O MAIS VELHO MORA SÓ

O MAIS VELHO MORA SÓ

PERSONAGENS
Luiz Paulo; 25 anos
Marina; 16 anos
Dona Edna; 74 anos
Tio Ju, 55 anos

CENA 1

(Dona Edna em um foco)

DONA EDNA
No meu tempo, não tinha esses negócios. Você acha que a gente tinha medo de sair na rua a noite? Tinha! Mas era com medo de saci-pererê, mula sem cabeça, espírito, tudo com bastante inocência. Hoje em dia eu já não sei onde vamos parar. Você vê de um lado filho matando pai, do outro pai matando filho. O mundo está perdido, já dizia a minha mãe. E dizia a mãe dela pra ela. Se a gente não é esperto e não ensina, nossa prole se torna nossos inimigos. O sangue e o nome foram se esvaindo da nossa história. Antigamente não tinha esses negócios. O nome era o que se tinha de mais importante nessa vida, a honra. Não existia esse negócio de responder pai e mãe, não existia esse negócio de fugitivo das responsabilidades. Antigamente era milho no joelho se falasse um A. Hoje em dia não é assim. A criançada é a dona da casa. Os filhos são quem mandam até nas finanças de uma família. Tudo isso é falta de deus.

(um foco destaca Luiz Paulo)

LUIZ
Deus é o meu cu! – eu falava. Eu tentei bater de frente na vida toda nas picuinhas que tentaram enfiar na minha cabeça. Desde pequeno fui tentando ser diferente, simplesmente porque eu era diferente. Eu era meio afeminado quando criança, e fui zoado bastante na escola e em casa também. Realmente no fim das contas eles estavam certo porque eu descobri que era homossexualidade mesmo. O que eu tinha naquela época era mesmo homossexualidade, eles predisseram. Creio ter perdido os trejeitos por medo de sofrer mais, ou por vergonha. Mas creio que se eu tivesse tido algum tipo de suporte teria sido mais fácil, menos doloroso.

DONA EDNA
Não adianta falar com gente cabeça dura. Ele morre de depressão com as tais “crises existenciais” que ele diz que tem. E não quer voltar pra casa. Dinheiro que é bom, ele pede.

LUIZ
É muito ruim e desprezível não ter apreço pela própria família?

(silêncio)

DONA EDNA
Na minha cara ele não tem coragem de dizer isso. Comigo é: “Tem como me arrumar cem reais, vó? Tem como pagar a conta de telefone pra mim esse mês?” O apreço financeiro ele não consegue largar.

LUIZ
Do jeito que ela fala, parece que eu sou um vagabundo.

DONA EDNA
Do jeito que eu precisava falar isso daqui ia ficar parecendo aqueles programas de barraco familiar.

LUIZ
Eu só decidi ficar longe pra não piorar a relação. Quanto mais eu fico perto, menos eu gosto das opiniões e das atitudes. Quando eu fico longe, visitar de vez em quando é divertido e prazeroso.

DONA EDNA
No meu tempo não tinha isso. As grandes histórias são pela luta da família. A família é a base e a estrutura para tudo nessa vida.

LUIZ
Mas é difícil pra mim quando eu me sinto avante no tempo nos pensamentos sociais e científicos.

DONA EDNA
O que?

LUIZ
Eu não aguento mais as lendas pra criancinha dormir sendo usadas na vida real, pra propagação da intolerância e atraso.

DONA EDNA
No meu tempo...

LUIZ
(se irrita) No seu tempo, na sua vida, você teve pai e mãe presentes até a vida adulta. Você teve a família exemplar católica e viveu nessa cidadezinha católica e bem de vida. Não tinha o que se questionar. Eu não tive culpa de sua filha ter ido pra outro caminho do que você queria e ter me trazido junto e depois me deixado sozinho. Eu não tenho culpa!

DONA EDNA
A culpa disso é minha, eu sei. Desde pequena sua mãe era diferente.

LUIZ
Como eu. Assim como eu era.

DONA EDNA
Mas você vai seguir os exemplos dela? Você viu o que acontece com quem não segue o caminho de deus.

LUIZ
Para, vó. Por favor.

DONA EDNA
Mas é verdade. (conta) A mãe dele começou a sair de casa aos dezesseis. Aí encheu a cara, usou um monte de drogas, tinha uns amigos maloqueiros, e não foi por falta de falar! Eu fui buscar ela um trilhão de vezes, desmaiada, vomitada. Fugiu de casa, voltou, abortou uma criança antes de ter ele, e não contente, contraiu o vírus do HIV com dezenove e teve ele com vinte.

LUIZ
Morreu com trinta e três. Eu nasci sem.

DONA EDNA
E o pai dele, o pai dele é um crianção igual ele.

LUIZ
A gente não se fala faz uns quatro anos.

DONA EDNA
Deixou ele e uma menina. Depois de velha tive que ser pai e mãe. Sobrou pra quem? Sobrou pra mim, sobrou pra vó.

LUIZ
Ninguém obrigou ninguém.

(silêncio)

DONA EDNA
Tudo o que eu fiz foi de coração, Luiz. Eu te ajudo com o que eu posso.

LUIZ
Não quero parecer um ingrato. Eu seria mais próximo se vocês parassem de nos atrasar.

(silêncio)

DONA EDNA
Você quer que eu pare de ir na igreja? Vai tirando seu cavalinho da chuva. Você só fala besteira. Você tá dando importância pra uma coisa sem sentido, Luiz. Eu sou bem mais velha que você...

LUIZ
Vocês tão atrasando a vida da Marina também. A Marina vai sofrer as consequências das dúvidas existenciais. São outros tempos, vó.

DONA EDNA
Você quer que ela vá pelo mesmo caminho que você e sua mãe, Luiz? Você quer que eu largue ela no mundo? Eu não quero isso pra ela. Eu não quero isso pra ela, mas nem morta!

LUIZ
Você não é dona dela.

DONA EDNA
Até ela fazer dezoito sou sim! Foi igual com você! Vai ser igualzinho. Se depois ela quiser virar uma puta, que vire! Mas meu trabalho eu sei que eu fiz, e eu vou fazer.

LUIZ
Eu não sou um puto, vó. E se fosse também não é problema seu.

DONA EDNA
Não interessa! Você pare de colocar asneira na cabeça dela, ouviu? Pode parar com isso. Ela gosta de estudar, gosta de ir na igreja. Você não venha com suas porcarias, ouviu bem?

LUIZ
Você pode?

DONA EDNA
O que?

LUIZ
Você pode falar as suas asneiras pra ela, né? Quem será que tá certo?

(Dona Edna irritada dá um tapa na boca de Luiz)

LUIZ
Nós temos os mesmos direitos sanguíneos de educa-la.

DONA EDNA
Venha pagar as contas dela e lavar a roupa dela e levar ela no médico, então. E pague as suas contas sozinhos primeiro antes de vir falar. Eu já tô velha, Luiz. Pelo amor de deus. Eu já tô cansada pra ter que aguentar isso.

LUIZ
Eu também tô cansado dessa prisão que vocês fazem nessa família. Que não é nem um pouco tradicional.

DONA EDNA
Você não teve tempo de ficar cansado ainda, Luiz Paulo! Você não sabe de nada!

(silêncio)

LUIZ
Só se lembre, vó: Se a Marina, ou o Rafa, o Leo e a Pri, se algum deles for diferente igual eu sou, imagine só como tá sendo sofrido ter que aguentar as piadinhas do Tio Ju. A igreja familiar de vocês vai excluir o diferente, igual eu me senti excluído e sozinho.

(silêncio)

DONA EDNA
Você foi embora porque você quis. Ninguém mandou você embora.

LUIZ
Não, talvez eu fui embora porque ninguém mais é minha mãe que tenha a obrigação de me entender. Vocês não tem obrigação maternal de me ajudar, na verdade.

DONA EDNA
Eu sou sua vó e fui mais sua mãe do que sua mãe, menino!

LUIZ
Não. Você foi minha tutora preocupada, vó. Eu fui o peso do desvio anticristão da minha mãe, pra você.

(silêncio)

DONA EDNA
Eu não sou perfeita, ninguém é perfeito. Eu fiz o que pode.

LUIZ
Agradeço. Desculpe a minha ingratidão. Mas não consigo ficar perto ouvindo você falar pra Marina que ela vai pro inferno se ela usar aquela blusinha. Eu só tenho que ficar longe disso.

(silêncio)

LUIZ
Não consigo me simpatizar, vó. Desculpe.

DONA EDNA
Cada um é cada um.

LUIZ
Eu volto pra visitar você.

DONA EDNA
Deixe o número da conta pra eu depositar o dinheiro. Só tenho cem reais, ouviu? Mês que vem talvez eu consiga mais.

LUIZ
Tudo bem. Obrigado. Vou tentar não ter que precisar no próximo mês. Você sabe como é. Essa profissão...

DONA EDNA
Sei.

LUIZ
Bom, até mais.

DONA EDNA
Juízo.

(Luiz sai; Dona Edna fica sozinha pensativa por algum tempo; se cansa do pensamento e senta rezar um terço)

(black-out)


CENA 2

(Marina está sentada em sua cama com um notebook; ela conversa com várias pessoas ao mesmo tempo, empolgada, falando sozinha em alguns momentos; ela posiciona a Webcam)

MARINA
Tá me vendo? Tá ouvindo, lobo-mau? Ó, eu vou mostrar bem rapidinho, tá bom? Depois a gente mostra o rosto.

(ela levanta a blusa e mostra os seios para a câmera)

MARINA
Viu? Tá vendo? Tá conseguindo ver? (lê o que a pessoa responde) Não, isso não, só os peitos, por enquanto. (lê de novo) Porque sim, ué. Não vou mostrar minha periquita pra você. Agora é sua vez. Vai. Já mostrei os peitos agora deixa eu ver quem você é. (ela lê) Tá bom, então. Os dois juntos. Um, dois, três e... (ela levanta a câmera pra mostrar o rosto) Vai, agora você! Você tá roubando! (a pessoa desliga) Eita, fim da conexão. Que safado folgado! Eu não acredito.

DONA EDNA
(em off) Marina, vem jantar!

MARINA
Já vou, vó! (para a plateia) Sexo com menor de idade não é pedofilia quando existe consenso. Uma menina lá do colégio acusou um primo dela de abuso, ano passado. Todo mundo sabe que ela não é santa. O menino é super bonito, o primo dela, tem vinte e dois anos. E ela já deu pra escola inteira. Até parece que foi abuso. Conheço bem essas garotinhas, sei bem como funciona a cabecinha.

DONA EDNA
(em off) Vem logo, Marina, caramba!

MARINA
Já vou! Calma! (continua) Eu, por exemplo, prefiro homens mais velhos. Os garotos da minha idade são um pé no saco. Tenho culpa de ter preferência pelas atitudes e não pela aparência?

(Dona Edna entra enxugando louça)

DONA EDNA
Marina, eu não vou falar duas vezes! Você quer matar sua vó?

MARINA
Para de drama, vó. Eu já tô indo. Tô terminando de fazer um negócio.

DONA EDNA
Que negócio? Vai logo! Tá esfriando. Eu tô falando que esse computador é coisa do capeta.

(ela sai)

MARINA
Minha vó também é um pé no saco, às vezes.

DONA EDNA
(em off) Eu ouvi, sua peste!

MARINA
Tenho culpa de os hormônios me atiçarem para o mundo cruel? Tenho culpa de ser curiosa com as coisas que me mandaram ficar longe? Pra que tanto medo dessas coisas? É isso que eu quero descobrir, mais do que tudo nessa vida. E ninguém vai me impedir.

(Tio Ju surge em um foco)

TIO JU
Até que faça dezoito, você pertence à sua vó e é responsabilidade da família.

MARINA
Oi, tio! Que você tava fazendo aí no escurinho?

TIO JU
A pergunta é, o que você está fazendo que não ouviu sua vó chamar? Você é surda?

MARINA
Ai, meu santo! Eu já tô indo! A fome é minha, poxa.

TIO JU
Até você fazer dezoito anos, Marina, você obedece quem manda. Ouve os conselhos de quem põe comida no prato.

MARINA
Se conselho fosse bom...

TIO JU
Não tem esse negócio de se conselho fosse bom ou ruim. Você lava sua roupa? Paga suas contas? Você tem vida de madame, queridinha. Tem tudo o que precisa. Trate de obedecer a sua vó.

MARINA
Até parece que você não foi adolescente um dia.

TIO JU
No meu tempo não tinha esse negócio. Você acha que tinha esse negócio? Veja se eu fui um desandado igual sua mãe. Igual seu irmão. E o que eu conquistei? Hã? O que? Me fala.

(silêncio)

TIO JU
Eu não quero ter que colocar sua mãe no meio das coisas, Marina, mas você não me dá outra escolha.

MARINA
Tudo porque eu tô demorando pra ir jantar.

TIO JU
Não foi por isso que eu vim. Você acha que é por isso? Você está muito enganada, Marina! Eu vim porque sua vó está preocupada com você. Ela me pediu pra vir conversar com você.

MARINA
Por que? Porque eu disse que vou visitar meu irmão nas férias, é isso? Ele também é parte da família mesmo vocês não gostando dele. E eu não vou começar a fumar maconha só porque ele fuma.

TIO JU
Quem falou que eu não gosto do seu irmão, Marina? Todo mundo ama ele. Ele quem quis ir embora.

MARINA
Em alguns momentos eu até entendo os motivos. É muita encheção, sabe? É muita encheção todo dia.

(silêncio)

TIO JU
Você é nova ainda, vai entender que é pro seu bem.

MARINA
Ai, cara, tio, eu odeio quando falam que eu sou nova, meu. Isso eu já sei! Não precisa ficar repetindo toda vez.

TIO JU
Então preste atenção nessa vida e não vá cair nas desgraças que sua mãe e seu irmão caíram.

MARINA
Eu pareço algum tipo de desgraça? Porque, se você não sabe, eu fui um dos acontecimentos que a minha mãe fez aqui na Terra, sabia? Nem tudo foi desgraça na vida dela, eu acho, eu penso. Vocês amam dizer que a minha mãe foi uma desgraçada! Não dá pra parar?

TIO JU
E cadê ela pra opinar nisso, né? O que será que aconteceu com a agraciada? Onde ela tá agora?

(silêncio)

MARINA
Você nem parece que foi irmão dela. Já terminou o conselho?

TIO JU
Eu tô preocupado com você, Marina.

MARINA
Ai, tio, vamo jantar, vai.

TIO JU
Você não sabe o que a sua vó passou, Marina. O trabalho que a sua mãe deu de ter que ir buscar ela na biqueira. Não era você quem ia buscar ela, era? Sua vó não merece isso mais uma vez.

MARINA
Isso o que, tio? Você tá viajando. Eu não uso droga ainda, caramba!

TIO JU
Ainda? Ainda?!

MARINA
Foi modo de dizer! Puxa vida, tio!

TIO JU
Você tá aprontando que eu sei, não adianta esconder de mim. Você pode enganar sua vó, suas tias, mas eu você não engana. E se eu der uma olhada nesse computador aí?

MARINA
Tô aprontando o quê, tio? Você não sabe nada da minha vida! Para de tentar ser meu pai.

TIO JU
Falando nele, cadê também, né? Cadê o bonito? O bonito não quer saber. Come a sua mãe e depois larga vocês dois pro resto da família criar.

MARINA
Dá pra parar de fazer parecer que eu sou um peso nessa casa? Eu não pedi pra vocês não me mandarem pra um orfanato. Largassem eu e o Luiz lá que talvez a gente iria se virar melhor sem essa ladainha.

TIO JU
Você devia agradecer, sua ingrata! Você preferiria ir pra um orfanato? Você pensa que é igual Chiquititas, sua tonta?

MARINA
Tio, vamo jantar, vai. Eu já entendi. Quando eu fizer dezoito vocês vão se livrar de mim, não se preocupe.

TIO JU
Não é isso que a gente quer, Marina. Você acha que a gente não gosta de vocês. Não é isso.

MARINA
Quem gosta não briga.

TIO JU
Errado! Quem gosta briga pra ajudar! Eu falo porque eu quero seu bem.

MARINA
Tá bom, tio. Tá bom. Eu vou obedecer a vó. Eu vou na missa certinho todo domingo. Ela reclama porque ela é uma reclamona. Eu tô até ajudando ela lavar a louça, já.

TIO JU
Você tem vida de dondoca e não sabe, Marina. O Luiz é outro que tá longe, mas não sai da lista de gastos da família.

MARINA
Eu acho que tem que ajudar ele mesmo. A gente come bem aqui, não tem porque não ajudar.

TIO JU
Ele vai se acomodar. Nada melhor que a independência financeira. Anote isso.

MARINA
É, eu também buscaria a independência pessoal primeiro. Do jeito que tá. Se vocês puderem me ajudar financeiramente, bom. Se não puderem, bom também, eu acho que eu me viro. Anote isso também.

TIO JU
(ri tirando sarro) Vocês são muito cabeça dura.

MARINA
Vocês também são.

TIO JU
Vocês são crianças.

MARINA
E vocês também são! Todo mundo criança!

TIO JU
Vocês, jovens, pensam ser os donos da razão.

MARINA
Pff, olha quem fala! Eu nunca vi o Luiz explicando de onde a gente veio e pra onde a gente vai com toda certeza do mundo. Será que ele não sabe porque é burro, ou porque a resposta pra nossa existência é muito mais complicado que a sua teoria que já está dada como verdade absoluta? Sei lá!

(silêncio)

TIO JU
Eu não entendi nada do que você falou. Sua vó mandou eu dar uma olhada no seu notebook. Ver o histórico e com quem você anda conversando.

MARINA
O que? Mas nem ferrando! Meu notebook é pessoal e intransferível! (ela abraça o notebook) Você não vai colocar a mão nele! (chama) Vó! Vó! Pode falar pro Tio Ju que ele não vai mexer no meu notebook! Vó! Pode falar!

TIO JU
Tem coisa pra esconder, Marina?

MARINA
Não interessa! Você não vai olhar, tio! Eu já não sou nenhuma criancinha! Pode parar de graça!

TIO JU
Enquanto você estiver morando embaixo desse teto, sendo alimentada por nós...

MARINA
Pois se esse é o problema, eu saio agora! Eu faço as minhas malas agora. (ela começa a empacotar de mentirinha)

TIO JU
E vai pra onde? Vai pra onde?

MARINA
Não interessa! Vou pro inferno! Eu não tô nem aí!

(Dona Edna entra)

DONA EDNA
O que foi? O que tá acontecendo?

MARINA
Vó, fala pra ele parar. Ele quer olhar minhas coisas do Facebook. É pessoal as minhas coisas, vó.

DONA EDNA
Tem gente safada nessa internet, Marina.

MARINA
Mas eu só converso com meus amigos, vó! Eu juro!

TIO JU
Mentira! Você pensa que eu não sei, mas eu sei, Marina. Eu sei o que você anda fazendo. Os sites que você anda entrando.

MARINA
O que? Você não sabe de nada, seu idiota!

DONA EDNA
Não fale assim se não eu dou um tapão na sua boca, Marina!

MARINA
Vocês me tratam como se eu fosse criança! Não é atoa que as pessoas fogem de vocês! A minha mãe teve que morrer pra conseguir se ver livre!

(Dona Edna dá um tapa na boca dela)

MARINA
Ai!

TIO JU
Tomou.

DONA EDNA

Dê o computador pra ele. Anda.

MARINA
Mas vó...

DONA EDNA
Eu não quero saber! Dá logo!

(silêncio; Marina pensa por alguns segundos; antes de entregar ao tio, ela arremessa o aparelho contra a parede)

DONA EDNA
Marina!

TIO JU
É louca! Essa menina é maluca! Olhe o que você fez!

MARINA
Vocês querem acabar com a minha vida.

(Marina sai chorando)

DONA EDNA
Marina! Marina, volte aqui! (segue a menina) Marina!

(silêncio; Tio Ju junta as peças do notebook)

TIO JU
No meu tempo não tinha esses negócios...

(black-out)


CENA 3

(Luiz arruma um colchão na sala da sua casa; coloca lençol e arruma algumas coisas)

LUIZ
(canta) “Tem hora que a gente se pergunta
Por que é que não se junta tudo numa coisa só?
Tem hora que a gente se pergunta
Por que é que não se junta tudo numa coisa só?
Mãe, primo, pai, avô, padrinho
Zelador, juiz, vizinho
Tio, cunhado, irmão, avó...”

(tocam a campainha)

LUIZ
Opa! (abre a porta e Marina entra) Oi, lindona!

MARINA
Oi, Lu.

LUIZ
Que surpresa deliciosa! O que aconteceu?

MARINA
Eu maiei meu notebook na parede.

LUIZ
Caralho! Por que, sua louca?

MARINA
Eu não aguento mais aquele povo, Lu. Eles querem acabar com a minha vida.

(silêncio)

LUIZ
Eu nem vou falar que eu te entendo. Mas você pode ficar aqui o quanto quiser!

MARINA
Valeu. A vó vai mandar dinheiro.

LUIZ
Não vamos nos preocupar com isso! Seria bom se a gente abrisse um vinho pra comemorar.

MARINA
Comemorar. Comemorar o que?

LUIZ
A sua visita! Você já deu o seu primeiro porre, Ma? Não seria uma má ideia fazer isso com seu irmão, né?

MARINA
É permitido isso aqui?

LUIZ
Aqui pode tudo, bonitona! Sem segredos e pudor, pelo amor de deus! Somos irmãos! Corre o mesmo sangue aqui dentro.

(silêncio; Luiz prepara a dose)

LUIZ
Prefere suave?

MARINA
Tem uma coisa diferente.

LUIZ
O que?

MARINA
Tem uma diferença no nosso sangue. No meu sangue tem um negócio que no seu não tem.

(silêncio; Luiz, um pouco constrangido, entrega o copo para Marina)

LUIZ
Não vamos falar sobre isso agora, tá bom? Prefiro saber como anda os namoricos da vida. Já beijou uns gatinhos, né?

MARINA
Sério?

LUIZ
Lógico! Eu sou seu irmão, poxa. Pode me contar. E eu sou gay, é outro tipo de parente. Fala.

MARINA
Uns dois só. (ri)

LUIZ
Oi?

MARINA
Já beijei uns dois meninos.

LUIZ
Sei. Dois. Aham. Tim-tim. (eles brindam)

MARINA
É verdade.

LUIZ
E camisinha? Tem na bolsa?

MARINA
Lógico que não! Para com isso, Luiz! Pelo amor de deus.

LUIZ
Ah, qual é? Dezesseis anos nas costas e vai me dizer que você não pensa nisso.

MARINA
Lógico que eu penso. Mas eu não pratico ainda, não tem porque andar com camisinha na bolsa.

LUIZ
Aham. Você vai lembrar de mim quando você precisar.

MARINA
Não vou precisar, por enquanto. Acredite. Essa é minha cama?

LUIZ
É. Maconha você já fumou!

MARINA
O que?

LUIZ
Aposto que já fumou! Não fumou? Não minta pra mim.

MARINA
Vai, tá bom. Já fumei. Uma vez só!

LUIZ
O que?

MARINA
Foi só uma vez. Não curti.

LUIZ
(surpreso) Não acredito!

MARINA
O que?

LUIZ
Não acredito que você já fumou um baseado sem eu saber!

MARINA
O que tem?

LUIZ
Vou contar pra vó.

MARINA
Não vai não.

LUIZ
Vou sim.

MARINA
Não vai. Eu sei que não vai.

LUIZ
Você vai fumar um comigo, então, né? Eu não acredito que você já fumou e não foi comigo.

MARINA
Você tá louco, Luiz? Você sabe que se alguém ficar sabendo disso, que você tá oferecendo drogas pra uma menor de idade você pode ir pra cadeia? Você sabia disso?

LUIZ
E quem falou isso pra você?

MARINA
Porque minha primeira vez foi com um cara maior de idade e ele me disse isso.

LUIZ
Primeira vez? Primeira vez de que?

MARINA
Do baseado. Da maconha. Não disso! Você só pensa besteira!

LUIZ
Sei. Aham.

MARINA
Você sabe que eu ainda não transei. Eu vou contar pra você, de tanto que você me enche o saco, contente?

LUIZ
Eu encho o saco porque eu me importo, bobinha.  

MARINA
A vó fala a mesma coisa. Todo mundo fala a mesma coisa.

LUIZ
Pois é.  Foi mal.

MARINA
Mas...

LUIZ
Mas o que?

MARINA
Com você parece diferente. Não sei o que é.

(silêncio; Luiz quebra o clima)

LUIZ
Bom, enfim, ninguém é perfeito, né? A vó tá cansada, coitada. Tenha a paciência que eu não tive.

MARINA
É, eu sei.

LUIZ
Depois dos filhos ainda teve que criar os netos. Não deve ser fácil.

MARINA
Eu sei.

(silêncio)

LUIZ
E a escola?

MARINA
Vai indo. Acho que vou prestar fisioterapia ano que vem.

LUIZ
Boa, legal.

MARINA
Eu gosto de mexer com gente.

LUIZ
Eu também. Legal. Que bom.

(silêncio)

MARINA
Viu, acho que eu vou ficar aqui só essa semana, tá bom? Eu tenho as minhas coisas lá em casa também, não dá pra largar assim do nada. Só até eles esfriarem a cabeça, tudo bem?

LUIZ
Lógico. Fique à vontade. É bom pra eles sentirem o gostinho de te perder por um tempo. E vai ser ótimo!

MARINA
Eu sei. Eu espero que eles realmente se importem, né?

LUIZ
Tento acreditar nisso faz tempo. Sorte pra nós.

(silêncio)

LUIZ
É, “família é assunto complicado”, colega.

MARINA
“Quem não gosta mora ao lado”.

LUIZ
“E o mais velho mora só”.

(eles riem e se abraçam)

LUIZ
Eu tenho saudade. De você é que eu mais tenho saudade.

MARINA
Eu também tenho. Mas eu entendo você não querer aparecer.

(silêncio; um foco destaca o rosto de Luiz na escuridão)

LUIZ
É muito ruim e desprezível não ter apreço pela própria família? – eu me perguntei uma vez. Mas acho que o sangue pouco conta nessa hora de se separar e buscar outras famílias, outras histórias, outros caminhos e carinhos. Conta mais quando um parente fica do seu lado, seja qual for o problema; de resto, o laço sanguíneo é a menor das minhas preocupações. Todos temos amigos que são mais parentes que os próprios parentes. Gosto de pensar em quem gosta de pensar em mim, que me entenda como eu for ou quiser ser. Se não há carinho em casa é o mundo quem se sentirá obrigado a nos dar carinho; não dá pra se segurar dessa safadeza de amores. Eu sou livre pra massagem que o planeta nos oferece, e isso me faz ser irmão de todo e qualquer ser vivo dos quatro cantos desse planeta redondo! Não tem diferença no sangue, o sangue é vermelho e não há tempo pra nos atentar à detalhes. Já não há mais tempo pra nos atentarmos aos detalhes, meu caro.

(as luzes voltam ao normal)

LUIZ
Ai, ai. Enfim.

MARINA
Eu trouxe o Playstation.

LUIZ
Oba!

(black-out)


CENA 4

(Tio Ju entra em um foco)

TIO JU
Quando eu era moleque o preço do suor tinha outro valor. Eu comecei a carpir o quintal e alimentar os bichos – meu pai sempre teve galinheiro – com seis anos de idade, eu comecei. E não era de brincadeirinha, não. Todo mundo tinha as suas responsabilidade no contínuo da família. Eu e meus irmãos, todo mundo, menos a mais nova. A mais nova nasceu em outra época televisiva, minha gente, era de se esperar que tudo isso fosse trazer angústia pra nossas casas. Na mesma época meu pai largou a minha mãe, no finzinho dos anos oitenta, pra ajudar, comecinho dos anos noventa. Eu, o Chico e a Cida, casamos, fizemos a nossa família, nossa carreira. Mas ficou a última tratando de dar trabalho pra minha mãe depois de velha. Aí fez o que fez da vida, embuchou e morreu. Com o moleque com treze anos e a pequena com quatro. E só depois ainda que a gente descobre que a menina ainda contraiu a bosta daquela doença da mãe, e ela nunca tinha contado pra ninguém. (pausa) Ninguém é perfeito, mas a gente tem feito o que pode. Esse Luiz encafifou com a ideia de que é a religião que nos atrapalha e fez essa birra de ir embora, de deixar claro que não gosta de nós, tudo pra que a gente “pense melhor” – como ele costuma dizer. Eu não tenho preconceito nenhum, eu tenho vários conhecidos que são gays assumidos. Vocês acham que eu iria desprezar qualquer parente só por ele ser gay? Ele que encanou com essa ideia de que somos todos homofóbicos. Agora, que está escrito na bíblia, isso ninguém pode negar. Eu sigo o que eu aprendi da minha mãe e do meu pai.

(Luiz e Marina entram entediados; Dona Edna entra cantando atrás e os coloca um do lado do outro, calmamente, os quatro de mãos dadas; Tio Ju respeita a mãe, Luiz e Marina desprezam o ritual comicamente; Dona Edna arruma uma santa e velas enquanto canta)

DONA EDNA
(canta)
“Ave Maria
Mãe abençoada, virgem imaculada
És santa semente do amor!
Maria, mãe de Deus
És cheia de graça!
Santo é o fruto do teu ventre Jesus!
Ave Maria, Ave Maria, Maria”

(silêncio; Dona Edna e Tio Ju permanecem de olhos fechados; Luiz e Marina se seguram pra não rir)

DONA EDNA
Quem zomba por de trás de deus só traz desgraça pra vida.

LUIZ
Tem como zombar por de trás de deus? Ele não é onipresente?

TIO JU
Cale a boca, Luiz!

LUIZ
Cale a boca você.

MARINA
Vai, chega, gente. Vamo terminar logo com isso.

LUIZ
Vocês falam mal de centro de macumba, mas isso daqui é o que? Não tem diferença no ritual, galera.

MARINA
Luiz, pare. Vamo terminar logo.

LUIZ
Talvez ainda num centro de macumba não tenha tanta porcaria escondida.

MARINA
Luiz!

TIO JU
(irritadíssimo) Você é um moleque! Cale essa sua boca! Eu arrebento os seus dentes se você der mais um A.

LUIZ
Eu não tenho medo de você, tiozão.

(Tio Ju avança pra bater em Luiz, Marina tenta impedir)

DONA EDNA
Parem vocês todos! Parem! Juninho!

(Tio Ju obedece)

TIO JU
Você é um ingrato, moleque! Tudo o que a gente já fez por você! Se eu for colocar no papel vou escrever um livro.

LUIZ
Enfie o seu dinheiro no cu.

DONA EDNA
Luiz Paulo! O que é isso? Chega! Respeito! Eu quero respeito aqui nessa casa!

(silêncio)

DONA EDNA
Eu já não tenho mais idade pra isso, pelo amor de deus.

LUIZ
Logo que eu puder, eu saio de casa.

TIO JU
Ah, é? E vai pra onde? Vai fazer o que da vida?

DONA EDNA
Eu falei chega, caramba! Vocês são surdos?

LUIZ
Não interessa o que eu vou fazer. Só que dentro dessa casa eu não posso ser quem eu sou. (ele se ajoelha na frente da santa fazendo cena) Eu sou gay, minha nossa senhora. Sou viado. Eu não consigo gostar de raparigas. Eu gosto de homem. Bruto. Gosto de homens, mais velhos, formados. Não consigo honrar o que eu tenho nas minhas pernas na honra que você acredita. Sou viadinho, e talvez eu fique um pouco mais afeminado de novo, simplesmente porque eu posso e eu quero agora. Logo mais, ou vocês me aceitam, ou eu vou força-los a sentirem saudade de mim.

(silêncio)

TIO JU
Que bosta foi essa? É alguma brincadeira?

LUIZ
Sou gay, família. Sou um daqueles homossexuais.

(silêncio)

TIO JU
Que gay? Que gay? Não tem nada de gay aqui não! Mãe, fale pra ele!

DONA EDNA
Vamo parar de graça, Luiz Paulo. Não quero saber dessa porcaria.

LUIZ
Sou gay. Engulam. Sou gay mesmo.

TIO JU
Que gay o que! Cale essa boca, moleque! Olhe a sua irmã, Luiz Paulo!

LUIZ
O que tem a minha irmã?

MARINA
Eu já sabia.

TIO JU
Mãe, mande ele calar a boca. Olha o que ele tá fazendo.

DONA EDNA
Cale a boca, Luiz. Você não sabe o que tá falando.

LUIZ
Sei bem sim. Eu não sou nenhum idiota.

TIO JU
E o que é? Você vai começar a rodar a bolsinha, é isso? Agora que você é um gayzinho, então, você vai fazer o que?

LUIZ
Como assim eu vou fazer o que? Vou fazer o que todo mundo faz, oras. O que muda se eu sempre fui assim?

TIO JU
Que sempre foi assim? Sempre foi assim uma ova! Mãe, eu falei pra senhora não deixar ele sair com aquele povo do teatro. Pra que foi colocar ele naquela merda? Pra que? Perda de tempo! Olha essa merda agora!

DONA EDNA
A psicóloga que mandou.

TIO JU
Você, de casa pra escola, da escola pra casa, ouviu?

MARINA
Eu? Mas o que eu fiz?

TIO JU
Não interessa!

DONA EDNA
Você sabe que quem é gay vai pro inferno, né, Luiz?

(silêncio; a cena congela e somente Luiz se destaca em um foco observando a situação; uma raiva o domina e ele dá um grito de desabafo; ele grita e se recupera do esforço, cansado)

LUIZ
Todo dia parece que eu tenho que explicar as mesmas coisas. Todo dia parece o dia que eu contei que era gay. A estranheza, o medo. Todo dia parece aquela mesma confissão da primeira comunhão. Parece sempre os mesmos problemas se repetindo comigo, e depois com ela. Parece que todo dia se aceita a mesma resposta pra vida que se dava ontem. Parece até que a gente parou no tempo. Eu queria aprender mais da vida, mas não dá pra fazer isso do lado de quem te amarra numa âncora. A certeza da existência de um deus é o culpado desse drama todo. Não tem como eu respeitar a opinião de uma religião que me oprime dentro de casa.

(focos separam os personagens)

MARINA
Vó, tem como você comprar outro computador pra mim? Eu não tenho como fazer os trabalhos da escola.

TIO JU
Mãe, você não pode deixar ela fazer o que quiser! Vou colocar uma rédea já!

LUIZ
Tio, você é casado! Depois eu que sou o puto!

DONA EDNA
Família é um assunto complicado. Mas Jesus proverá.
LUIZ
Tio, você é casado! Depois eu que sou o puto!

DONA EDNA
Você quer que eu pare de ir na igreja? Vai tirando seu cavalinho da chuva.

LUIZ
Hipocrisia é o problema!

TIO JU
Todo mundo peca!

MARINA
Eu ainda não.

LUIZ
Tudo bem você crer em alguma coisa, eu entendi. O problema é o “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Isso é muita sacanagem!

MARINA
Eu já fumei maconha com meu irmão.

DONA EDNA
Você sabia que o adúltero vai pro inferno? Sabia? E quem fuma maconha também.

LUIZ
A sua própria sobrinha!

TIO JU
Se eu sou casado o problema é meu e não se intrometa na minha vida!

MARINA
Hipocrisia é o problema!

LUIZ
O problema não é a religião! Hipocrisia é o problema!

DONA EDNA
Você sabia que quem é hipócrita vai pro inferno? Sabia?

LUIZ
Estamos todos fudidos, então.

MARINA
Estamos todos fudidos, então.

TIO JU
Estamos todos fudidos, então.

(black-out)


CENA 5

(um vídeo mostra fotos da família; outros parentes aparecem ao lado dos personagens em diversas situações; fotos de álbum familiar; uma música brega acompanha as fotos como se estivessem sendo apresentadas em um evento; de repente, fotos dos peitos de Marina aparecem no vídeo; um foco destaca Marina e Tio Ju)

MARINA
Como foi que você conseguiu isso?

TIO JU
Não interessa como eu consegui. Mas aqui está a prova da sua indecência!

MARINA
Apague isso, pelo amor de deus!

TIO JU
Pelo amor de deus? Você não tem vergonha, Marina? E se eu não apagar? Você quer que eu mostre isso pra sua vó?

MARINA
Por favor, tio...

TIO JU
E se isso espalha na internet, Marina? Você tem que pensar nas consequências das coisas que você faz.

MARINA
Eu sei, mas era brincadeira...

TIO JU
Brincadeira, Marina? Brincadeira?

MARINA
Eu não pensei que... eu não desconfiei...

TIO JU
Você não quer ser tratada como criança, mas você pede por isso, Marina. Sua vó não vai aguentar mais uma.

MARINA
Vocês acham que é fácil ser eu.
TIO JU
Ai, meu deus do céu.

(silêncio)

TIO JU
Olha, eu tô cansado, sua vó tá cansada. Tá todo mundo de saco cheio de tentar endireitar as pessoas nessa família. Sempre sobrou pra mim que sou o mais velho e pra sua vó. Sempre! Eu não aguento mais.

MARINA
Você conseguiu arrumar meu notebook?

TIO JU
O que? Joguei fora! E nem pense que eu não vou deixar sua vó comprar outro, ouviu? Ouviu bem? Nem pense!

MARINA
Como você conseguiu essas fotos, então?

TIO JU
Isso não interessa! O que interessa é que as coisas vão mudar aqui nessa casa a partir de hoje, você entendeu? Não quero mais saber dessa putaria de webcam e não quero mais saber de você pedir abrigo pro seu irmão. Se ele quer ser um drogado vagabundo, ele não vai arrastar você nessa desgraça.

(Marina entende)

MARINA
Era você.

TIO JU
O que?

MARINA
Era você sim!

TIO JU
Era eu o que!

MARINA
Mas calma... (ela reflete)

TIO JU
Ficou maluca agora, garota? Já chega dessa merda! Vai dormir, vai!

MARINA
E não era uma armadilha! Não foi de propósito! Agora eu entendi! Agora eu saquei.

TIO JU
Do que você tá falando?

MARINA
Você é o lobo-mau, tiozão. E não me venha dizer que não é porque agora eu tô me lembrando do seu peito peludo.

(silêncio)

TIO JU
Eu não sei do que você tá falando.

MARINA
Como você conseguiu essas fotos, hein? Como? Você não imaginou que eu fosse sacar, seu burro?

TIO JU
Eu peguei da memória do seu computador, bonitona. Não me venha com essa de me acusar agora.

MARINA
Eu sei que era você, tio. Chega dessa ladainha.

TIO JU
Era eu o que! Cale essa boca que você não sabe o que tá falando!

MARINA
E aposto que você não fez isso só pra me desmascarar. Foi um acaso ter me encontrado no bate-papo, né? Você também tem esse costume, não tem? Me fala! Você é casado, tio! Depois eu que sou a puta!

TIO JU
Você cale a boca! Olhe o que você tá falando, menina! Eu meto a mão na sua cara! Você não sabe de nada!

MARINA
Cadê o cristão adorado pela mamãe? Cadê? Pedófilo! Pedófilo!

TIO JU
Com consenso não é pedofilia, não é assim?

(silêncio)

MARINA
Então você assume. Você assume.

TIO JU
Vai dormir, Marina.

MARINA
Você se assustou quando viu que era eu, não se assustou? Me fala. Deu uma pontada no coração, não deu? Ou você se excitou? Me fala. Você se excitou, tio? Ficou de pau duro quando viu meus peitinhos?

(Tio Ju bate na cara de Marina)

TIO JU
(revoltado) Sua biscatinha! Vocês todas! Tudo piranha! Tudo piranha!

MARINA
(rindo) Tudo piranha. São outros tempos, tiozão! Não dá tempo pros enrustidos e pro falso discurso moral. Eu sou uma piranha, solteira e virgem que procura passar um tempo na internet. E você? Casado com filhos que bate punheta pras novinhas na webcam. Se é só isso mesmo. Ainda bem que você jogou fora o meu notebook, porque eu tinha salvado as suas fotos também. Que nojo agora. Eu não vou foder com a sua vida e com o seu casamento, tio. Não se preocupe.

(Marina sai e deixa Tio Ju derrotado)

TIO JU
Tudo puta. Tudo biscate. Que raiva! Que raiva!

(black-out)


CENA 6

(Luiz está com algumas malas; Dona Edna e Marina acompanham)

MARINA
Dou dois meses pra você voltar pra casa.

LUIZ
Imagina. Não tenho mais o que fazer nessa cidade.

DONA EDNA
Tem que arrumar um trabalho, hein. Eu não vou poder ficar ajudando muito.

LUIZ
Vou arrumar, vó. Como visita nossa relação vai ser mais tranquila, acredite.

DONA EDNA
Você é muito cabeça dura, Luiz. Tem que criar juízo, eu já falei.

LUIZ
Eu sei, eu sei.

DONA EDNA
E não quero saber de trazer namorada e nem namorado, ouviu bem? Não quero saber dessas coisas!

LUIZ
(ri) Tá bom, vó, tá bom.

(Marina abraça Luiz escondendo o choro)

LUIZ
Ô, bonita. Você vai poder me visitar quando quiser, tá bom? A hora que quiser e o quanto quiser. E eu também prometo vir sempre, tá? É que é um pouco longe pra vir todo final de semana, mas eu vou fazer o possível.

DONA EDNA
Se ele quer ir, tem que deixar ele ir, Marina. Meu trabalho era até os dezoito, depois é de deus.

LUIZ
Eu vou ficar bem, tá bom?

MARINA
Quando eu crescer eu quero ser igual você.

LUIZ
Ai, cale a boca! Não seja burra. Ser igual a mim!

(eles riem)

DONA EDNA
É, não seja burra. Você vai estudar!

MARINA
Mas eu quero ser burra assim. Eu quero.

(Luiz se emociona e a beija na testa)

LUIZ
Você é uma linda. Tchau, vó. Fiquem bem, hein. E pense bem antes de ensinar a bíblia pra ela, tá bom?

DONA EDNA
Cale a boca, Luiz Paulo.

(ele abraça Dona Edna)

DONA EDNA
Você é um cabeça dura, mas a gente te ama.

LUIZ
Eu também amo vocês. Tchau, Ma!

MARINA
Tchau, Lu! A gente se fala no Face!

LUIZ
Beleza! Tchau!

MARINA/DONA EDNA
Tchau!

(Luiz sai com as malas)

DONA EDNA
Não dou dois meses pra ele voltar. Quer apostar?

MARINA
Duvido que ele volte.

DONA EDNA
Pelo jeito, ele se preocupa mais com o resto do mundo do que com a gente.

MARINA
Isso não é verdade.

DONA EDNA
E o que é verdade, então? A verdade é que ele te abandonou também.

(silêncio)

DONA EDNA
É só uma fase. Logo ele vai perceber que só tem a gente. Jesus tarda, mas não falha. Anote o que eu tô falando, Cida.

MARINA
É Marina, vó.

DONA EDNA
Sim, Marina. Cida é a outra.

(Dona Edna sai de cena)

MARINA
Eu sobrei. O mais velho foi morar sozinho e eu sobrei pra cuidar da vó. Vai sobrar pra mim, no fim das contas, e vai ser mais difícil pra eu me livrar da obrigação de sangue. Mas tudo bem. Cada um carrega o destino que vem. Eu aceito essa história, não tenho tanto problema com isso. É assim que funciona. Calma, não vou dizer que é assim que funciona porque eu não tenho tanta certeza disso, na verdade. Acho que é mais bonito não ter certeza do que querer parecer que tem, sabe, porque ninguém tem certeza nenhuma, entendeu? Eu sei que é difícil de entender, a nossa importância é tão maluca que é quase impossível de enxergar a proporção. Mas eu tenho duas opções nessa vida: ou deixar que a minha vó morra enganada pela mentira, ou bater de frente como fez meu irmão e minha mãe. (pausa) Acho que eles já fizeram o que puderam, e talvez já seja tarde pra explicar pra essa senhora que Papai Noel não existe, não é? Mais conflitos familiares pode deixar isso daqui um pouco maçante, não é verdade? Um pouco dramático. Já chega, é hora de parar. Talvez eu deva ficar quieta. É isso. Talvez eu deva ficar quieta, é isso que esperam de um adolescente, e é isso que eu devo praticar. Ficar quieta. Ficar quieta porque eles sempre sabem mais.

(a luz cai em resistência)

(black-out)

FIM