COMPILAÇÃO: REALISMOS SURREALISTAS MODERNOS, CURTOS E BOBOS – PARTE 2

COMPILAÇÃO: REALISMOS SURREALISTAS MODERNOS, CURTOS E BOBOS – PARTE 2

(CENAS E DIÁLOGOS CURTOS)


1.       TROPEÇOS

1
Jovem?

2
Sim?

1
Você tem um momento?

2
Vários.

1
Pra me ouvir?

2
Depende.

1
Você quer?

2
O que?

1
Me ouvir.

2
Sei lá, cara. Fala aí.

1
Você quer que eu fale?

2
Fale!

1
Acho que esse caminho não vai dar certo.

2
O que? Que caminho?

1
Esse caminho é o pior dos caminhos.

2
Do que é que você tá falando, cara?

1
O caminho que você tá trilhando, as escolhas. Você vai tropeçar ali na frente.

(silêncio)

2
É metáfora isso, é?

1
Não. É sério. Eu precisava te dizer isso porque eu já passei por isso antes e eu sei que isso vai dar merda, garoto.

2
Isso o que, cara? Você tá piradão?

1
Cara, me escuta, se você continuar por aí, você vai tropeçar. Escuta o que eu tô te dizendo. Os caminhos na vida são confusos de se escolher, e às vezes a melhor escolha pode não parecer a melhor escolha, mas é por ela que você deve ir.

2
Pois então. Essa não parece ser a melhor escolha, pode parecer que eu vá tropeçar ali na frente, mas talvez na verdade eu consiga encontrar um bilhete de loteria premiado logo ali na próxima esquina. Como saberemos? Indo e tropeçando.

1
Aceite o meu palpite. Eu sou bem mais velho que você.

2
Eu tenho muito mais tempo pra errar – pra depois poder acertar – que você.

1
Eu, com o tempo que você tem, iria fazer muito mais.

2
Então por que não fez?

1
Por que eu pensava como você.

2
Se arrepende?

1
Agora já foi.

2
Pois bem. Agora já foi. Deixa que um dia eu aprendo também, senhor sabedoria.

1
Não era mais fácil você pegar um atalho nos meus conselhos?

2
Mas aí eu estaria fazendo o que você acha que é melhor pra mim. Hoje em dia, eu já consigo pensar que eu sou mais importante que os outros e que sou eu quem devo escolher minhas caretices e babaquices.

1
Já é mentira pelo fato de que tudo o que você é e tudo o que você já foi, você roubou de alguém.

2
Eu nunca roubei nada de ninguém, cara! De ninguém! Não vem com essas histórias...

1
Eu digo, roubou no sentido de sugar o que os outros dizem, de repetir o que outros fazem, de andar no estilo.

2
Eu tenho meu próprio estilo.

1
Mesmo assim. Ninguém é realmente próprio de alguma coisa. Eu, você e o tudo e todos, pertencemos ao grande Senhor Proprietário Ninguém de Nazaré. Nada pertence a nada. O chão e a propriedade privada pertencem a todas as privadas de todas as merdas, de todos os cus, de todo o ser humano e não humano dessa face da Terra! E o que isso tem a ver com a minha profecia com seus tropeços na vida? Eu sei bem mais que você porque eu já passei pelos sentimentos que você passou, e caguei com o tempo dos meus vinte e cinco anos – que eu podia ter rendido o triplo, se eu tivesse a cabeça que eu tenho hoje –, e fodi com as pessoas que me amaram, com as coisas que passaram e que eu deixei de fazer.

(silêncio)

1
Entende?

2
Eu não vou ter como saber se eu tô fudendo com alguém que me ama enquanto eu não passar por isso. Não vai dar pra eu me ligar que dá tempo de fazer mais coisa enquanto eu ainda tenho muito tempo pra fazer depois. Entende como não tem como termos o mesmo parâmetro da situação?

1
Eu só queria te avisar que quando você põe o dedo da tomada, você se queima. É isso que ensinamos para um bebê. É isso que devíamos tentar mostrar pra jovens da sua idade. Pra que vocês não percam tempo demais com besteiras.

2
Não quero chegar na sua idade e pensar que eu tive besteiras que eu queria fazer, mas que não deu tempo de fazer porque um velho idiota veio tentar me dar alguma liçãozinha de moral estúpida. Deixe que eu aprenda que faz mal enfiar o dedo na tomada sozinho, na marra. Uma hora ou outra a gente aprende.

(silêncio)

1
Desculpe. Só não diga que eu não avisei. (sai)

2
“Só não diga que eu não avisei”. Aff. Que saco de encheção, pô. Quem é que diz que experiência tem a ver com credibilidade no pensamento?

(ele sai andando e tropeça no próprio pé)

(black-out)


2.       CORDÃO UMBILICAL

1
Não corta! Não corta! Ah, não corta, por favor! Deixa assim. Não corta, não. Não faz isso com a gente. Você tem noção do pecado mortal que está cometendo? Eu devia denunciá-lo para a delegacia da família. Não corta, não. Deixa assim. Talvez seja melhor assim. Todos do que o senhor já cortou devem ter se arrependido até a alma, eu tenho certeza. Assim parece estar tão mais confortante, tão mais próximo, quente e seguro. Eu não preciso comer nada e nem sinto fome, pois ela me alimenta só com o barulho da sua voz. Não corta, não. Deixa assim, vai. Eu acho que nós dois conseguiremos viver bem, assim, grudadinhos. Sem dúvida nenhuma. Eu amo ela, ela me ama mais do que tudo. Não tem por que o senhor nos separar nessa altura do campeonato. O bagulho separado, a coisa fica louca. Eu sei, já ouvi histórias por aí. Eu sei que só perto dela eu terei tudo. Um dia eu só estava querendo chamar a atenção de alguém e aí eu dei um chute bem forte na barriga dela. Bem forte, assim. E aí ela não respondeu. Não respondeu e nem colocou a mão em mim. Aí eu pensei: “Caramba, mãe, custa ver que eu tô chutando a sua barriga porque eu quero que você só lembre que eu tô aqui”. E aí eu chutei mais umas duas vezes. E nada. Ela não me respondia. Aí eu comecei a ficar nervoso, eu comecei a me desesperar. E aí eu pensei comigo: “Puxa vida, acho que essa é a sensação de quem perde a mãe; não tem mais ninguém cem por cento por você; ninguém pra ter que aturar suas crises egocêntricas e interesseiras; ninguém que vai ser obrigada a dar metade da sua comida pra você; ninguém que te teve cem por cento dentro dela.”

(silêncio; ele percebe algo em seu umbigo)

1
O senhor cortou. Eu nem reparei. Isso foi cruel. E eu só tava na metade da minha reclamação.

(black-out)


3.       O MENINO QUE SOBREVIVEU

1
Tia, se você descobrisse que eu tenho super poderes você me trataria diferente?

2
Como assim, menino?

1
Se você descobrisse que eu não sou como as outras crianças, o que é que você faria? Você me trataria mal?

2
Claro que não, moleque. Eu amo você.

1
É que você não é minha mãe, né.

2
E o que é que tem? É como se fosse. Eu sou sua mãe de criação.

1
Mas logicamente você ama mais seu filho que a mim.

(silêncio)

2
O que é que você tem, menino? Você tá triste? Nós amamos você, tá bom?

1
Eu tô um pouco triste, sim. Eu tô, não. Eu sou. Eu sinto como se não tivesse ninguém que fizesse algo de verdade por mim mais. Depois que a minha mãe morreu, as coisas parecem ser mais solitárias.

2
Eu já ouvi essa história antes.

1
Eu ando meio repetitivo, eu sei.

2
Olha, quando sua mãe era viva, eu jurei pra ela que ia fazer de tudo por você. De tudo, tudo.

1
Então se você descobrisse que eu tenho poderes paranormais você não me mandaria morar embaixo da escada, né?

2
Como assim, garoto? Você tá ficando louco? A gente nem tem escada.

1
Eu recebi uma carta. Fui convocado para uma escola de bruxaria. Fica numa ilha em Bertioga, eu teria que me mudar pra lá. Eu fiquei com medo de te contar antes porque eu sei como é difícil assimilar paranormalidade com a realidade de um jeito comum.

2
Eu não tô acreditando nisso. Cadê essa porra dessa carta? (ele a entrega) Você também, meu deus? Eles não se cansam dessa besteira?  Essas coisas não existem moleque! Sua mãe que enfiou essas coisas na sua cabeça, não foi? Eu sei que foi. Eu sabia que essa geração que cresceu com aquele livro encapetado não podia chegar à bons resultados.

1
Que livro?

2
Isso é história de criança, garoto! É ficção! Não existe essas coisas, tá bom? Sua mãe era viciada nessa porra e aí cresceu com aquela porcaria. Graças a deus que na época eu me interessei mais pelo Código da Vinci, que é muito mais inteligente que essa merdinha de contos de fadas. Enfim. Essa escolinha de bruxaria que tem uma cede em Bertioga são um bando de nerds que se juntaram e criaram um centro de fãs daqueles tipo roxo mesmo, onde eles se encontram, bebem chás como os ingleses e discutem possíveis continuações para a história.

1
Mas que história era essa? Ela nunca quis me contar. Ela só dizia que a nossa história era muito importante e devia ser preservada e não divulgada.

2
Que nossa história, menino! Não existe essas porcarias, eu já disse! Eles são um bando de loucos desocupados. Uns nerds desesperados. Isso era um livro velho de ficção. De fantasia.

1
Pois eu também quero ser um louco desocupado. Eles me aceitaram na escola deles, tia! Na escola onde você me enfiou todo mundo ri de mim. Eu quero ir.

2
Pois você não vai. Imagina se o Conselho Tutelar descobre que eu incentivo fantasias pra você. E ainda te deixo ir morar sozinho numa ilha em Bertioga com um monte de viciados em videogames e animes. Não.

1
Mas eu quero ir, tia! Deixa!

2
Eu disse não!

1
Por favor!

2
Eu disse não, caramba!

1
Ah, é?

2
É. Sou eu quem sou sua tutora e você não vai!

1
Eu fujo!

2
Eu chamo a polícia!

1
Deixa eu ir, tia! Por favor!

2
Não, moleque! Eu já disse não!

1
Então agora você vai ver só.

(ele saca uma varinha mágica)

1
Eu não podia fazer esse tipo de coisa antes da maioridade. Mas você não me dá outra alternativa, tia.

2
(de saco cheio) Ai, meu deus do céu.

1
Avada Kedrava!

(um raio verde atinge a tia)

1
Um beijo pra senhora

(black-out)


4.       FILHOS DA FRUTA

1
Ih, lá vem o coitado.

2
É mesmo. Tadinho, né?

1
Mas pediu, não pediu? Era óbvio que não ia dar certo esse tipo de coisa. Todo mundo sabe disso.

2
Eu tenho mais dó das crianças, sabe? Elas não têm culpa.

1
É. Fazer o que? Agora elas que pagam o preço.

2
Olha como rebola. Que coisa feia. Na frente dos filhos, ainda. Precisa dessa bichisse?

1
Alguém devia dar um cacete nele pra ele aprender a andar que nem homem. Quer apostar que os dois pequenos vão virar gay também quando crescerem? E dos afeminados, ainda.

2
Lógico. Vendo um pai assim.

1
O que aconteceu com o outro?

2
Que outro?

1
O marido dele?

2
Morreu, não foi?

1
Não sei. Acho que abandonou eles, não foi? Fugiu com outro cara, acho. Sei lá.

2
Por isso a importância de uma mãe. Dois homens criando duas crianças, só podia dar em merda mesmo.

1
Pois é. Enfim.

2
Por isso que eu também nem quero ter filhos.

1
Ai, eu também não quero, amor. Deus nos livre, né?

2
Deus nos livre.

(eles dão as mãos e vão saindo)

2
Podíamos ir tomar sorvete naquele restaurante heterossexual, o que acha? Aquele dos barbados.

1
Não gosto muito deles. Todo heterossexual que eu conheço é homofóbico, viu.

(black-out)

5.       O MAIOR E PIOR ARREPENDIMENTO DA VIDA DE UMA VIRGEM

(uma senhora de bengala atravessa a cena)

1
Quem me dera um pau na boca. 

(black-out)


6.       TRAGICÔMICO

1
Eu estou tão feliz! Eu sou uma pessoa extremamente feliz!

2
Seu cabelo está oleoso.

1
Eu estou zoado. Acordei zoado. Estou mal.

2
Gosto da grossura do seu lábio.

1
Eu estou tão feliz! Eu sou a pessoa mais feliz do mundo! Tudo é motivo de felicidade.

2
Falta o dinheiro do aluguel.

1
Eu tô fudido. Eu sou um fudido. Mais fudido que eu só uma puta.

2
Você pegou um personagem bacana.

1
Eu sou um fodão! Eu sou o melhor ator dessa companhia! Todo mundo adora o meu trabalho.

2
A agência não precisa de pessoas com o seu perfil no momento.

1
As pessoas não reconhecem o trabalho do artista verdadeiro. Eu sou uma bosta.

2
Você tem futuro no que você faz.

1
Eu sei que o que é meu está guardado! Recebo sinais diariamente da minha importância como artista contemporâneo.

2
Você foi indicado ao prêmio de maior canastrão.

1
Eu sabia que eu não tinha nascido pra isso. Vou tentar virar escritor.

2
A sua mãe veio assistir.

1
Eu sou o cara mais feliz do mundo e todos deveriam me reconhecer assim como ela faz!

2
Três pessoas discordam de você na sua postagem no Facebook.

1
Eu sou um ignorante. Todo mundo me odeia. Ninguém entende o artista incompreendido.

2
Seu ex-namorado está te paquerando.

1
Eu sei que eu sou importante pra alguém nesse mundo! Alguém um dia irá me reconhecer! Eu importo, caralho!

2
Você é um lixo.

1
Eu sou um lixo.

2
Você é um máximo!

1
Eu sou um máximo!

2
Alguém já te desejou a morte.

1
Vou tomar um cianureto ali e já volto.

2
Você é bacaninha.

1
(gargalha contente)

2
Alguém te acha um insuportável.

1
(chora)

2
Essa é a vida de alguém das artes dramáticas.

(black-out)


7.       DRAMA INTERESSEIRO

1
Eu tô tão fudido. Tô tanto precisando de dinheiro.

2
Vi que você postou que foi numa balada sábado.

1
É o mínimo pra tirar esse peso. O peso do stress. Não sei nem como vou pagar meu aluguel esse mês.

2
Você fuma que cigarro?

1
Marlboro.

2
E esse não é o mais caro?

1
É caro. Mas não é o mais. Nem compensa comprar Derby. Nem sei o que eu vou fazer, cara. Minha vida tá de cabeça pra baixo. Não consigo arrumar um emprego decente e que pague bem.

2
Quando foi que você chegou de viagem mesmo?

1
Domingo. Pagamos baratinhos da pousada. Ainda bem, se não sei lá o que seria da minha vida. E pegamos uma promoção porque compramos as passagens com meses de antecedência. Foi bom pra me tirar um pouco das preocupações, sabe.

2
Sério?

1
Sério.

2
Hum.

1
Cara, eu não queria ter que chegar nesse ponto de te pedir, mas é que eu tô desesperado. Minha vida tá caindo por água. Eu não sei mais o que fazer e pra quem recorrer. Você é a única pessoa que gosta de mim e que se importa comigo. Eu morro de vergonha de verdade, mas eu me sinto tão criança cuidando das minhas próprias coisas. E eu não sei fazer. Ninguém da minha família quer me ajudar, ninguém nunca me liga. Eu sou um sozinho nesse mundo, sabe.

2
É você e o Marlboro.

1
Exatamente. Meu único companheiro.

2
Uhum

(silêncio)

2
E de quanto você precisa?

1
Uns oitocentos. Só pra pagar o aluguel.

2

Caralho, oitocentos pau?

1
Eu sei, eu sei. Se você não tiver eu dou um jeito, cara. Não precisa se preocupar comigo, viu. No final das contas, sempre tem um jeito.

(silêncio)

2
Você é bom de fazer drama, hein.

1
Não é drama, cara. No fundo da minha alma existe uma vergonha e um desespero real! Pode parecer sem-vergonhice, mas eu não recebi um manual de instruções confiável lá no início. Não sei como lidar com isso. Não consigo economizar, não consigo me livrar de alguns luxos que me fizeram acreditar ser o mínimo. O que eu faço? Eu só precisava ganhar na loteria pra ficar bem.

2
Dinheiro não é bosta.

1
Eu sei. Mas o que eu posso fazer se fui mal acostumado? E quem me acostumou tá se lixando pra minha vagabundice.

2
E daí eu que pago o pato?

1
Cara, se você não quiser, não tem problema. Eu dou um jeito se você não tiver.

2
Oitocentos reais é muito dinheiro.

1
Eu sei que você ganha uns dez, quinze mil pau por mês, cara. Oitocentos reais não é nada pra quem ganha isso.

(silêncio)

2
Você que pensa.

1
Tudo bem. Se não quer dar não tem problema.

2
Você vai ficar bravo comigo? É que fica dando uma impressão que você tá folgando pra cima de mim, sabe? Você só aparece quando tá precisando de dinheiro.

1
Eu não acredito, cara. Eu não acredito que você tá falando isso pra mim. (chora falsamente) Você acha que eu ia fazer uma coisa dessas, cara? Eu tô desesperado, caramba.

(silêncio)

2
Você é bom. 

1
Eu não sei mais o que eu vou fazer. Acho que vou me jogar do meu prédio. Vão me despejar de lá mesmo.

2
Eu te empresto, cara. Mas eu só tenho quatrocentos reais. A metade. Daí você tenta se virar com o resto.

(silêncio)

2
Pode ser?

1
Meu aluguel é mil e seiscentos, cara. Eu já tinha pedido a metade do que eu tô precisando. Entende agora a minha situação?

2
Cara, é o que eu tenho. Só tenho quatrocentos. Tá aqui na mão, já.

1
Cara, quem anda com quatrocentos reais na carteira tem muito mais que isso no banco. Eu sei que você tem dinheiro, cara. O que vai fazer diferença oitocentos reais na sua vida? Eu vou te pagar depois.

2
Eu já disse. É o que eu tenho. Pode ser?

1
Mas, cara, pelo amor de deus....

2
Quatrocentos, caralho. E não se fala mais nisso. Você se vira com o resto.

(silêncio)

1
Enfia no cu essa merda, então. Não preciso de esmola também. Não dá pra contar com mais ninguém nos dia de hoje. (sai)

(black-out)


8.       TRAVESSEIRO

1
Eu tenho pena de dormir. Tenho pena, oras. Mas depois que eu durmo, também, não há Cristo que me acorde. Mas pra dormir eu demoro horas. Demoro. Posso ter acordado a hora que for, mas eu não consigo desperdiçar minha madrugada dormindo. Infelizmente chega uma hora que o corpo pede descanso e normalmente isso acontece durante boa parte da manhã e depois por algumas horinhas pela parte da tarde. Talvez o sol que me mande uma energia ultra sonolenta. Quando ele se põe, eu me revigoro. E qualquer coisa poderia acontecer durante a noite. Se existisse vida comercial durante a noite eu bateria cartão. Eu praticamente começo o dia lá pelas sete da noite. E termino ele às nove da manhã do dia seguinte. A quantidade de horas dormidas e horas trabalhadas – sem por em questão a importância dos trabalhos – são iguais à de um cidadão comum. Eu trabalho acordada por catorze horas durante a noite, das sete às nove do outro dia, e durmo sete horas durante o dia, das nove às quatro da tarde. Tenho quase que a mesma rotina de um cidadão de bem comum, mas por questões de “importância” – que eu não quero discutir aqui – minha vida é considerada ociosa. É vista por muitos, como uma vida boa cercada de maconheiros, vinho, colchão e laricas com direito a Doritos e Coca-Cola no menu. É Dolly mesmo, gente. E porque não é ruim. (pausa) Minha vida não é de boa só porque você acha que meu trabalho é mesquinharia fútil e fácil de ser executada. Exatamente por isso que minha vida não é de boa. Porque assim como você, mais da metade da população vê o meu trabalho como um hobby que pode ficar fora das discussões e da importância popular; e aí isso fode com tudo. Fode com toda a minha esperança de estabilidade tanto financeira como emocional.  E quando é que eu vou conseguir dormir sem ter que achar que eu sou uma vagabunda que estou indo dormir a hora que todos acordam? Por que os vagabundos não são eles que perdem a madrugada toda cansados do dia anterior? O que adianta ficar acordado e trabalhar por nada e para o nada? A importância do meu trabalho só afeta a mim mesma. Arte, lógico. Bem que a minha mãe dizia. A única coisa que eu faço da vida, que eu fico fazendo durante as madrugadas, é que eu escrevo para um blog, e obviamente isso não me dá renda. Quem diz que o que eu faço não tem valor? Quem vai ser o cara que vai me olhar e me pagar por esse serviço? Eu perco horas e horas sentada escrevendo. Pra quem? Eu trabalho a mesma quantidade de tempo que a maioria dos assalariados, mas não tenho um chefe ou um setor de RH pra decidir o quanto eu mereço aquele mês, pelas minhas ideias, pelas minhas reflexões para o mundo. O que eu faço? Hein? Como é que eu faço pra ganhar dinheiro nessa jornada que eu não posso perder tempo fazendo o que eu não quero? Responda, porra. O que eu faço? Caralho de travesseiro que não entra nessa porra de fronha.

(black-out)

9.       PALAVRAS

1
Gatão, eu queria tanto que você me dissesse aquelas palavras.

2
Que palavras?

1
Aquelas.

2
Quais é aquelas?

1
Ah, você sabe, vai.

2
Não sei.

1
Sabe sim.

2
“Por favor”?

1
Não! Aquelas. Bonitas. Que um tem que falar pro outro. Nuns momentos de carícias.

2
Momentos de carícias?

1
Aqueles momentos. De carícias. Entende o que eu tô querendo dizer, amor?

2
Sexo?

1
Não!

2
Não tô entendendo. Sério.

1
Chiu! Calma. Relaxa. Pra tudo ficar legal, é só você falar aquelas palavrinhas especiais. Que são profundas. Que dão um passo. Entendeu, bonitinho?

2
Obrigado.

1
Não, cacete! “Obrigado”, seu burro? As mais especiais que algum ser humano possa falar pra alguém! Entendeu? São essas que eu quero. “Obrigado” e “Por favor” é o básico!

2
Eu não sei, caramba. Eu só agradeci. Você me chamou de bonitinho.

1
Sabe! Você sabe, sim! Você sabe muito bem! Todo mundo sabe que palavras são essas que num casal normal todo mundo fala pro outro quando tá dando certo.

2
Eu não sei mesmo.

1
Chuta! Vai, chuta! Lógico que você sabe.

2
“Vamo trepar”?

1
Você tá tirando com a minha cara, menino? Especial e romântico, caramba!

2
Então não sei!

1
Sabe. Você sabe. Todo mundo sabe. Todo mundo tem que saber. Nasce sabendo isso!

2
Mas eu não sei!

1
Eu sei que você sabe. É só falar.

2
Eu já falei que eu não sei, menina, que porra!

1
(grita) Você sabe sim! Pode falar! Fala!

(silêncio)
2
Você tem certeza?

1
Absoluta.

2
(suspira) “Eu te amo”.

(silêncio)

1
Eu não acredito.

2
O que foi?

1
Você tá de zoeira comigo? “Eu te amo” já era, imbecil!

2
Então eu não sei!

1
Fala logo a porra das palavras que eu sei que você sabe!

(black-out)

10.       DISNÊI

1
Seu nome?

2
Walter.

1
Nome completo, por favor.

2
Walter Disnêi. Walter com W. Disnêi com chapeuzinho no e.

1
Ípsilon?

2
Não. I mesmo. E o sobrenome é Landia.

1
Seu nome é Walter Disnêi Landia?

2
Exatamente. Meu pai era um maroto.

(silêncio)

1
Ok. CPF?

(black-out)


11.       A PESSOA MAIS ZOADA DO MUNDO

1
Sabe aqueles dias que parece que passaram com um trator em cima de você?

2
Como assim?

1
Aqueles dias que você acorda a pessoa mais zoada do mundo, que parece que mais feio que você só dois de você, sabe? Aqueles dias que suas rugas se destacam, que uma espinha surgiu na bunda, sabe? Que as contas estão explodindo a cabeça, que as relações desgastadas já não fazem mais sentido, que a vida já não faz mais sentido, sabe? Manja desses dias?

2
Ah, já sei. Você vai tirar com a minha cara.

1
O que?

2
Eu vou falar: “Imagina, cara. Você não parece ser a pessoa mais zoada do mundo. Relaxa que tudo dá certo. E você não é feio”. E aí você vai dizer: “Mas eu estava falando de você. Você é a pessoa mais zoada desse mundo”. Eu não caio nessa, não, bonitão.

1
Não, cara. Eu tô com depressão. Eu sou o zoado, mesmo. (surge com um revólver e atira na própria cabeça inusitadamente)

(black-out)

12.       JUSTICEIROS EM AÇÃO

CORO
(tosco)
A segurança no país não está legal
Você é assaltado, toma um tiro e tem que achar normal
Tem quem reage feito um tonto, com o pau na mão
Acreditamos que justiça é matar ladrão
Você jura de pé junto que é bom cidadão
Mas não sei.
Nem tem como saber

Você daria um murro em um marginal
Só por ser vagabundo não vale um real
Prender num poste pelado é a solução
Parece que a justiça pede eleição

Somos justiceiros social
Trazemos paz e harmonia para o bom cidadão
Saímos nas ruas à caçar
Bandido, tome cuidado, não viemos te adotar

Pois assim
As crianças descobrem como é que se humilha o pobre menor que você.

Humilhadores do futuro, eles serão
Humilhadores do futuro, eles serão
Justiceiros do futuro, que salva o irmão
E enfim a violência vai acabar

(eles são super-heróis mascarados)

1
Meu tio tomou um tiro na cabeça ontem.

2
O meu tomou um tiro na perna.

1
O que foi que eu fiz? Fui lá, peguei o filho da puta, e sapequei ele de tiro depois que enfiei um pau bem enfiado no cu do lazarento. E aí o que foi que aconteceu? O filho do filho da puta, veio querer me matar, aí eu tive que matar o filho dele, também. E daí depois veio a comunidade inteira. Sabe o que eu fiz? Matei a comunidade inteira também. Um por um. Fique escondido numa janela de um prédio e sapequei a molecada de tiro.

3
Então você mereceu a medalha.

1
Lógico.

4
Eu nunca fui assaltado nem nada, mas eu tenho uma raiva desses vagabundos que fumam maconha, cara. Eu não consigo entender. Decidi entrar pra Liga pra exterminar com essa raça.

3
Tem razão.

2
Eu entrei porque eu não aguento essas pessoas que andam com a música alta no ônibus. Quero fazer justiça. Tá escrito na porra do ônibus que não pode, meu!

1
Pra mim é assim, saiu fora da lei tem que matar. Só assim nossas crianças conviverão com gente de bem, porque no final só vai sobrar quem é bom de verdade.

3
Lógico.

2
Esses dias eu tive que cortar um braço de um marginal, você acredita?

4
Por que?

2
Eu não concordo com gente que é destro, que escreve com a mão direita, mas bate punheta com a mão esquerda, entende? Eu não consigo entender esse tipo de coisa.

4
O que?

3
Cara, eu escrevo com a mão direita, mas bato punheta com a esquerda.

1
Nada a ver isso.

2
Ah. Você? Mentira.

3
Sério, cara. Eu prefiro.

2
Mas você é meu amigo, cara!

3
E daí? O que é que tem? Não tem nada demais isso.

2
Não, cara. Eu não suporto isso. Não dá pra entender isso.

3
Ah, vai se fuder. Que cara louco.

2
Cara, a gente não pode mais ser amigos. Não podemos fazer parte da mesma Liga. Nós pensamos totalmente diferentes.

4
Ei, espere um pouco. Eu não suporto gente que termina a amizade por bobeira. Já matei doze colegas que se diziam amigos.

2
Eu não posso evitar! Eu não suporto gente saindo fora da norma! O que é que eu vou fazer?

4
Eu vou ter que te matar, cara. (retira uma arma grande de uma bolsa)

2
Não sem antes eu cortar o braço dele fora!

3
O que?

1
Ei, espera! Essa arma aí é contrabandeada, é? Tá com a numeração raspada. Eu não aguento corrupção e contrabando, cara. Eu sou especialista número um em acabar com essa raça.

4
Eu roubei de um pedófilo.

1
Ah, então você é ladrão também!

4
Cara, você está me pré julgando. Não é nada disso.

3
Ei, espera! Se tem uma coisa que eu odeio é gente preconceituosa.

(eles se ameaçam cada um com um tipo de armamento)

TODOS
Melhor a gente tentar carreira solo.

(eles saem em guarda, cada um para um lado)

(black-out)





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