YGNORE-ME
PERSONAGEM
CARENTY
INDIFERENTE 1
INDIFERENTE 2
INDIFERENTE 3
BOBO
PRÓLOGO
(CARENTY está em destaque)
TODOS
Chove confiança
Chove argumentos
Espalha-se
esperança
E cria movimentos
Fala, fala, fala,
Discute sobre o
aumento
Nunca sabe nada, dá
o truque
Convence o opositor
Fingindo
conhecimento
Estúpido
Rebate com certezas
Mas sempre
duvidando de si próprio
Do próprio
argumento totalitário
Da verdade
hereditária escorraçada de mentiras
Das brigas
Da máscara diária
Da atuação de cada
dia, nos dai hoje, pai, amém
E se vier alguém
Que tenha sua
atenção
Não gosta quando
não olham pro seu coração
Ou mesmo pro
detalhe que é a sua bunda
Precisa de olhares
de quinta à segunda
Contenta-se com
dias de folga
Pra recuperar o
falso egocentrismo
O que os outros
pensam é o que o molda
Necessita-se,
elogia-se no espelho
Mas encana com seu
dente
Um tanto narcisismo
Mas falta realismo
na cabeça desse carente
Talvez, atenção é
sempre aquilo que precise
Ele também é gente
Tem pensamentos
quentes
E sonhos retardados
Com desejos
influentes
Infelizmente, ele
não lida bem com um “não”
Ou com um
indiferente
Com gente ignorante
Que talvez o ignore
Por falta de
oportunidade
Mas na realidade
ele não consegue ver
É muito ansioso e
quer saber como vai ser
A sua confiança é
um tanto mentirosa
Isso é defesa de um
medo de esquecerem quem ele é
E quem ele foi
(a luz geral se apaga e CARENTY fica num foco)
CENA I
CARENTY
Eu sou o cara mais
frio que você vai conhecer
Eu não sei dividir
o que eu ainda tenho que aprender
Eu tenho confiança,
quando digo, quando falo
Desde que sou
criança todo mundo paga um pau
As minhas
professoras eram por mim apaixonadas
As mães das
coleguinhas queriam que eu fosse o genro
Eu era bonitinho, e
fui um mimadinho
E fui crescendo
achando que todo mundo devia me amar
E aceitar tudo de
mim
Se levantar e
aplaudir
E finalmente
ovacionar
O carente mais auto
suficiente que você irá encontrar
TODOS
Pelo menos na cara
Só mostra aquilo
que vale a pena mostrar
Não possui nenhuma
ideia rara, mas se acha especial e culto
E acha que faz
parte da elite filosófica
CARENTY
Virei artista tonto
Com registro
profissional
Finjo que não ligo,
mas adoro um “parabéns”
Eu finjo sempre que
está tudo bem
Mas quero mais é
que falem de mim
E que discutam
sobre mim, pensem em mim
Quero que olhem e
comentem sobre mim
Que se lembrem de
mim
Que queiram saber o
que eu penso
O que eu fiz e faço
Que eu já fiz
teatro
Mim!
Eu!
Preciso que me
conheçam
E que queiram tomar
uma cerveja comigo.
Que façam questão
da minha presença, como amigo
Mesmo que eu mesmo
não queira
Mas que eles todos
queiram sempre e que sempre me convidem
Mesmo que eu nem vá
E os que não gostam
de mim
Que eu seja pelo
menos um importante inimigo
Um inimigo presente
e ativo
Mas, por favor, não
me faça a indiferença
Eu não suporto a
chave dessa mudança
Eu preciso, eu sou
carente
Mesmo, mesmo que
não pareça
Sim, eu sou carente
Por favor, não seja
indiferente
Comigo, não
Não seja ignorante
comigo
Não seja
indiferente
INDIFERENTE 1
Eu tenho a minha
vida
Tudo bem, você é
bonito
Até interessante
Não sei como te
explico
Não é que eu não
quero te ajudar com paparicos
Não é que não
mereça ser o foco da atenção
Estou olhando a
minha, cultivando as minhas coisas
Podíamos ser
amigos, se não fosse essa pressão
INDIFERENTE 2
Você chegou e acha
que a vida deve parar
Mas pense bem,
otário, estou junto a procurar
Essa mania louca de
querer ser o umbigo
Não sei se estou
buscando nova gente, um novo amigo
Você é o
protagonista só na sua cabeça
Aqui eu co-ajudo,
mas pra mim foda-se o que pensa
Na minha historinha
você só apareceu
Pra mim o
importante não é você, eu sou mais eu
INDIFERENTE 3
Olha, desculpe.
Sinto em lhe informar que não é o Sol que gira em torno de nós. É nós que
estamos rodando. Você tem uma depressiva necessidade de aceitação. Se te
acharão um cara bacana, ou um escroto merecedor da indiferença. Mas pense.
Mesmo que te achem bacana, a importância que você vê em você – que gostaria que
os outros reconhecessem e aplaudissem em pé –, só tem sentido pra você mesmo. Ninguém
tá se lixando pras suas importâncias. Ninguém tá se lixando pros seus motivos e
pros seus desejos. Mesmo a pessoa mais acompanhada do planeta, aquela que mais
tem amigos, mesmo a pessoa mais popular desse universo, no fim das contas ela
também vai morrer sozinho. Mesmo que morra ao lado de todas as pessoas que se
importam um pouco com ele, o indivíduo conhecerá a morte naquele momento numa
experiência única e solitária. Então foda-se sua carência. Lide com isso. Seja
carente, mas pelo amor de deus, não seja egoísta.
INDIFERENTES
Lide com isso!
INDIFERENTE 3
Isso é quase um
tipo de demência. Essa necessidade insistente só traz dor aos seus. Não seja
egoísta. Lide com isso. Você não é deus.
CARENTY
Eu sei
Eu sei o que eu sou
Sei o que eu mereço
e o que me aguarda!
Falei
Sim, eu sinto quem
eu sou
Eu sei pra onde eu
vou
Caí nos meus
tropeços
Mas sou especial
nessa vida privada
Mais do que a
molecada
Uma auto aprovação
é muito necessária
Só acho que
consigo, se eu estiver no foco
Se eu for o dono da
casa
Não sei viver
embaixo de pessoas autoritárias
Prefiro ser o líder
das histórias que eu coloco
Eu só compreendo os
argumentos que eu faço
É uma guerra
diária, totalmente solitária
Não sei se eu me
acho ou se sou um fracassado
Estou desesperado
Não gosto da
opinião dos outros
Mas não vivo sem
elas
INDIFERENTES
Nós temos a
resposta, irmão
Você é um folgado
(CARENTY cai num choro cômico)
CARENTY
Não falem assim
comigo
Eu me faço de
vítima quando me vejo em perigo
INDIFERENTE 1
Pelo menos é
sincero
CARENTY
Sincero, não
Preocupado
Eu quero me ajudar
e ser um homem elevado
Prefiro agora expor
os meus defeitos retardados
Preciso da
aprovação dos meus amigos e dos desconhecidos
Aí verei um
resultado
Rebato minha
carência com uma falsa confiança
Me desculpem daquelas
vezes que eu me achei estar no topo, ou no centro do assunto
Faço desde que sou
criança
Defendendo absurdos
Falando com falsa
propriedade
INDIFERENTE 2
Essa é a realidade
Quando se olha no
espelho e vê quem você realmente é
As chatices e as
insistências
Pra aprender, basta
se entender
INDIFERENTE 3
E querer
CARENTY
Querer não é o
suficiente
Eis o porquê da
preocupação
Eu queria ser
diferente
Mas mudar não é
fácil, não
INDIFERENTE 3
O que você espera?
O que quer ver
depois?
Por que se importa
tanto com essas toscas opiniões?
O que vai acontecer
se souber que alguém te inveja o cabelo? Ou, de repente, você descobre que
existe alguém no mundo que gostaria de ser você. O que muda? O que muda se
aquela pessoa que você admira te fizer um elogio? O que? Muda nada. Muda a
sensação corporal sua – que é única, inexplicável e intransferível. Então, no
fim das contas, é uma luta e um ciclo de insistência sem sentido.
CARENTY
Não sei o que é
pior
Me defender com
egocentrismo
Demonstrando um
poder que eu não tenho
Ou aceitar o
depressivo
Demonstrando que
preciso sim de pessoas
INDIFERENTE 1
Não sei dizer se
ele é frio
Ou se é quente
INDIFERENTE 2
Não acho
interessante
Acho ele muito
carente
Eu não sou nada
paciente
Adeus
(INDIFERENTE 2 sai)
(CARENTY se debulha em lágrimas infantis)
CARENTY
Pobre de mim
Ninguém me entende
Ninguém me ama
Eu só quis expor
meus sentimentos
Isso tudo me ofende
No fundo da alma
No fundo do
inconsciente
Ignorem-me
(INDIFERENTE 3 não reage; INDIFERENTE 1 se comove)
INDIFERENTE 1
Meu amigo, estou
aqui
Eu posso te acolher
Não tenho muito
tempo
Mas posso me
espremer
Já tenho meus
amigos
Mas vamos sair com
a gente
Eles são gente boa
Mas por favor não
seja tão carente
CARENTY
Você está com pena
de mim
INDIFERENTE 3
Ai, meu santo deus!
Rapaz! Você já é um marmanjo! Se erga, caralho. Para com essa besteira de
depressivo e acorda pra vida. Esquece essa necessidade, anda pra frente. Você
precisa de um chacoalhão. Um susto pra ver se enxerga. Encontre outros
prazeres. Vicie-se em algo mais saudável. Vai transar, vai fazer algum esporte,
alguma arte.
CARENTY
Eu já fiz teatro
Jogo capoeira
Minha vida sexual é
super ativa
Só fiz coadjuvantes
Tomei diversas
rasteiras
Marco sexo pela
internet
É legal, mas sem
perspectiva
(INDIFERENTE 3 dá um tapa na cara de CARENTY)
INDIFERENTE 3
Então, foda-se. Não
quero ser seu amigo.
(INDIFERENTE 3 sai)
CARENTY
Pior que a
indiferença
É a crueldade
INDIFERENTE 1
Eu até entendo eles
Eu sou mais
paciente
Posso ser seu amigo
Mas você deve estar
ciente
Sou quase igual a
você
Eu busco por
atenção
A grande diferença
é que eles estão na minha mão
Não digo dos
estranhos
Falo da minha roda
de amigos
Eu sou o grande
líder
Você terá um cargo
menor
Mas eu quem mando
Eu quem dito
(CARENTY pensa por alguns segundos, mas sai orgulhoso)
(black-out)
CENA II
(as luzes se acendem e os INDIFERENTES estão amarrados em
cadeiras; CARENTY está neurótico)
CARENTY
Agora vocês me
ouvirão! Irão prestar bastante atenção!
Não quero ouvir um
pio, ou um “não”.
INDIFERENTES
Ele precisa de um pouco de atenção
Ele precisa de um pouco de atenção
Pobre carente
Depois não tem
perdão
CARENTY
Eu vou começar
contando uma piada
Quem não rir
Tomará uma cacetada
Por favor, senhor
que está na cabine de luz
Me coloque um foco
Me faça como Jesus
(um foco o destaca)
INDIFERENTE 1
Seu ingrato! Você é
um folgado! Eu te chamei pra minha turma, mas você quer ser o chefão.
INDIFERENTE 2
Eu te mato!
Retardado! Você sabe quanto custa o meu tempo nessa enrolação?
INDIFERENTE 3
Porra, que chato!
Você é um alienado! Não adianta essa luta, não terá minha atenção.
CARENTY
Dois fanhos foram
roubar patos. Um dos fanhos caiu em cima de um dos patos. O pato gritou “Quá”!
O outro fanho respondeu: “Qualqué um! Qualqué um!”
(silêncio)
CARENTY
E então?
INDIFERENTE 2
Achei uma bosta.
(com um cassetete, CARENTY bate nos cantos das cadeiras
de cada um dos INDIFERENTES; com medo de serem atingidos, INDIFERENTES 1 e 3
riem falsamente da piada)
CARENTY
E então? E então?
INDIFERENTE 1
Muito bom. Muito
bom. Eu achei muito boa mesmo.
INDIFERENTE 3
Ótima piada. Acho
que vou te convidar para a minha turma. Estamos sem um líder.
INDIFERENTE 2
Eu achei uma bosta
e vai tomar no seu cu.
(CARENTY gruda INDIFERENTE 2 pelo maxilar)
CARENTY
Por hora, eu sou
seu deus
Tudo o que eu falo
tem sentido
E é a única verdade
que você conhece
INDIFERENTE 2
Chupa meu pau
Você não é ninguém
Você não é meu
amigo
Eu tenho mais
idade, você não me interessa
(calmamente, CARENTY abre a boca de INDIFERENTE 2 e faz
com que uma boa quantidade de cuspe caia dentro dela)
INDIFERENTE 2
Seu filho da puta!
CARENTY
Você vai ter que me
engolir.
INDIFERENTE 1
Por favor, me deixe
ir.
INDIFERENTE 3
Não contaremos a
ninguém.
CARENTY
Outra piada.
INDIFERENTE 2
Ai, meu cu.
CARENTY
Havia uma bolacha.
Toda vez ela passava em frente à casa de um homem mal humorado. Ela era uma
bolacha feliz e sempre passeava cantando: “Eu sou uma bolacha. Lá, lá, lá, lá.
Eu sou uma bolacha. Lá, lá, lá, lá.” Um dia o homem, cansado da cantoria
repetitiva, sacou uma espingarda e atirou na pobre bolachinha. No dia seguinte
a bolacha renovou o seu repertório. Ela continuou com seus passeios, mas
cantando assim: “Eu sou uma rosquinha. Lá, lá, lá, lá. Eu sou uma rosquinha.
Lá, lá, lá, lá.”
(silêncio)
CARENTY
Porque agora ela
tinha um furo no meio, entenderam?
(silêncio)
CARENTY
(grita) Riam!
(ouve-se uma risada vindo de fora; os INDIFERENTES se
olham sem entender; a risada permanece por alguns segundos; CARENTY se sente
bem)
CARENTY
Viu? Nem sempre eu
preciso obrigar as pessoas a gostarem de mim.
INDIFERENTE 2
Quem consegue rir
de uma coisa tão estúpida?
CARENTY
Alguém deve gostar
de mim. Por natureza!
(INDIFERENTE 2, descaradamente, finge dormir de tanto
tédio)
CARENTY
Para de me ignorar!
Quem você pensa que é?
INDIFERENTE 3
Quem VOCÊ pensa que
é?
CARENY
Eu não cheguei em você ainda.
Eu não cheguei em você ainda.
INDIFERENTE 3
Vai adiantar em quê
se a gente rir com você? Vai adiantar em quê ter nosso apreço? Por que importa
tanto com o que eu penso? Eu não sou ninguém, rapaz. Você deveria se sentir
normal em ter a minha indiferença, porque eu não sou nada e não sou ninguém.
CARENTY
Eu não suporto.
Necessito, apenas.
INDIFERENTE 1
Me deixa sair
daqui. Nunca sabemos o que será de amanhã. Mas eu juro que eu serei seu fã. Te
convidarei sempre com presença VIP.
CARENTY
Promete criar uma
página com o meu nome no Facebook? Um grupo de pessoas que me adoram?
INDIFERENTE 1
Prometo, prometo! E
eu já quero um fio do seu cabelo para divulgação.
CARENTY
Tudo bem.
(CARENTY retira um fio do cabelo e desamarra INDIFERENTE
1)
INDIFERENTE 1
Obrigado. Obrigado.
Serei sempre grato à sua misericórdia.
CARENTY
É disso que eu
gosto. Desse paparico pé no saco.
(INDIFERENTE 1 vai sair)
CARENTY
Ei, espere. Não
quer tirar uma foto ao meu lado? Pra você mostrar pra aqueles seus amigos exigentes.
INDIFERENTE 1
Ah, claro. Como eu
pude me esquecer? Perdão.
(INDIFERENTE 1 saca um celular e ambos posam pra foto)
INDIFERENTE 1
Ficou linda.
CARENTY
Não gostei. Ficou
aparecendo esse meu dente que eu não gosto. Vamos mudar de lado.
(eles invertem os lados e tiram outra foto)
INDIFERENTE 1
Essa sim. Ó.
CARENTY
Não sei. A luz não
me favoreceu. Tá aparecendo o frizz no meu cabelo.
(eles tiram outra)
INDIFERENTE 1
Ai, acho que pisquei. Sim, pisquei.
CARENTY
Gostei dessa. Minha
cara tá boa. Gosto quando mostra a curva do meu maxilar.
INDIFERENTE 1
Então, tá bom. Eu
me corto da foto depois.
CARENTY
Hum. Pode ser.
INDIFERENTE 1
Agora eu vou. Adeus!
(sai correndo)
CARENTY
Adeus! Não se
esqueça de me seguir assim que acessar a internet! E espalhe para o mundo quem
eu sou!
(silêncio)
INDIFERENTE 3
Eu também. Eu te
sigo. Entro no grupo que ele vai criar. Viro seu fã número um. Mas me deixe
seguir. Me deixe ir também.
CARENTY
Não. Vocês dois
irão me assistir.
INDIFERENTE 2
Oh, deus. O que foi
que eu fiz pra merecer?
CARENTY
Desculpe, vocês tem
que me entender. Se não for assim, irei comprometer o fino fio da existência.
Já tive pensamentos suicidas. É uma doença essa minha carência. Não seja
egoísta e divida as vossas vidas comigo. Não é questão de precisar de amigos, é
questão de ter alguma importância.
INDIFERENTE 3
E por que deixou
ele ir embora, então? Por que só nós dois?
CARENTY
(um segredo) Olha,
vocês conhecem ele? Ele é líder da própria banda. Ele sim é uma pessoa que eu
admiro. E invejo. Ele sim, com sua liderança na base da humildade vai conseguir
ser alguém legal na vida. Entendem? Foi o único quem mostrou compaixão à minha
história. Ele é melhor que eu e que você. Eu invejo isso, mas não posso
força-lo a querer me ouvir porque ele sabe mais que eu por isso tudo.
INDIFERENTE 2
(gargalha irritado) Então
você acha que é melhor que nós dois?
CARENTY
Melhor que os dois
juntos.
INDIFERENTE 3
Então pra que
precisa de nós? Tudo bem. Eu reconheço. Você é dez vezes melhor que eu. Então
pra que precisa da nossa aprovação?
CARENTY
Não sei.
(silêncio)
CARENTY
Talvez eu digo que
sou melhor como desculpa a minha real falta de confiança.
(silêncio)
INDIFERENTE 2
Cacete.
INDIFERENTE 3
Você precisa de um
tratamento, meu amigo.
CARENTY
Eu não sou seu
amigo. Você não quer.
INDIFERENTE 3
Mas eu me reconheço
um pouco em você
Eu vejo algumas
coisas que ninguém consegue ver
Não sei como eu
pude não te dar muita atenção
Eu ando por aí
pregando que somos todos irmãos
Perdoe-me a
indiferença
Eu também sou ainda
criança
Estou só aprendendo
Assim como você
(silêncio)
(CARENTY desamarra INDIFERENTE 2, que surpreso sai
correndo)
INDIFERENTE 2
Valeu!
INDIFERENTE 3
Mas...! E eu? Me solta,
pelo amor de deus! Ele te odeia. Ele nunca te entendeu. Eu tô começando a
entender. Me solta, pelo amor de deus!
CARENTY
Quero ser superior a
seu tipo. O tipo esperto. Ele era um pouco animal. Foda-se esses que se deixam
levar pelo instinto.
INDIFERENTE 3
Você se deixa levar
por seus sentimentos.
CARENTY
(grita) Eu sou eu! Eu
sou eu!
(silêncio)
(INDIFERENTE 3 chora)
CARENTY
Tá chorando por quê?
INDIFERENTE 3
Eu acho que eu sou
menos diferente de você do que pensamos. Já amarrei meus amores pra me sentir
especial. Se você é o mais carente, eu fico em segundo. Eu sei que isso não é
normal. Mas assim como você, na inteligência eu me camuflo.
CARENTY
Isso não é legal.
INDIFERENTE 3
Haha. Faça me rir.
CARENTY
Não sei mais piada
nenhuma.
INDIFERENTE 3
Tá ótimo. Talvez seja
o meu destino.
CARENTY
Ou o meu.
INDIFERENTE 3
Ou o meu.
(silêncio)
INDIFERENTE 3
Eu acho que eu te
aceito.
CARENTY
Oi?
INDIFERENTE 3
Nós talvez temos o
destino de ficar juntos. Pela carência parecida.
(silêncio)
CARENTY
Repita.
INDIFERENTE 3
Acho que te entendo
Acho que te aceito
Quero ser seu
parceiro
Se assim você
quiser
CARENTY
Você está tentando
se safar
Ou está na
sinceridade?
INDIFERENTE 3
Posso até fingir querer
fugir
Mas já estou preso
a você
Somos parecidos
Eu também sou
carente pra cacete
Acho que preciso de
você
Quem não viraria
escravo dessa amarração autoritária?
(silêncio)
(CARENTY, desanimado, abandona tudo e sai)
INDIFERENTE 3
Espera! Me solta! Eu
te amo! Eu te amo!
(black-out)
CENA III
(CARENTY está num púlpito de exposições; os INDIFERENTES
o observam com apreço)
INDIFERENTE 1
Veja essa parte. Aqui.
Tem uma protuberância.
INDIFERENTE 3
Tem uma
importância. Bastante sensacional.
INTERESSANTE 2
Acho esquisito. Mas
até que é bonito.
INDIFERENTE 1
O que ele faz?
INDIFERENTE 3
Diz que fez teatro.
E joga capoeira. Come todo mundo que cair nas suas besteiras. Mas só pela
internet. Ele é um pouco tímido. Em todos os segundos tenta sair pelas
estribeiras.
INDIFERENTES
Mas esse medo traz
consequências
Ele é um menino na
dependência
Viciado em focos e
atenções
Desesperado por aplausos
Por corações
CARENTY
Um homem viajava de
avião. Veio a aeromoça e a ele perguntou: “O senhor passageiro gostaria de
jantar?” Ele disse: “Quais são as opções?” Ela respondeu: “Sim ou não”.
(os INDIFERENTES não entendem; alguém, fora de cena,
gargalha exageradamente)
INDIFERENTE 2
Ele só não tem um
bom senso de humor.
INDIFERENTE 1
Valeu a intenção.
INDIFERENTE 2
Você também não
riu. Ele é chato pra caralho. Vá pra puta que o pariu, viu.
INDIFERENTES
Não sabemos se ele
se acha
Ou se apenas não se
aguenta
Normalmente a
carência
Vem da auto
insuficiência
CARENTY
Eu sou o melhor e
ninguém me dá valor
Sei o que eu mereço
e preciso de amor
(silêncio; os INDIFERENTES tiram toda a roupa de CARENTY
que não reage)
INDIFERENTES
Então você terá
Ao menos por um
segundo
(os INDIFERENTES transam com CARENTY de todas as formas
possíveis; CARENTY não se move, é movido; quando o gozo acontecer os
INDIFERENTES se arrumam e saem; CARENTY fica sozinho por longos segundos com
cara de paisagem; ele repara a solidão e o silêncio com medo e um desespero
interior; por fim, ele se masturba solitário, rindo pra caralho; as luzes caem
em resistência)
(black-out; ouve-se um gozo dolorido)
INTERLÚDIO
(BOBO está em um foco; ele gargalha por um minuto
contado)
BOBO
Ele é ótimo. Super engraçado.
Diz que fez teatro. Eu me apaixonei.
É fato. Super engajado.
Eu nunca fui carente. Mas por ele eu mudei.
A piada do avião
Eu juro que adorei
(black-out)
CENA IV
(os INDIFERENTES dançam estranhamente ao fundo; um foco
destaca CARENTY)
CARENTY
Eu não sei como eu
fui me transformar nesse dependente! Eu talvez tenha sido mimado demais. Me desculpem
a sinceridade, mas eu não entendo como alguém pode não querer me conhecer. Eu sou
um cara legal. Eu disfarço esse medo com simpatia. Finjo ser passivo nos
assuntos que eu quero liderar. Mas tentem me aceitar. Eu sei compartilhar um pouco
de humildade. Mas se eu ficar sozinho verá um rapaz deprimido. Mesmo se eu
estiver fingindo que quero me afastar. Na realidade, eu quero ficar. E quando
acabar levantem e aplaudam, que é o mínimo de educação. Tudo isso é pra
mostrar, que quando sou chato e egocêntrico, é camuflagem de um medo difícil de
lidar. A da falta de aprovação.
(INDIFERENTE 1 vai até a boca de cena e interpreta
CARENTY)
INDIFERENTE 1 e CARENTY
Você tem inveja de
mim! Se houvesse uma disputa pra decidir quem vai interpretar Hamlet, eu seria
o Hamlet!
(INDIFERENTE 2 faz o mesmo)
INDIFERENTE 2 e CARENTY
Faço teatro, jogo
capoeira e meto todo dia. Até dramaturgo, eu sou! Me amem, mortais! Me amem
porque eu sou o mais importante!
(INDIFERENTE 3 também)
INDIFERENTE 3 e CARENTY
Desculpem por tudo
isso. É medo. Medo de ser esquecido.
TODOS
Me ignore se quiser
me matar
Me ignore se quiser
sufocar o meu coração
Nunca implore pela
minha atenção
Pois de carente já
basta a minha opinião
Eu não sei o que
quero da vida
Não consigo ser
coadjuvante
Nessa história eu
sou protagonista
Não nasci pra ser
um mero ajudante
Eu preciso liderar
Me desculpa a
imprecisão e a falta de humor
Digo que sou
bonito, mas me acho esquisito
Isso tudo também
dói, isso é falta de amor
Tô tentando
aprender a evoluir
E me expor
Me expor pra me
desculpar
(BOBO aparece em um foco rindo loucamente)
BOBO
Você é um barato. Acho
bonitinho. Tenho um pouco de dó, mas acho engraçadinho.
INDIFERENTES
Quem é você?
BOBO
O novo amigo dele. E
porque eu mesmo escolhi isso.
CARENTY
Você quer ser meu
amigo, é?
INDIFERENTE 3
Cuidado, hein.
Quando você demonstra carinho, no fim das contas ele também foge.
CARENTY
Carência por
carência já basta a minha.
INDIFERENTE 2
Então quer dizer
que você quer que te adorem, mas quando isso finalmente acontece você perde
o interesse, é isso?
CARENTY
Exatamente.
INDIFERENTE 1
Acho que você se
alimenta dessa indiferença pra com você.
CARENTY
Não. Esse é meu
carma. Não aguento paparicos sinceros, mas é isso o que eu mais quero.
INDIFERENTE 1
Que difícil. Você nunca
estará satisfeito.
CARENTY
Pois eis o
desespero.
INDIFERENTE 2
Que falta de
respeito!
INDIFERENTE 3
Me deu uma dor no
peito.
(INDIFERENTE 3 cai no chão)
CARENTY
Ai, meu deus. O que
foi? O que você está sentindo?
INDIFERENTE 1
Acho que ele se
envolveu sinceramente com sua história. E você o ignorou quando ele disse que
estava afim.
CARENTY
Ele é muito
parecido comigo. Não iria dar certo mesmo.
INDIFERENTE 3
Agora eu sei o que
você sente. Essa dor, esse vazio. Ser ignorado é o pior sentimento.
(INDIFERENTE 3 morre toscamente, com a língua pra fora)
CARENTY
Ele morreu?
INDIFERENTE 2
“Me ignore se
quiser me matar.”
CARENTY
Mas o que eu posso
fazer? Eu também não sei lidar com isso. Quando a gente nasce não vem um manual
de instruções.
INDIFERENTE 1
Ele morreu de amor.
Do coração. Antes ele que você, certo?
CARENTY
Certo. Quero ver
alguém que não pense assim. Quero ver!
INDIFERENTE 1
Eu já larguei de
alguém que disse que me amava. Eu também já fui assim.
INDIFERENTE 2
Não tem como nos
forçar a gostar de alguém.
CARENTY
Talvez amarrando.
(silêncio)
CARENTY
Então você quer ser
meu amigo, é isso?
BOBO
Talvez sim, talvez
não. Mas eu já te aviso que eu sou imprevisível. Hoje eu gosto, amanhã não.
CARENTY
Hum. Um amor
incerto...
BOBO
Talvez. Eu sou
muito indeciso. Talvez isso te ajude. Você nunca terá certeza cem por cento de
que eu te pertenço. Seu carma pode continuar e podemos curtir o quanto durar.
CARENTY
É estranho eu saber
disso e pular de cabeça. Na vida real ninguém avisa que é incerto.
BOBO
Não é o que você
quer? Alguém que ri das suas piadas, que quer te conhecer, mas que também
demonstra um pouco de indiferença.
CARENTY
Caralho, como eu
sou complicado. É disso mesmo que eu preciso.
INDIFERENTE 1
Todos somos
complicadíssimos. Eu também tenho minhas manias e vícios.
INDIFERENTE 2
Eu também. E me
defendo com ignorância e estupidez.
BOBO
Eu gosto de comer
gente que demonstra confiança, mas que no fundo quer mais é ser passivo. Talvez
tenhamos um bom encaixe, eu e você.
CARENTY
O pior é que eu sou
um pouco das duas coisas. Às vezes demonstro passividade, mas no fundo quero
mais é liderar. Eu não sei como funciona a minha cabeça.
BOBO
Pois vamos deixar
rolar?
CARENTY
O foda, é que se
você se apaixonar, eu vou cair fora. E se eu me apaixonar, eu tô fudido, pois
você não quer nada com nada. Acho que devemos deixar como está.
BOBO
Você não se deixa
permitir experimentar outras vivências? Eu posso te ensinar outro tipo de
carência.
CARENTY
Por que tá correndo
tanto atrás de mim? O que foi que você viu e se impressionou?
BOBO
Como não se
impressionar com alguém tão louco e imbecil? Sim, eu me impressionei. E talvez
seria legal, pois ambos somos gays.
CARENTY
É esse tipo de
relação que está propondo? Puxa, é melhor do que imaginei!
BOBO
Sim. Mas repito. Não
se entregue cem por cento.
CARENTY
É disso que eu me
alimento. Da insegurança.
(os dois se abraçam e se beijam romanticamente; os INDIFERENTES
se aborrecem pela indiscrição)
INDIFERENTE 2
Falta de
sensibilidade. Temos aqui um defunto.
CARENTY
Coadjuvantes morrem
sempre.
INDIFERENTE 1
Pior que é. Já posso
voltar a historia que eu protagonizo. Adeus.
(INDIFERENTE 1 sai)
CARENTY
E você?
INDIFERENTE 2
Eu o que?
CARENTY
Não tem sua própria história pra contar?
INDIFERENTE 2
Agora que você não quer, que já se acertou, fiquei bem
curioso. Quero assistir mais do amor de vocês.
CARENTY
Pra invejar?
INDIFERENTE 2
Pra ironizar.
CARENTY
Hum.
(CARENTY e BOBO se beijam novamente; CARENTY beija
olhando INDIFERENTE 2, que segura vela atentamente)
CARENTY
Ok. Agora você já está me irritando.
INDIFERENTE 2
Ué, não era tudo o que você queria? Uma plateia pras suas
conquistas?
CARENTY
Eu mudo sempre de opinião. Agora quero que vá embora.
INDIFERENTE 2
Pois agora prefiro ficar. Gostei do seu final feliz.
BOBO
Invejosos sempre existirão.
(CARENTY e BOBO continuam com o romance interpretado)
(as luzes caem em resistência com INDIFERENTE 2
interessado em ser espectador da cena)
(black-out)
CENA FINAL
(um foco destaca CARENTY sozinho; ele curte a solidão sem
ânimo)
CARENTY
Ele, por fim, se apaixonou por mim. E eu me interessei
pelo observador, que só se interessava em observar. Quando eu larguei o meu
grande amor, o observador se desinteressou. (pausa) E eu fiquei sozinho de
novo. O observador também era gay e eles fugiram juntos, me deixando chupando o
dedo e morrendo de remorso. Os outros continuaram contando suas próprias
histórias, e a minha time-line teve importância só para mim. Uma importância e
uma dependência que só eu conseguia imaginar com grande proporção. Ninguém irá
me dar o que eu acho que mereço. Detalhe: o que eu ACHO que mereço. (pausa) Eu
mereço ficar sozinho, pois quero ter gente que não se importa em estar comigo. As
que se importam, eu evito.
(CARENTY termina a cena beijando o próprio reflexo em um
espelho; ele beija desesperadamente triste)
(as luzes caem em resistência)
FIM
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