
de todo mundo que já teve um acesso de raiva e alimentou essa bosta de
sentimento.
MÃE
Quem nunca? Pois bem. A culpa é de todos.
JORGINA
Acredito que no meio desses todos deve ter tido gente do
bem.
MÃE
Você diz quem? Eu não acredito na bondade e na gentileza
do homem. Todo mundo é legal, quando existe interesse. Viu só no que uma mãe de
família foi se tornar quando há outro tipo de foco?
JORGINA
Viu aquele repórter que foi preso e costurou a própria
boca como protesto?
(o Repórter A surge amarrado com a boca costurada)
MÃE
Vi. O que tem?
JORGINA
Esse tipo de gente nunca parou de aparecer.
MÃE
Eu me irritava tanto com esses ativistas.
(alguns outros personagens aparecem protestando de formas
inusitadas e variadas)
MÃE
Tanto exagero. Ninguém nunca deu credibilidade a esse
tipo de manifestação.
JORGINA
Credibilidade é uma coisa foda de se conseguir quando se é jovem.
Credibilidade é uma coisa foda de se conseguir quando se é jovem.
MÃE
Veja bem, estou recém convertida nesse pensamento. Fui
violenta? Fui. Me igualei aos marginais? Me igualei. Pode meter bronca. Se
agora eu entro de cabeça nessa ideia de paz e amor ninguém vai dar
credibilidade pra essa vingadora sanguinária arrependida.
JORGINA
Quero dizer que podíamos tentar começar um movimento, entende?
Quero dizer que podíamos tentar começar um movimento, entende?
MÃE
A corrente do bem?
JORGINA
Eu tô falando sério.
MÃE
Eu não tenho mais programa de TV, minha filha. Ninguém nunca
vai ficar sabendo dessa nova e antiga campanha hippie. Agora vou viver no
anonimato porque tenho vergonha e sou orgulhosa pra me contradizer em público.
JORGINA
Eu lidero. Preciso de alguém com experiência braçal.
Porque inserir uma ideia na cabeça das pessoas precisa de algum tipo de
violência, de algum trauma. Como se faz um trauma bom? Temos que disseminar a
paz violentamente!
MÃE
(gargalha) Menina, que mundo você vive? Junte um bando de
seres humanos pra formar uma imensa bagunça. Não existe querer mudar alguma
coisa sem baderna.
(os manifestantes coloridos – amarelo, vermelho e azul –
entram e se encaram)
AMARELO
Eu acho que devia ser desse jeito.
VERMELHO
Eu acho que é do outro jeito, cara.
AZUL
É, ele tem razão. Eu também acho que é do outro jeito.
AMARELO
Mas desse jeito é melhor, gente. Tem muito mais a ver.
AZUL
Não, acho que não.
VERMELHO
É. Eu também acho que não. Vai dar merda.
É. Eu também acho que não. Vai dar merda.
(o manifestante amarelo dá um murro no vermelho)
VERMELHO
Filho da puta!
(o manifestante azul entra em defesa do vermelho e o
ajuda a espancar o amarelo com chutes e pontapés)
VERMELHO
Aquele jeito não vai dar em nada, cara!
AMARELO
Eu acho que vai dar sim!
AZUL
Não vai!
(outro manifestante amarelo entra)
AMARELO 2
Ei! Eu também acho que devia ser feito daquele jeito que
ele disse.
(a briga se divide por igual)
AMARELOS
Aquele jeito é muito melhor!
AZUL E VERMELHO
Eu disse que não!
(entra outro vermelho)
VERMELHO
Ele tem razão! Como é que não conseguem ver? O outro
jeito é noventa e nove por cento melhor. (se envolve na briga)
(entra um manifestante preto)
PRETO
Eu também concordo com eles, eu acho que tem que ser...
(pensa) do jeito que tiver que ser. (se envolve na briga sem saber qual lado
defende)
(entra outro azul)
AZUL 2
Não! Vocês estão loucos! Esse jeito vai dar merda!
(e um verde)
VERDE
Eu adoro uma treta!
(vários manifestantes coloridos entram na briga; acontece
uma grande pancadaria; o foco e a gritaria vão desaparecendo aos poucos)
MÃE
Como percebemos, o ser humano é um bicho violento por
natureza.
JORGINA
Lá em dois mil e treze a galera saiu cobrando mesmo, eu
sei. Um pouco sem rumo. Teve dias que parecia um rolê no shopping, com a galera
se divertindo. E teve os dias de mais tensão, também. Os baderneiros. Sei lá
qual faz mais a diferença na luta, viu. Quem tem mais importância.
MÃE
Não foi só aí que o povo teve que ser violento pra
conseguir alguma coisa. Olhe a nossa história.
JORGINA
Sim, nunca houve revolução sem guerra.
MÃE
No fim das contas, aquilo que o povo estava pedindo foi
ouvido, não foi? Não melhorou a segurança? A campanha funcionou como previsto,
não é? Bandido bom é bandido morto, finalmente realizado.
JORGINA
Dobrou-se a polícia militar em dezoito. O maior
investimento. Funcionou? A molecada de catorze anos tá lá na cadeia junto com
os coroas. Setenta e duas pessoas são condenadas todos os dias à morte, desde
que a pena foi aprovada – era de se esperar num país como o Brasil. As
manifestações continuam violentas e vão continuar, a diferença é que manifestante
encapuzado já é condenado à decepar o nariz. Justiceiros como a senhora
surgiram aos montes. A lei nova não deu efeito significante para nossa
evolução. Todo mundo sabe que se for assaltado, tem noventa e nove por cento de
chance de ter vingança e de até recuperar os materiais e se matar o meliante
tem lei que protege o dente por dente; mas também todo mundo ainda tem certeza
de que vai ser assaltado pelo menos uma vez por ano, mesmo sabendo que vai
haver vingança. Não foi uma campanha contra a violência. Foi uma campanha para
ela. Pra sublinhar a existência dela e alimentar o povo com o próprio povo
sendo jogado aos leões. Porque melhorar a penalidade não fez diferença alguma.
As pessoas nascem nas mesmas condições, com o mesmo sistema educacional, as
mesmas religiões ignorantes, fazendo assim, o marginal – e também o burguês –
criar os mesmos conceitos de realidade. De que todo mundo é vítima e que eu
também sou um injustiçado, seja qual for o meu parâmetro.
(silêncio)
MÃE
Quantos anos você tem?
JORGINA
Eu sei. Pode rir.
MÃE
Não vou rir. Achei incrivelmente interessante o que você
disse.
JORGINA
Jura?
MÃE
Juro. Eu não queria ficar parada. Mas se eu for tentar
fazer justiça nos parâmetros que penso agora, eu teria que me matar. Como eu
pude ser tão estúpida? O que eu faço?
JORGINA
Agora já passou. Já é ótimo você ter se arrependido.
Talvez seja assim que alguém que já matou alguém se sentia quando se arrependia
na cadeia antigamente. Pena que agora a pena é mortal. Nós temos que fazer
alguma coisa por essa porra do Brasil.
(as duas se abraçam como um final feliz; um grupo de
manifestantes, com as duas em liderança, faz um protesto branco; com flores e
frases de amor e compaixão)
LUCIANO FERREIRA
Isso está me parecendo tão anos oitenta.
JORGINA
Isso se parece com sempre, meu querido!
LUCIANO FERREIRA
Você luta por revolução
Te aviso, irmão
O mundo quer te superar
Você diz que é a evolução
Já sabe, irmão
O mundo todo quer mudar
E se pensar em violência,
Nem tente me convidar
TODOS
Não!
LUCIANO FERREIRA
O que espero pro fim?
A paz
O que espero pro fim?
A paz
O que espero pro fim?
A paz
Você diz que tem a solução
Eu vejo, irmão
A teoria é legal
A minha ajuda é migalha de pão
Já te aviso, irmão
Ninguém é todo especial
JORGINA
E se raiva por alguém enfim sentir
Tudo bem, só não sublinhe o mal
TODOS
Sabe o que vai dar no fim?
A paz
Sabe o que vai dar no fim?
A paz
Sabe o que vai dar no fim?
A paz
MÃE
Vai tentar mudar a constituição?
Não é fácil, irmão
Mas estou aqui pra te apoiar
GAROTO
Quem é o líder dessa porra?
Não sou um espião
Eu quero aqui participar
TODOS
Sim!
GAROTO
Mas se tiver alguém com a camisa do Che
Isso não serve, não vai convencer
TODOS
E o que vai dar no fim?
A paz
E o que vai dar no fim?
A paz
E o que vai dar no fim?
A paz
Ah, a paz, a paz, a paz
(a manifestação termina num gozo de alegria; a polícia
invade o palco e os espalha no terror; Jorgina se põe frente à frente com um
policial)
JORGINA
Meu nome é Jorgina Andrade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos
Avisa que todo mundo tem direito a liberdade
À vida e à segurança pessoal
Isso tudo poderia ser legal
Se refere as crianças
A mim e a você
Que envolve o marginal que está na rua pra comer
A culpa sua? A culpa é minha?
Somos todos frutos do que é pra acontecer
Dessa nova era só depois dá pra entender
Não incite guerra, isso pode piorar
Regredir não é o melhor caminho
Vamos tentar nos socorrer
E isso não se faz sozinho
Precisa de carinho
E não só com quem você conhece
Só com quem quis conhecer
(ela abraça o policial que devolve com um soco no
estômago; todos desaparecem; Jorgina, caída no chão, fica sozinha em um foco
pequeno)
JORGINA
Caralho, que dor. Acho que vai ser um pouco difícil.
(Luciano Ferreira entra)
LUCIANO FERREIRA
É foda apanhar da polícia, né? Dá uma raiva. Apanhar de
bandido é até aceitável, mas apanhar dos caras que supostamente deviam nos
defender é osso.
JORGINA
É osso.
LUCIANO FERREIRA
Eu li o seu blog. Passei por umas coisas estranhas na vida até descobrir que ela é monótona se você não tiver um propósito.
Eu li o seu blog. Passei por umas coisas estranhas na vida até descobrir que ela é monótona se você não tiver um propósito.
JORGINA
Legal.
LUCIANO FERREIRA
Gostei do seu discurso. Mas ainda penso bastante egoisticamente.
Gostei do seu discurso. Mas ainda penso bastante egoisticamente.
JORGINA
E quem não?
LUCIANO FERREIRA
Tudo bem, eu sei que o outro Luciano poderia se
arrepender depois e tudo o mais. Mas se eu não tivesse feito o que eu fiz, eu
não estaria aqui. Eu teria morrido no lugar dele e a história teria sido outra.
JORGINA
Se a história é essa, não tem porque pensar na outra
possibilidade. Não adianta chorar no leite derramado.
LUCIANO FERREIRA
Eu sei. Quero dizer que eu fiz o que fiz e que de repente acordei pra essa maluquice de não querer mais pensar em vingança. Mas se acontecesse de novo, eu sei que eu faria de novo, sabe. Poxa, eu não quero morrer, também, não é? É tão complicado.
Eu sei. Quero dizer que eu fiz o que fiz e que de repente acordei pra essa maluquice de não querer mais pensar em vingança. Mas se acontecesse de novo, eu sei que eu faria de novo, sabe. Poxa, eu não quero morrer, também, não é? É tão complicado.
JORGINA
Eu gostaria que a coisa funcionasse como na teoria. Eu
sei bem como é complicado.
LUCIANO FERREIRA
Aí é que está. Qual das teorias, né?
Aí é que está. Qual das teorias, né?
JORGINA
Pois é.
LUCIANO FERREIRA
Quer uma ajuda? Você tá bem? Quer que eu chame uma ambulância?
Quer uma ajuda? Você tá bem? Quer que eu chame uma ambulância?
JORGINA
Não, não. Eu vou me recuperar. Só tá doendo pra caralho.
LUCIANO FERREIRA
Sabe o que eu fiquei pensando outro dia? Que talvez eu
tenha passado por tudo isso por um propósito maior, sabe? Que na história dessa
era existiu um Luciano Ferreira, eu, que sobreviveu a uma tentativa de
latrocínio e que, agora que aprendeu algumas coisas com essa lição, tem que
fazer alguma coisa no nome da evolução, entende? Você me entende?
JORGINA
(surpresa) Entendo. Eu entendo pra caramba.
(surpresa) Entendo. Eu entendo pra caramba.
LUCIANO FERREIRA
Pra morte de todas essas pessoas não terem sido em vão, entende o que eu quero dizer?
Pra morte de todas essas pessoas não terem sido em vão, entende o que eu quero dizer?
(silêncio; Jorgina se levanta agraciada)
JORGINA
Você é o anjo que eu preciso, Luciano.
LUCIANO FERREIRA
Oras, você tem tantos seguidores, Jorgina.
Oras, você tem tantos seguidores, Jorgina.
JORGINA
Mas você agora é o preferido dos preferidos.
(black-out; Jesus Cristo entra em um foco)
JESUS CRISTO
Não acho feio que o bandido vire crente na cadeia. Pode
até ser bonito. Arrependimento é difícil de ser sincero e de se aceitar, mas é
uma coisa bonita de se ouvir. (pausa) Só espero não ter que preferir bandidos à
crentes um dia.
(o coro entra e faz movimentos idênticos e coreografados)
TODOS
Nesse mundo fictício
Existe um lado mais bonito
Jorgina a militante conseguiu mudar a lei
De um mundo onde a penalidade era o foco
E o bandido não deixava de existir
Chegamos ao final com a importância
Na educação e pronto atendimento para as crianças
Tire uma foto
Esse mundo ainda não existe
Começou somente agora
Vai demorar pra ter efeito
Ainda somos maluquice
Lutamos todos por direitos egoístas
E que é de respeito só a mim
JESUS CRISO
Mas já foi um grande passo
O que eu fiz não chega perto
Jorgina abriu os olhos para o amor mais do que eu
Espalhou a informação e a compaixão, que está em anexo
E só porque ela era bonitinha, garotinha
Menininha, de sainha, classe média e inteligente
Isso é muito bom vencemos também na guerra dos sexos
Na guerra do homem
Na guerra da gente
MÃE
E o dente por dente
Virou coisa de delinquente
Todo mundo tinha medo e vergonha de se igualar ao
marginal
JORGINA
E o marginal começou a ganhar uma cara individual
Não existia mais padrão
Não era só negro na prisão
Conseguimos abrir os olhos para a importância na educação
Civil e cultural
LUCIANO FERREIRA
E a notícia mais legal foi que a violência caiu quase que
cinquenta por cento!
TODOS
Viva!
JORGINA
Só?
MÃE
Calma, garota. Essa geração é muito ansiosa, meu deus.
JORGINA
Eu não vejo a hora de poder andar sozinha por um beco à
noite.
MÃE
Ué, pra que?
JORGINA
Sei lá. Porque eu quero. Eu tenho o direito de querer.
LUCIANO FERREIRA
Será que o resultado só não tem dado certo porque
passamos pelo lado errado pra aprender?
JORGINA
Oi?
LUCIANO FERREIRA
Será que só não chegamos onde chegamos porque passamos
pelo jeito errado – pra ver que a gente tava mesmo errado – e aí sim conseguir
lidar com essa nova fórmula de um jeito sensato? Já com o sentimento de saber
que o outro jeito era ruim? Entendem?
JORGINA
Pode ser. Mas eu não gosto de pensar na possibilidade do que
podia ter sido. Foi assim que foi. Tivemos que passar pela luta de qualquer
jeito.
LUCIANO FERREIRA
Então sim.
Então sim.
JORGINA
Sim. Pode ser que sim.
MÃE
Muita gente teve que morrer.
LUCIANO FERREIRA
Pois é. A mesma quantidade de inocentes e de maliciosos.
JORGINA
Acho que ser malicioso é também uma forma de inocência.
(silêncio)
MÃE, LUCIANO FERREIRA E JESUS
Tem razão. Você tem toda razão.
(black-out)
FIM DO SEGUNDO ATO
ATO III: A PROLE DOS PREFERIDOS
PERSONAGENS
LEONARDO (GAROTO)
JORGINA
LUCIANO FERREIRA
POLÍCIA
(uma festa explode o palco; dançarinos e bailarinas giram
em alegria)
TODOS
Quem odiou o discurso
Mande-me adotar um bandido
Se eu pudesse eu pegava
E dava banho, roupa e grana
E que se foda o que ele fosse fazer com o que eu desse
pra ele
O que importa é um segundo de prazer
Não pra mim
Para o mundo aprender quanto é que vale um momento de
satisfação
Sabe o que daria no fim?
Que se foda a conclusão
De qualquer jeito
Não veremos o próximo passo da evolução
Mas que deixemos boas reticências
Boas lembranças e referências
E que as nossas crianças se lembrem de arrependimento e
perdão
Que não caiam na vingança
Já foi se o tempo de cão
(um foco destaca o garoto Leonardo)
LEONARDO
A violência caiu cinquenta por cento. Mas o bicho humano
é violento por natureza. A nossa luta é pra que não se alimente esse lado
existente. E continuaremos.
(Jorgina e Luciano aparecem de mãos dadas)
LEONARDO
Eles morreram pela causa.
JORGINA E LUCIANO
Eu sou brasileiro
E o orgulho
De cu é rola!
(dois policiais colocam revolveres em suas cabeças;
ouve-se um tiro; escuridão)
LEONARDO
Na teoria, cinquenta por cento a menos da violência é uma
puta notícia. Mas pra você ver como só a metade do que tínhamos já é terrível. A
justiceira dos noventa e nove foi assassinada num assalto besta. Dessa vez ela
não quis revidar. Alguns ousam dizer que a morte dela foi culpa do último um
por cento que ela deixou passar despercebido da sua cota de vinganças. No
último, ela recebeu a graça da oportunidade de desistir do ódio. E eu vejo uma
beleza imensa nisso tudo, porque ela de repente passou não a matar, mas a
morrer pela causa. (pausa) Do início de tudo, eu fui o único que sobrou. E olha
que eu os encontrei bem depois. Entrei na campanha de cabeça. Tomei muito
cacete da PM. (pausa) Logicamente o mundo ainda não está uma maravilha, mas o
sonho de Jorgina está se concretizando, no fim das contas. Não, ainda não temos
cem por cento de paz. Mas a gente conseguiu mostrar pro mundo que a solução não
estava na penalização e sim bem antes. Que era preciso educar pra não precisar
punir. Quando a gente começou, o governo pensava na segurança como repressão.
Conseguimos colocar em debate que, mais importante que a discussão sobre a
violência, era a implementação de uma real educação. Custo em dizer que talvez
quase que uma educação cristã. Não cristã com base no cristianismo que
conhecemos, mas uma educação com base no que Cristo dizia que era pra ser feito
literalmente. Amar ao próximo como a si mesmo. Funcionou? Eu acho que eu não
chegarei a colher o fruto direito. Nem você, nem nossos filhos. Talvez os
netos, se formos rápidos e espertos. O homem é muito violento mesmo! Diminuir a
metade foi o recorde num susto que aconteceu no coletivo. De repente todo mundo
repensou, graças a deus. É mesmo uma mudança lenta, mas sem dúvida nenhuma
muito mais eficiente do que incentivar a justiça olho por olho dente por dente.
Essa tática já era usada há muito tempo. A nova tática tem pouco mais de dois
mil anos, mas nunca havia sido usada corretamente como agora. A – clichê –
corrente do bem. Confesso que não tem sido fácil. É difícil tirar o rancor e a
violência de corações tão traumatizados. Mas sabe o que eu acho que vai dar no
fim? Um mundo onde poucos são presos, porque poucos se perdem nos pensamentos. Um
por cento talvez. E aí teremos tempo para os prazeres, e para os
compartilhamentos, e para os encontros e desencontros, para a gentileza e a
educação, para a igualdade, para a vontade de querer ver o outro qualquer bem.
Não eu e você. Aceite, não veremos esse dia chegar. Eu sou um puta de um
egoísta, eu sei. Mas talvez parte da nossa prole, parte de nós mesmos. (pausa) Ela
não importa pra você? Foda-se você, então. Gosto de pensar que minha prole – o
que vier de mim, seja um filho ou uma ideia – é a única forma de nos eternizar.
Porque a única coisa que vai sobrar quando a gente morrer serão os atos, sejam
eles bons ou ruins. Eu vou embora com a consciência noventa e nove por cento
limpa. Claro, eu também não posso ser um santo por completo.
(Jesus Cristo entra)
JESUS CRISTO
Finalmente estão agindo como eu acho que funcionaria. Vai
demorar um pouquinho, mas é bonito de ver uma galera se mobilizando pra salvar
o planeta do ódio. Eu sempre disse que era esse o jeito da coisa.
LEONARDO
Eu só fico com medo de – de repente
Que os homens voltem aos instintos novamente
Que a violência de novo aumente
JESUS CRISTO
“Não alimente o sentimento do mal”
Com esse pensamento já podemos chegar num finalmente
LEONARDO
Eu sei. Eu canso de esperar.
JESUS CRISTO
É a geração ansiosa.
Fique tranquilo.
É esse o jeito
O jeito é esse
(um manifestante amarelo entra)
AMARELO
Eu ainda acho que é do outro jeito que se devia fazer. É
desse jeito que eu penso e você tem que me respeitar. Cinquenta por cento não significa
nada! Minha tia foi estuprada semana passada. Vai lá dar um abraço no
estuprador, Jesus!
(um vermelho)
VERMELHO
Eu concordo com Jesus. Esse jeito dá mais certo, cara. Pense
bem. Sinta raiva do estuprador, mas tente canalizar pra outra coisa, sabe.
AMARELO
Vai se fuder. Isso tudo é muita caretice.
VERMELHO
De que adianta você se igualar?
AMARELO
O jeito é tacar o pau nos indecentes mesmo. Quero ver se
vierem roubar o seu celular.
(um azul entra)
AZUL
Dessa vez eu vou ficar com ele. (amarelo)
LEONARDO
Não!
AZUL
Acho que só vamos acabar com os bandidos se tacarmos uma
bomba atômica nas favelas.
AMARELO
É!
JESUS CRISTO
Essa foi a coisa mais estúpida que eu já ouvi na vida.
(o manifestante azul dá um murro na cara de Jesus;
silêncio; todos ficam em choque; Jesus, por alguns segundos não acredita no que
aconteceu; ele se recupera calmamente e revida um outro murro na cara do azul)
LEONARDO
Mas Jesus! E o lance da outra face?
JESUS CRISTO
Meu cu pra isso. A
gente tem que dar um tapinha na mão da criança pra ela relacionar a dor à
tomada que ela não deve se aproximar. Não é nada demais. Antes isso que ela
enfie mesmo o dedo na porra da tomada.
LEONARDO
Você é a favor da violência na educação?
JESUS CRISTO
De jeito nenhum. Você não entendeu. Mas eu não sou Jesus,
rapaz. Eu acabei de voltar de uma festa à fantasia. Eu também posso ter o
direito de errar como um humano.
LEONARDO
Tem razão.
JESUS CRISTO
Me irritei. Pronto, foi isso. Desculpe, filho.
AZUL
Tudo bem. Acho que talvez você tenha razão mesmo, no fim
das contas. Dói brigar.
JESUS CRISTO
Me desculpa, me desculpa mesmo. Eu me precipitei.
AZUL
Tudo bem.
(os coloridos saem)
LEONARDO
Olha que beleza! Já se vê o fruto! Consegue ver um fruto?
JESUS CRISTO
Oi?
LEONARDO
Um arrependimento e um perdão. Você se arrependeu, ele te
perdoou. Seria ótimo se mesmo depois de uma crise de raiva todo mundo fosse
menos orgulhoso e pedir perdão, porque é o mínimo. Talvez esse seja o início
para um grande passo dessa luta. Obrigado, Jesus.
JESUS CRISTO
Tem razão. No fim das contas meu erro valeu a pena.
LEONARDO
A maioria dos erros vale a pena. Anote isso. A gente
chega aonde chega por causa dos nossos erros e dos erros dos outros.
JESUS CRISTO
Talvez mais pra frente os erros comecem a ser visto como
acertos. Anote isso também.
LEONARDO
Talvez. Eu até que gostaria de ser imortal pra ver se vai
dar certo.
JESUS CRISTO
Não tenha duvida. Vai dar certo.
LEONARDO
Mas e se não der? Você viu. Cinquenta por cento não é
nada, perto do nosso instinto. Tenho medo de essa porcentagem aumentar. Eu sou
humano, eu sei como a gente é.
JESUS CRISTO
Se não der, não vai fazer diferença porque você não vai
mais estar aqui pra contestar. Então não se preocupe.
LEONARDO
Pois é. Tem razão. (pausa) Mas é não pensando nas pessoas
que eu nem conheço que eu me torno ainda mais egoísta.
(silêncio; disfarçando, Jesus anota a ultima frase que
Leonardo disse)
LEONARDO
Acredita na vida após a morte?
JESUS CRISTO
Acredito. Na vida dos que ficam. Se você precisa
acreditar em uma recompensa pós-morte pra fazer algo na vida, eu não acho que
mereça ser alguém especial aqui na Terra.
LEONARDO
Não era isso que eu queria dizer. Mas enfim.
JESUS CRISTO
Enfim.
(silêncio)
LEONARDO
É engraçado. Parece que já não tenho mais por que lutar.
JESUS CRISTO
O que? Você tem que continuar a luta da Jorgina, Leonardo!
O que é que é isso? Menino, olhe aqui...
LEONARDO
Como eu sei que eu nunca vou chegar a ver o mundo na paz
completa, parece que perde um pouco a graça, sabe.
JESUS CRISTO
Eita, caramba. Tá perdendo a confiança, moleque? Pense na
prole, pense na prole. (pra si) A cabeça do ser humano é uma merda. Eita,
geração bipolar do caramba.
LEONARDO
Eu penso. Mas no fundo sou um puta de um egoísta, sabe. Eu
sei que eu sou. Às vezes eu quero pensar só em mim. Às vezes não.
JESUS CRISTO
E quem não é?
LEONARDO
É. Pode ser. Quem não é? Eu tenho que tentar fazer
diferente.
JESUS CRISTO
E eu achei que você já tinha sacado. Você já tá velho na
luta, não tá?
LEONARDO
O aprendizado é eterno, Jesus. Eterno.
(silêncio; longo silêncio; os dois pigarreiam)
JESUS CRISTO
Então...
(uma onda de repórteres entra atropelando a cena)
REPÓRTER 1
Agora que os líderes foram brutalmente assassinados é
você quem vai liderar a corrente do bem?
REPÓRTER 2
Quem é o cara vestido de Jesus?
REPÓRTER 3
Vocês assumiram a cristandade?
REPÓRTER 4
Você acha que é o diabo que está voltando com mais raiva
ainda?
(um foco destaca o Repórter A numa cadeira de rodas;
completamente machucado)
REPÓRTER A
Você acredita em vida após a morte, Leonardo?
JESUS CRISTO
Não. Ele não acredita.
REPÓRTER A
Será que depois de tudo que passamos, por lutarmos pelas
tais pessoas que a gente nem conhece, tentando desesperadamente não ser egoísta
no dia a dia – o que é uma luta –, será que lá no fim – que a gente nem sabe
quando será e como –, será que nossa prole pode não chegar a se tornar um bando
de ingratos sem que a gente saiba? E que toda essa luta foi completamente
desnecessária? Que se alimentássemos a raiva da vingança, pelo menos estaríamos
nos dando “satisfação pessoal momentânea”? E que se foda que é momentânea! Eu costumo
dizer que satisfação pessoa é a coisa mais importante. Mais do que forçar um
ideal e uma ideia que demora e pode nem dar efeito.
JESUS CRISTO
Temos que nos basear na esperança
REPÓRTER A
Eu não estou falando com você, Jesus! Vai te fuder porque
agora eu tô nessa porra de cadeira de rodas por culpa de um filho da puta – e
você não ouviu minhas orações! (pausa) Dói dizer o que pensa, Leonardo, mesmo
que seja pra uma coisa boa. Sorte dos que morreram. Torça pra que você não
sofra e não sinta raiva do seu opressor, na real.
JESUS CRISTO
O que aconteceu com você? Um assalto?
REPÓRTER A
A polícia mesmo. Mas isso eu não posso contar pra
ninguém.
LEONARDO
Eu não tenho certeza, moço. Pergunta pra ele, todo dia eu
sofro com minhas negatividades. Mas eu aprendi uma coisa boba. Os pensamentos
negativos são bons porque eles me lembram que pensar positivo é muito melhor. Então
a negatividade existe. Vai existir. O diabo. Um vento maligno. Um surto
coletivo ou individual. Vai existir. Mas acho que mesmo que eu não tenha forças
pra mudar alguma coisa, eu devo escolher um lado. Eu bambeio. Mas no fundo, lá
no fundo, eu sei no que acredito. (pausa) Qual lado da energia você preferiria
participar?
(silêncio; todo mundo pensa por longos segundos)
(black-out)
EPÍLOGO
(todos os personagens aparecem nus; como manequins eles se
apresentam com os diversos tipos de gente que são; brancos, negros, magros,
altos, gordos, homem, mulher; todos nus, só nus; eles se viram de costas e
aguardam algum tempo; depois voltam para frente; a luz cai com poeira sendo jogado
sobre todos)
TODOS
Durma criança
E se lembre das pessoas
(black-out)
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