DONA DO SOL
PERSONAGENS
Dona
Juiz
Advogados
Promotores
Policiais
Júri
Repórteres
Cigana
Famílias
Dona Carla
CENA I
(quando as luzes se
acendem, todos aguardam Dona responder alguma pergunta; um foco destaca a
mulher bastante angustiada, olhando para a plateia e depois para os advogados;
ela não está nervosa, está fraca e à beira de desabar; o juiz se ajeita
incomodado com a demora; o advogado de defesa quebra o silêncio)
ADVOGADO
Dona, você pode falar
agora. Eles querem saber o que a senhora tem a dizer.
DONA
Bom... eu não fico muito a
vontade com as pessoas me olhando assim. Esse é um dos motivos. Eu gosto
daquele lugar do jeito que é. Do jeito que era. Eu gostava daquele lugar porque
lá era minha casa. (ela percebe que deve tentar de outra forma) Desculpe. Eu
sei. Eu já entendi o que foi aprovado. Eu não quero mais contestar os senhores.
(silêncio; ela não tem o que dizer então) Bom, é isso. Então é isso. Obrigada,
por me darem essa lição de moral. Por me jogarem num lugar onde eu não queria
ficar, num lugar onde eu vejo só a metade do sol de meio dia. (pausa) Mas
obrigado por me fazer parecer uma pessoa melhor. Agora eu acho que a gente já
pode ir, então. Eu tenho que fazer as malas.
ADVOGADO 1
Dona, as câmeras...
DONA
O que tem as câmeras?
ADVOGADO 2
Eles querem saber mais.
Eles querem saber o que você tem pra falar.
DONA
Pra que? O que foi? Já
ganharam. Acabou, gente. Eu fui despejada! Já foi. Vamos falar de outra coisa
agora. Não tem nenhuma outra desgraça pra filmar, não? Dá licença.
ADVOGADO 1
Dona, por favor. Diga
alguma coisa, qualquer coisa. É pro seu bem. Você precisa falar alguma coisa
inteligente, se não você vai sair daqui e a sua vida vai ser um inferno.
DONA
Eu não tenho mais nada pra
falar! O que você quer que eu fale? Eu já falei o que eu tinha pra falar.
ADVOGADO 1
Você quem sabe.
(Dona suspira contrariada;
os Repórteres gritam perguntas e o juiz tenta colocar ordem no tribunal; Dona
decide voltar para o púlpito e pega o microfone decidida)
JUIZ
Ordem! Ordem!
(a cena escurece e um foco
destaca Dona; silêncio e suspense; Dona tenta procurar as palavras)
DONA
(terrivelmente
dramatizado)
“Liberdade. Solidão.”
ATOR 1
Uh! Tosca!
ATOR 2
Cale a boca!
DONA
Eu não sei como começar um
discurso, ok? Mas como eu tô me sentindo agora é isso. Falta de liberdade.
Falta de solidão. Sim, eu gosto de ser sozinha, eu gostava de ser sozinha.
(pausa) Eu entendi a lição. Tô tentando engolir os seus motivos de se voltarem
contra a mim desse jeito, como se eu fosse uma monstra. Eu juro, tudo isso que
aconteceu me fez pensar melhor na minha vida. Pode parecer papo de perdedor, eu
sei. Mas eu tenho que me redimir só pra mim, só dentro de mim, não pra vocês.
Eu tava pensando só em mim? Tava. Tava mesmo. Como todo mundo aqui presente. Cada
um luta pelos seus direitos, não é mesmo? E o meu direito? Qual era o meu
direito que eu exigi esse tempo todo? Qual era? O que eu queria? Eu só
queria... (silêncio) Aquele pedacinho específico e único desse planeta que
vivemos, que era meu de nascença, que batia o sol nos momentos certinhos da
minha vida, quando a minha janelinha da sala brilhava com a potência da luz, e
aí ficava aquela poeira bonita, brilhando, sabe? Que nem estrela, sabe? Foi
isso que eu perdi. Eu perdi os detalhes. Eu perdi o que eu conhecia como “meu
canto” nesse universo. E por que? Porque vocês decidiram que seria justo.
REPÓRTER 1
Você acredita que o seu
sol, o seu prazer em adorar o sol, tem mais valor do que a vida de cem
famílias?
REPÓRTER 2
O Brasil inteiro quer
saber, Dona. Na sua nova residência não bate sol?
DONA
Aquele era meu canto!
Minha terra! Tenho seis cachorros enterrados. Tenho cartas espalhadas pelo
terreno. Histórias, lembranças. Tenho passarinhos enterrados por todo o lugar!
Todo aquele sol era meu até vocês chegarem. Todo aquele riacho. Todo aquele
alface. Aquele pé de acerola. Era tudo meu, e o sol tinha os seus melhores
momentos naquele lugar. Nenhum lugar vai ser como aquele. Pode ter as mesmas
quantidades químicas e as mesmas condições físicas que eu vou sentir a
diferença. Vocês não devem entender isso, porque vocês são um bando de
mochileiros. Eu cresci naquele lugar, tudo o que eu conhecia de mundo era
aquele lugar. E você acredita que vieram me avisar uma vez? Uma cigana, veio me
avisar.
(a Cigana entra dançando)
CIGANA
Mãe, dona do sol
Rainha da sua terra
Não chegava à cem metros
quadrados
Mas era amor
Dona do sol
Mãe, dona do sol
Menina desde criança
Não chegava à um metro e
sessenta
Mas era amor
Dona do sol
(a música se entristece; a
Cigana pega Dona pela mão)
Mãe, dona do sol
A esperança é um perigo
Eu vejo, um dia aqui terá
Um condomínio
Cheio de ricos
E a dona do sol chorará
Será famosa no seu insulto
Famílias tirarão o seu sol
Também crianças e outros
filhos
Adeus, sol
Adeus, sol
Adeus.
(a Cigana sai; Dona fica
pensativa por um tempo; todos aguardam ela continuar)
DONA
Ela tinha razão. Quando
começaram a construir eu nem imaginava. Eu fui burra, lógico. Eu até tinha
gostado da ideia de ter vizinhos naquela distância razoável. Eu conseguia ver
os pedreiros lá longe, trabalhando, fazendo a base do prédio, lá longe, no
morro, no horizonte. Nem me importei muito, tudo bem, quer construir, constrói.
Só que naquela hora eu não tinha percebido que a merda daquele prédio –
desculpem pela palavra – ia ficar bem em frente, bem em frente do meu querido
sol da tarde. Só fui perceber isso quando o prédio já tava pela metade. Eu
falei: “ué, o que aconteceu?”. Corri pra janela e aí foi um drama, eu tremia
quando eu percebi o que ia acontecer quando o prédio ficasse pronto. (pausa) A
sombra, ficou certinha cobrindo o meu terreno. Desenhada, certinha. Como eu fui
burra? Tava ali, na cara que isso ia acontecer. Era só eu ter medido e ter
reclamado antes. Vocês viram como fica certinho, não viram? Vocês filmaram do
helicóptero. Fica certinho o quadrado da sombra do prédio na minha terra toda. Como
se tivessem feito de propósito. Logo eu. Dona daquele sol por direito genético,
por herança, por sangue daquele espaço! Eu não queria ter arrumado a treta que
eu arrumei, mas aquilo era tudo o que eu conhecia como vida. (Dona desmonta em
um chora contido e sincero) E o pior é vocês necessitarem dessa minha
humilhação aqui, pra eu conseguir me redimir com vocês. (silêncio) Me desculpe,
aquelas famílias não mereciam o inferno que eu fiz da vida delas. Talvez eu
tenha engolido muita escuridão nos meses que seguiram. Elas não mereciam tudo
isso. Nem eu.
(um grupo de famílias com
cartazes na mão entra em cena; cartazes com coisas como “Todos temos o direito
ao sol”, “Não somos ricos”, “As crianças agradecem”, “Fora Dona do Sol”; um
jovem ator pega o microfone e lê um depoimento)
ATOR 1
As nossas crianças
agradecem a decisão desse júri. Queríamos dizer que não temos ódio da nossa
ex-vizinha Dona do Sol. Queríamos dizer que não fomos a favor dessa guerra em
nenhum momento. Como disse a construtora em depoimento, a sombra foi uma
terrível coincidência, ninguém teve culpa disso. Nós queríamos deixar claro
também, que as acusações de violência que essa senhora fez contra as nossas
famílias não procedem. Se houve alguma violência, algum arranhão, algum
desentendimento, foi sempre porque ela foi querer procurar encrenca com a nossa
gente. Nós compramos aqueles imóveis, nós não tínhamos nada a ver com a briga
dessa senhora.
DONA
Eu tinha que ficar
aguentando eles gritando na igreja deles! Porque eles montaram um grupinho e
construíram uma igreja lá! Gritando! Ficavam cantando alto, até tarde da noite,
domingo de manhã! Teve horas que eu me irritei, poxa!
ATRIZ
Mentirosa!
ATOR
Deus é justo!
ATRIZ
Bruxa!
JUIZ
Ordem, ordem! Ordem!
(silêncio)
ATOR 1
Posso continuar?
DONA
Por favor.
ATOR 1
Independente da nossa
divergência religiosa...
DONA
Independente o caralho.
(gritaria)
JUIZ
Ordem, ordem! Ordem, Dona!
DONA
Desculpe.
ATOR 1
Independente da nossa
divergência religiosa, eu acredito que todos temos que lutar pelos nossos
direitos. E queríamos parabenizar a dignidade na sua luta aos seus direitos,
Dona do Sol. Você tinha o direito de fazer o que fez, todos somos livres pra
lutar. Mas uns vencem e outros perdem. Obrigado.
(o ator se retira; as
famílias aplaudem e gritam; eles saem comemorando; Dona está arrasada)
ADVOGADO
Bom, senhores. É só isso
que temos a falar. Obrigado, e agora, por favor, deixem a vida da minha cliente
em paz.
DONA
Esperem, agora eu quero
falar mais.
(os outros atores reclamam
entre si)
DONA
Eu não era dona de um
prédio abandonado. Eu não era dona de um estádio de futebol. Eu não era dona de
quilômetros de metros quadrados. Eu era dona de um cantinho afastado no meio do
mato. Dava pra ver a cidade de longe, só. Quando eu nasci ninguém foi me avisar
que eu teria que ser obrigada a me tornar uma mulher urbana, eu achei que fosse
ter escolha nisso. Eu não era dona de riquezas impedindo que outras famílias
tivessem também o seu direito a luz do sol. Era só eu e meu chãozinho,
confortável e simples. Eu não imaginei que algum dia eu poderia ser um estorvo
pra todas essas famílias, não era isso que eu planejava. Meus únicos planos era
um chazinho a tarde, um cigarrinho e ver o sol se pôr. Eu não precisava de mais
nada, eu não queria mais nada. Em um momento da minha adolescência eu cheguei a
pensar que eu era a mulher mais tranquila e mais feliz desse mundo. Eu tinha
tudo o que eu queria e precisava ali. Eu nunca precisei mais do que aquilo.
(silêncio) Eles não são meus inimigos, agora eu percebo isso. Não existe amigo
ou inimigo. Bonzinho ou vilão. Eu devo ser considerada uma bruxa no meio
daquela criançada, quando eu passava algumas saíam correndo. Mas ninguém queria
entender o meu lado também. Enquanto eu não fizesse uma bagunça todo mundo ia
seguir a vida como se nada tivesse acontecido. (pausa) E no fim das contas fui
chamada de insensível, fria, egoísta, Dona do Sol, Dona da Via Láctea, coxinha
– porque eu queria tirar a moradia daquelas famílias – , enfim. Eu fui
considerada a monstra, porque eu queria meu sol de volta.
TODOS
Mãe, dona do sol
Ex-rainha da sua terra
Não chegava a um metro e
sessenta
Mas foi amor
Dona do sol
Mãe, dona do sol
Egoísta e mal amada
Maluca, solteirona e
solitária
Mas era amor
Dona do sol
(a música entristece)
Mãe, dona do sol
A nossa vida é mais que um
canto
O mundo não é justo mesmo
Não sofra a dor
Dona do sol
JUIZ
Dona do sol, com tudo o
que eu aprendi nessa vida, concluo que nós aprendemos com as desgraças na nossa
vida. Acredite. Leve isso como um ensinamento de vida. Pense agora nas crianças
que terão a chance de apreciar o sol que você apreciou a vida toda, quantas
crianças que vão aprender a viver naquele espaço do planeta, assim como você
aprendeu. Temos que tirar o lado bom das coisas ruins que acontecem com a
gente. Talvez você tenha mais mundo pra conhecer do que aquilo, do que aqueles
pôr dos sóis. Talvez seja hora de andar pra frente as oportunidades de se ter
um pôr do sol único. Não tô dizendo que você já está velha, pelo contrário,
estou dizendo que você não precisa ficar estagnada num prazer de espera de uma
única situação. Todo tempo é hora de renovação. A lua é bonita, também, você já
olhou pra ela? Ela não faz a poeira brilhar como a luz do sol, mas ainda assim
é lindo de ver o topo das árvores brilhando a luz dela, não é lindo? Pense bem,
Dona do Sol, pense bem. Não se remoa a vida toda por essa perda. (pausa) Enfim.
Companheiros?
(todos se levantam e saem
deixando Dona sozinha; ela fica em silêncio por alguns segundos, num foco onde
a poeira está brilhando; ela se emociona com a cena e se contorce com as lembranças;
cantarola a música Mãe Dona do Sol, abraçando o próprio corpo)
(black-out)
CENA 2
(homens entram construindo
uma antena surrealista; uma antena razoavelmente grande; um deles entra com um
grande computador e instala a antena na máquina; eles cantam)
TODOS
Todos pagam pela água que
cai do céu
Tolos choram essa mágoa,
mas não vão falar
Nem o ar que eu respirar
Nem o vento que entrar
Tudo está pré-programado
O tempo privatizado
Não adianta o pau quebrar
(Dona do Sol entra
dançando entre eles)
TODOS
Mãe, Dona do Sol
Decidiu pôr a boca no
trombone
Mãe, Dona do Ar
Comunitária, ela comprou um
microfone
Com a desgraça ela
aprendeu
Sua pirraça, desapareceu
O sol nasceu pra todos e
então terá que ser
Se eu não tive escolha,
ninguém também vai ter
Mãe, Dona da Rádio pirata
da Vila
De homem, menino, mulher e
menina
A puta liberdade agora ela
deve espalhar
Artista se transforma
quando o mundo acabar
DONA
Sabe, eu percebi que nós
humanos nascemos ruins. Já nascemos ruins. Nascemos achando donos de algo , que
um pedaço de algo nos pertence por direito de herança. “Essa aqui é MINHA mãe e
não olhe pra ela! Essa aqui é meu. É meu. É minha esposa. Minha mulher, meu
marido. Meu cachorro. Meu filho. Meu brinquedo. Meu. Meu. Meu. Minha comida,
meu espaço – mesmo que eu não esteja usando, o espaço é meu. Não interessa! Se
eu quiser deixar isso daí apodrecer, eu posso, porque é meu – tá aqui escrito
nesse papel”. As pessoas são assim. Elas preferem que esteja sobrando e
estragando do que repartindo. (pausa) Sobrava sol na minha janela. Eu fui feliz
por longuíssimos anos, quase quarenta anos, veja só. E a vida foi boa, não
posso reclamar, de jeito nenhum. Talvez eu tenha me apegado ao sol num exagero,
numa poesia um tanto clichê, num amor um tanto classicista e... sei lá. Não
entendo muito bem dessas coisas. Mas eu nunca tive interesse por homens. Nunca
tive interesse em sair daquele lugar, não fui uma menina rebelde, fui sempre
uma menina direita. Meus pais só tiveram a mim. Filha única e louca solitária
solteirona que fez um drama todo por causa de uma sombra. (ri) Meus pais
morreram juntos, minha mãe morreu no dia quinze de janeiro de noventa e nove e
meu pai no dia dezesseis. Dormiram e não acordaram. E eu só tinha o sol.
Ridículo, né? Os poetas vão falar, “Nossa, que lindo. Que história linda, a
dessa moça”. (pausa) Mas eu fui ruim. Eu sou uma pessoa que assumo quando eu
fui do mal. Eu só pensei em mim mesmo. Eu taquei pedra naquelas crianças, sim. Elas
estavam me xingando, eu fiquei irritada! (ela se irrita) Só que eu não acertei
nenhuma pedra e eles me acertaram! Acertaram três pedras nas minhas costas! E eu
fiquei passando como a que começou a tacar! Ninguém nunca vê os dois lados da
coisa. (pausa) Eu também tentei atear fogo na igreja deles mesmo, tentei,
confesso. Eu juro por deus que eu fui fazer uma visita à igreja deles naquele
dia, eu ia entrar como alguém querendo fazer paz, querendo me entender com
eles. E eles começaram a gritar e a falar que eu tava endemoniada, que eu tava
com pomba gira dentro de mim, que eu era macumbeira que tinha que me converter!
“Ora, a minha religião é a filosofia, meus irmãos!” Eu gritei. Eles só podiam
estar de sacanagem com a minha cara. E o que foi que eu fiz? Porque eu também
sou filha de deus. Fingi. Fingi que tava endemoniada e enchi aquele lugar de
gasolina e taquei fogo. (pausa) Eu não enchi tanto, joguei só um pouquinho de
gasolina na frente do púlpito, mas taquei fogo! E aí eles se assustaram!
Fizeram uma bagunça! Chamaram a imprensa, falaram que estavam sendo atacados
dentro da própria igreja. Oras! Se eles realmente acreditassem que eu tivesse
com o capeta no corpo, o que a polícia ia poder fazer com isso? Se eles são os
filhos de deus, por que eles não me ajudam, então, pô? Me ajudem a me libertar
desse satanás, então. Eu quero ver! Poxa.
(um repórter enfia a
cabeça pra dentro de cena)
REPÓRTER
Só uma perguntinha, Dona.
Por que você carregava gasolina quando entrou na igreja em nome da paz?
DONA
(pensa e depois diz)
Porque eu também sou filha de deus.
(silêncio)
REPÓRTER
Entendi.
DONA
Eles já falavam mal de
mim! As crianças deles tacavam pedras na minha janela! Eles tinham me roubado o
amor da minha vida – que eu não vou repetir o nome pra não soar poesia. Eles
acabaram com toda a minha tranquilidade!
REPÓRTER
É. Você não parece mesmo
uma mulher equilibrada. Desculpe te lembrar, Dona. Não sei se você sabe. Mas o
sol nasceu pra todos.
(silêncio; Dona faz cara
de óbvio; irritada)
DONA
(falsa) Nossa. Obrigada,
querido. Puxa, se você não falasse.
(silêncio)
DONA
Agora, por favor...
REPÓRTER
Você sumiu dos holofotes,
a mídia esqueceu da Dona do Sol e da história da sombra. O que você anda
aprontando por aí? Qual classe social e/ou religiosa você pretende recriminar
dessa vez? Já tá treinando tiro ao alvo pra acertar as crianças sem chance ao
erro?
DONA
Oras, faça-me o favor!
REPÓRTER
O Brasil inteiro quer
saber.
DONA
Quer saber porque vocês
ficam fuxicando. Vocês ficam fazendo toda essa zoeira. Se eu fosse rica, isso
jamais aconteceria. E aí que está o problema.
REPÓRTER
Pior ainda. Pobre
humilhando pobre.
DONA
Queridinho, aquele pessoal
não era pobre, não, não sei se você sabe. Você foi dar uma olhada no
apartamento deles que eles compraram? Não era prédio de ajuda social, bonito.
Não era esses prédios populares pra ajudar famílias carentes, não. Eram todos
bem de vida. Eles tem o dobro do que eu tenho. Lógico que eu entendo que eles
podem ter ralado pra conseguir comprar aquela merda de apartamento, e eu não
ralei nada na minha vida pra ter aquele espaço, que era fruto de uma herança. Mas
e daí? Quem julgou e demarcou esses espaços antes? Qual foi o cajado divino que
deu aval pra uns construírem aqui e outros construírem ali? Eu não participei
de nenhuma reunião pra fazer acordo sobre a divisão desse planeta que nascemos
todos juntos, e iguais e pelados! (se acalma) Desculpe. Agora que eu já passei
por toda essa situação e decidi focar a minha vida em comunicação, com tudo o
que eu aprendi, eu posso dizer que eles tem o direito de lutar pelo seu espaço,
sim, assim como eu. Todos temos esse direito. Alguns lutam por direitos fúteis,
outros por direitos extremamente necessários – que é um absurdo ainda termos
que discutir, com alguns direitos óbvios que ainda são negados por aí. Uns
acham que lutam, uns dizem que lutam. E é bom que surja cada vez mais esses
embates, esse choques de ideias. Porque é assim que a gente vai se moldando.
Mesmo com aqueles que morrem. A gente vai se moldando com a dor de perde-los,
de sentir e perceber que isso daqui é passageiro. A gente vai se moldando,
porque é assim que surgiram as coisas. Das catástrofes. Os povos se reerguem
renovados. Dos choques de estrelas. Dos choques de planetas e meteoros. Tudo o
que a gente é ou foi é feita da mesma matéria de diversos meteoros que caíram
ao longo dos milhões de anos bem antes de existirmos. Somos feito da mesma
coisa. Só montados diferentes, que nem um quebra-cabeça de possibilidades
infinitas. (acorda de um sentimentalismo profundo e volta a realidade) Era
maconha mesmo, que eu fumava nos fins de tarde. Minha religião é a filosofia. Eu
decidi que eu não ia mais falar sobre isso. A luz do sol não é mais meu foco
hoje em dia. Eu agora vivo no cu da escuridão.
(os outros atores entram
como bailarinos desses musicais grandiosos; Dona do Sol assume a frente da
coreografia com um microfone; tudo com um pouco de ironia por ser musicado)
DONA DO SOL
“O mundo caiu
O poço se abriu bem fundo
Eu tive que me redimir
Encontrei sentido
Eu consegui fazer amigos
Eu tive que me redimir
O passado é passado
Agora sou de dona rádio
Não vou mais reclamar
No leite derramado
Eu tenho espaço pra falar
Pra diálogos sustentados
E amar
(todos saem e Dona assume
uma posição de radialista)
DONA
Bem, amigos da rádio Dona
do Ar! Estamos começando mais um bate boca, quebra pau, come come que vocês já
viram nesse caralho de mundo, minha gente! Hoje a cobra vai fumar, molecada!
Com a internet se espalhando cada vez mais, dando mais espaço pras pessoas
falarem as suas merdas, tudo agora está censurado! É isso mesmo minha gente! O
politicamente correto impede que façamos nossas críticas à religião, política,
e ao resto de gente que merecia uma boa cutucada! Óbvio que há dois lados da
moeda. Até consigo entender os motivos dessa censura repentina, entendo como
muita gente esteve abusando da liberdade de expressão pra humilhar outras
pessoas, pra escrachar, deixar a pessoa na merda. Igual aquele gordinho famoso
que tirava sarro de gordinhas desconhecidas. Umas piadas racistas e homofóbicas
defendidas no direito à liberdade de expressão. Então, se for pra ser justo, se
for pra que os idiotas se calem, fico calada também! (pausa) Só que não! Não
vou ficar calada, ficar calada é o meu cu! Ficar calada é o caralho da sua mãe,
seu filho de uma puta que inventou essa ideia de que o problema tava na
liberdade de expressão! Deixa os idiotas falar, porra! Deixa aquele humorista –
(irônica) engraçadíssimo, ele – aquele que acha que é o Jô Soares, deixa ele
falar! As pessoas aprendem com a dor, com as ofensas. Ele aprende com as
retaliações. Todo mundo aprende! Liberdade pra falar merda todo mundo tem, mas
tem que arcar com as consequências depois. Liberdade pra ser inteligente também
todo mundo tem. Com mais ética, mais seriedade, com mais clareza, mas ainda
assim, esses que escolherem esse lado, terão que arcar com os radicais que
falam merda por aí, porque eles estariam no direito deles à rebate, do jeito
que eles quiserem também. Todos temos o direito de ataque, de rebate e de
defesa. Percebe como é difícil? Lógico que eu penso o como é duro ser humilhada
em rede nacional, num post de alguém famoso e eu, como ser humano, não faria isso
tipo de coisa. Mas aquelas pessoas que tem esse sangue frio, que gosta de
humilhar e tirar sarro de algumas diferenças, eles existem ali por algum
motivo. Mesmo que o motivo seja nos chocar, nós, de esquerda – que eu digo.
Todo mundo tem direito a lutar por aquilo que é certo. E a gente vai se
tornando redondo e pleno com esses choques de meteoritos. Das piores
catástrofes nascem as melhores constelações. E no fim das contas, que vença o
mais forte, repito aqui, mais uma vez. (pausa) Vamos agora pra nossa primeira
participação do dia. Dona Carla. Alô, Dona Carla? A senhora está me ouvindo?
(Dona Carla aparece em um
foco)
DONA CARLA
Sim, estou ouvindo, sim,
querida.
DONA
E então, Dona Carla? A
senhora quer quebrar o pau em que? Você tem todo o tempo do mundo pra meter o
cacete no que quiser. Vamo lá.
DONA CARLA
Eu tô tentando ouvir a
Joven Pan aqui. E o seu sinal tá fazendo interferência no sinal deles. Com quem
eu posso reclamar? Com vocês aí ou só com eles mesmo?
DONA
Dona Carla, essas rádios e
televisões de grande porte monopolizaram todo o nosso ar, você sabia disso?
Você sabia que eu não tenho aval pra estar falando aqui com a senhora? Eu não
posso. Nós estamos pirateando sinal, pra conseguir ter espaço pra falar. Se a
senhora ligar pra eles, você pode complicar aqui pra gente. E você tem o seu
direito de foder o barraco, quebrar o pau. O direito é seu, faça o que quiser.
(silêncio)
DONA
Alô? Alô? Caiu?
DONA CARLA
Mas minha filha, não pode
fazer isso, minha filha. Tem que ser direita. Cria juízo.
DONA
Ih, dona. Parece minha mãe
falando. Eu obedeci a minha mãe e deu no que deu. Essa é a Rádio Dona do Ar.
DONA CARLA
E como é que fica?
DONA
Como é que fica? Fica
assim. Esse espaço de ar é meu, é nosso. Estamos cada vez mais melhorando o
nosso sinal, essa é a rádio Dona do Ar.
DONA CARLA
Mas eu quero ouvir a Joven
Pan.
DONA
(grita) Mude-se de cidade!
Mude-se de casa! Compre um rádio novo! Ouça pela internet! Foda-se! Aqui eu
quebro o pau!
(Dona desliga a ligação, o
foco de Dona Carla se apaga; Dona atende outra ligação logo em seguida)
DONA
Rádio Dona do Ar, você
pode quebrar o pau o quanto quiser, falar as merdas que quiser, com quem eu
estou falando?
DONA CARLA
Moça, você não tá
entendendo. (o foco se acende novamente) Eu tenho um grande carinho pelo
programa que vai começar agora. Desde criança eu tenho esse costume. Não me
faça perder o meu programa, moça. Por favor. A Jovem Pan está no meu coração.
(Dona desliga com cara de
ódio; o foco se apaga mais uma vez)
DONA
Cada um que lute com suas
injustiças na vida, não é mesmo, meus amigos?
(o telefone toca)
DONA
ALÔ? Fala, caralho!
DONA CARLA
(o foco acende) Moça, por favor. Desliga o seu sinal só das seis às oito. São duas horinhas.
(o foco acende) Moça, por favor. Desliga o seu sinal só das seis às oito. São duas horinhas.
DONA
Vai te catar, ô, Dona
Carla! Vai ver se eu tô na esquina! Quer lutar pelos seus direitos, você tem
todo o poder de ligar lá na Jovem Pan pra eles me denunciarem pra Polícia
Federal. Vai! Eu não vou te impedir de fazer isso.
DONA CARLA
Mas eu não quero
comprometer o lado de vocês. Eu era amiga na sua, mãe, Dona. Acompanhei todo
aquele processo contra o prédio que construíram perto da sua casa. Eu torço pra
que você consiga se redimir como pessoa de bom caráter. Mas você não pode
querer ser dona de todo o ar. Piratear é crime, querida. (silêncio) Alô? Alô?
(Dona com muito ódio no
coração, desliga a ligação em silêncio; o foco de Dona Carla se apaga)
DONA
Bem, amigos da Rádio Dona
do Ar. Se você quiser ligar pra me esculachar também é bem vindo. Vale tudo,
nessa putaria não existe censura! Vamos para a terceira e última ligação dessa
noite e torcer para que não seja a nossa inimiga de estado Dona Carla Chata que
te Pariu. Alô?
(um foco destaca um ator
encapuzado)
ATOR
Alô?
DONA
Com quem eu falo?
ATOR
Não interessa. Não
interessa com quem você fala. Vamos direto ao ponto, Dona de Tudo.
DONA
Uh, mais um ataque. Vamos
lá.
ATOR
A sua glória vai acabar em
pouco tempo, queridona. Tudo o que você conhece desse mundo vai acabar. Você
decidiu ter essa vidinha de comunista retardada e tá atrapalhando gente grande.
Não existe espaço pra gentinha como você, bonitona. Gente fraca, solitária,
solteirona, morre fácil e ninguém dá conta. Você acredita que alguém ouve as
suas expressões, Dona? Você acredita que alguém vai ouvir aquelas mensagens que
você tentou enviar pro espaço? O que? Você agora quer ser dona do Universo, é
isso? Pessoas como você não vão a lugar nenhum, Dona. Você pensa que a Rede
Globo de Televisão, que a Jovem Pan, que a puta que o pariu, tem a força que
tem porque foram vagabundos pirateadores? Que eles ficaram fazendo gaiato em
sinal dos outros?
DONA
Não existia outros quando
eles decidiram que seria deles. É só um espaço no ar.
ATOR
Eu não terminei de falar.
Eu tenho todo o tempo do mundo, não tenho?
DONA
Vamo lá. Mas é só um
espaço no ar.
ATOR
Um espaço no ar que não te
pertence. Você é burra ou o que?
DONA
E por que não me pertence?
Quem disse que não me pertence? Eu não participei de nenhuma reunião pra
discutir qual parte do planeta é deles e qual é minha! Eu construí essa antena
com o meu suor, com a minha criatividade! Eu tenho o direito por um espaço no
ar.
ATOR
Você precisa desembolsar
uma puta de uma grana pra conseguir esse direito, minha querida. Já chegaram
antes de você nessa sua criativa forma de expressão.
DONA
Mas eu nasci no ano que
nasci, oras. Não tinha como eu ter disputado antes.
ATOR
E não tem como você ficar
roubando coisas que pertencem a outras pessoas. Aquelas pessoas também tem
filhos. E os filhos do Marinho? Os filhos dos donos da Jovem Pan? Eles não
precisam comer, também?
DONA
Daria pra todos nós
comermos bem, se não fosse um ou outro querer ter mais que todo o restante.
ATOR
A vida não é justa mesmo.
Você mais do que ninguém sabe disso. Você mesma tentou tirar o direito de cem
família criarem seus filhos naquele prédio por uma desculpa de que era
apaixonada pelo sol. Faz me rir. Mais do que ninguém você sabe disso.
DONA
Eu era uma insensível, tá
bom? E eu perdi! Eu perdi, no fim das contas! Eu já aprendi com isso!
ATOR
Todo bandido diz se
arrepender.
DONA
Hoje eu quero falar sobre
o limite dos nossos direitos. É pra isso que eu montei isso daqui. Eu não sou
bandida. Isso aqui é pra gente discutir o quanto é meu e o quanto é seu. O
quanto eu tenho o direito de ofender e o quanto eu tenho o direito de rebater
como ofendida.
ATOR
Você sempre consegue se
fazer de vítima, não é mesmo? Coitada.
DONA
Não estou me fazendo de
vítima. Não sou nenhuma coitada, não, senhor. Como é o seu nome mesmo?
ATOR
Não interessa o meu nome.
Esquerdopata vitimista. Vai trabalhar! Fique esperta, queridona. É melhor você
ficar esperta.
DONA
Eu não estou me fazendo de
vítima. Eu não sou nenhuma vítima. Você tem a liberdade de me ameaçar e a mesma
liberdade de vir aqui e me matar. Faça o que achar melhor, queridão. Eu aceito
a sua dor de ofendido como justa. Você está no seu direito.
(silêncio)
ATOR
Olha, a minha mãe só quer
ouvir o programa dela, entendeu? Ela ficou me enchendo o saco pra eu falar com
você. Desliga o sinal só por duas horinhas, vai. Você não conhece a minha mãe,
ela tá fazendo o inferno aqui em casa.
DONA
Eu não acredito nisso.
ATOR
É rapidinho. Ela ouve esse
programa já faz tempo, vai.
DONA
Manda a Dona Carla buscar
tratamento! Passar bem. (desliga; o foco se apaga) Eu já achei que fosse alguém
da Polícia Federal. Ter rádio pirata dá até prisão, vocês sabiam? Mas eu sou
uma pessoa que fui tão fudida na vida que vale o risco estar aqui com vocês. Eu
estaria quietinha no meu canto de terra se não tivessem roubado o meu amor.
(Dona Carla entra nervosa)
DONA CARLA
Você faz muita cena,
garota. Muito drama. Te arrumaram um sítio igualzinho ao que você tinha, com a
mesma quantidade de sol, com os mesmos metros quadrados.
DONA
Não era o mesmo lugar.
DONA CARLA
Construíram a janela sob
medida pra que o sol entrasse naquele exato momento da tarde. Até poeira eles
colocaram na sua casa nova, Dona. Você virou uma rebelde sem causa por orgulho!
DONA
Não era o mesmo sol. Me
mandaram pra puta que o pariu. Meu canto não era aquele, não tinha porque eu
insistir numa réplica do que tinha sido a minha vida.
DONA CARLA
Frescura! Frescura! Você é
cheia de querer tirar os direitos dos outros, menina. Se sua mãe fosse viva ela
não ia gostar nadinha dessa que você se transformou.
(Dona, ofendida, desliga a
antena)
DONA
Vá ouvir a sua Joven Pan,
Dona Carla. Eu vou calar a boca.
DONA CARLA
Acho bom. Eu sabia que eu não ia precisar usar de força. Passar bem.
Acho bom. Eu sabia que eu não ia precisar usar de força. Passar bem.
(Dona Carla sai)
DONA
Passar bem.
(silêncio amargurado)
DONA
Ela tá no direito dela. O mais
forte sempre vence. Isso é lógica. Eu ia arrebentar a cara dela?
(de uma janelinha podemos
ver a luz do sol entrando; vemos a poeira na luz; Dona arruma as suas coisas,
derruba a antena com um único chute e sai em silêncio)
(black-out)
CENA 3
(um foco destaca três
atores)
ATOR/ATRIZ 1
Dizem que ela virou uma
sociopata.
ATOR/ATRIZ 2
Depressão faz isso com as
pessoas. A justiça tarda, mas não falha.
ATOR/ATRIZ 3
Pra mim, ela gosta de se
fazer de vítima.
ATOR/ATRIZ 1
Uma vagabunda dessas que
tentou impedir que aquelas crianças tivessem um lar? Eu não sei como alguém
pode perdoar uma pessoa dessas. Uma pessoa dessas não tem escrúpulo.
ATOR/ATRIZ 2
Mas ela não era rica, né?
ATOR/ATRIZ 3
Mas o acordo que eles
fizeram, fez a construtora comprar outro terreno que vale o triplo. Ela se saiu
bem de lá. E depois montou uma rádio pirata, ouvi dizer.
ATOR/ATRIZ 2
Não acredito.
ATOR/ATRIZ 3
Uma vez no crime, sempre
no crime.
ATOR/ATRIZ 2
Talvez porque tenha sido
criada em sítio.
ATOR/ATRIZ 1
Lutando por um espaço ao
sol. Tem mais clichê?
ATOR/ATRIZ 2
Fala sério. Muito clichê.
ATOR/ATRIZ 3
E depois por um espaço ao
ar.
ATOR/ATRIZ 2
Nossa. Muito clichê.
ATOR/ATRIZ 1
Muito.
ATOR/ATRIZ 3
E agora? O que será que
ela vai aprontar dessa vez? Vai fazer um Titanic? Vai ter que dividir os mares
com os icebergs, hein! Alguém avisa lá pra ela.
ATOR/ATRIZ 2
Ela não gosta muito de
dividir as coisas.
ATOR/ATRIZ 1
E diz que é comunista,
ainda. Hoje em dia ela diz que luta pelas causas sociais. Dá pra acreditar numa
coisa dessas?
ATOR/ATRIZ 3
Todo bandido diz que se
arrepende. Todo mundo se arrepende depois que fez merda.
ATOR/ATRIZ 2
Um absurdo!
ATOR/ATRIZ 1
Mas ela não tem cara de
arrependida, não. Isso é vitimismo.
ATOR/ATRIZ 2
Gente, se tem uma coisa
que eu odeio é gente que se faz de vítima.
ATOR/ATRIZ 3
Eu também.
ATOR/ATRIZ 1
Vamos ficar de olho nessa
guria.
ATOR/ATRIZ 3
Vamos. Precisamos.
ATOR/ATRIZ 2
Antes que o mundo acabe.
(silêncio; elxs fazem cara
de conspiração e o foco se apaga; uma multidão de transeuntes, numa noite de chuva,
andam para lá e para cá. Os três atores (ou atrizes) procuram por Dona entre
eles; eles finalmente dão de encontro com o Advogado de defesa)
ADVOGADO
Quem estão procurando?
ATOR/ATRIZ 1
Ninguém. Estamos curtindo
a chuva.
ATOR/ATRIZ 2
Nós pensamos que podíamos
reencontrar uma velha amiga aqui na chuva.
ATOR/ATRIZ 3
Você viu a Dona por aí? Ela
era sua cliente, não era?
ADVOGADO
Era. É. Ela não quer mais
se pronunciar. Ela aceitou ficar com o sítio idêntico que arrumaram pra ela. Ela
diz que consegue enxergar o prédio que não existe. Ela ficou louca. Ela acha
que o sol queima a pele dela. Ela tem repulsa daquela poeira agora. Ela quer
tudo bem limpinho. Pegou uma mania de limpeza. Ela mandou tirar toda a energia
elétrica da casa, e diz que não quer mais saber de televisão, nem de rádio, nem
de ninguém.
ATOR/ATRIZ 1
Virou uma sociopata.
ATOR/ATRIZ 2
Uma xenofóbica. Tadinha.
ADVOGADO
Ela não quer mais saber de
vocês e não quer mais ter a sua vida exposta. Ela quer ficar só. Quieta. Acho
que daqui a pouco inventa um novo amor, uma nova inspiração. Tudo tem uma fase
pra acontecer. Uma hora é a hora do gelo, outra hora é a hora do fogo. E aí a
terra vai se moldando e se ressuscitando e se transformando. Assim é bom. Ela
não quer mais saber de lutar por direitos nenhum. Ela tem medo de tirar o
direito de outros por lutar pelos seus. Acho uma corajosa. Uma desistente
corajosa. Uma boa militante da luta pela real liberdade.
(os atores riem falsamente)
ADVOGADO
E ela não quer mais
exposição. Não quer que as pessoas comentem sobre ela, sobre os limites que
deve tomar. E ela só vai conseguir isso em reclusão. Solteirona, solitária. Mais
uma pergunta a fazer?
(silêncio)
ATOR/ATRIZ 1
Ela toma banho com água
fria mesmo? E no frio?
ATOR/ATRIZ 2
Você sabe nos dizer se ela
está com alguma paquera? Uma árvore, ou a lua dessa vez?
ATOR/ATRIZ 3
Uma flor? Ela tem cara
dessas que se apaixona por uma flor.
ADVOGADO
Ela não quer mais
exposição, mas sim, talvez ela já esteja na fase de descobrimento de um novo
amor.
ATOR/ATRIZ 1
Quem leva comida pra ela
nesse lugar?
ATOR/ATRIZ 2
Esse novo amor tem nome?
ATOR/ATRIZ 3
Ela não tem medo de morrer
e ninguém lembrar?
(silêncio)
ADVOGADO
Ninguém vai lembrar de
forma alguma. Uma hora não vai existir esse alguém. Pro sol, você pouco
importa. Passar bem.
ATOR/ATRIZ 1
Meu amigo, menos poesia e
mais discussões concretas. O que a gente tá querendo saber aqui é até onde ela
vai com essa liberdade desenfreada? Qual o sentido disso tudo? O porquê disso
tudo? Por que ser uma rebelde sem causa? (o Advogado sai) Qual a necessidade
dessa loucura, dessa busca por esse conforto? Qual o sentido disso tudo? Alguém
tem que me responder por que luta tanto assim por uma liberdade a ponto de
desistir da própria pela dos outros. Que tipo de idiota faz isso? Alguém tem
que responder qual a necessidade de termos uma pessoa assim no mundo? Qual a
necessidade da existência dessa figura, dessa Dona do Sol? O que ela tem de
mais? Pra mim isso é uma baita de uma hipocrisia, porque por ela aquelas
crianças estariam morando embaixo da ponte, sem casa pra morar, por um luxo
dela, por uma luz do sol.
(silêncio)
ATOR/ATRIZ 2
Fica calmo, amigo.
ATOR/ATRIZ 3
Talvez seria melhor a
gente deixar ela em paz. Ela não tá fazendo mal nenhum agora. A rádio pirata
acabou.
ATOR/ATRIZ 1
O que? Deixar ela se safar
assim? Sem mais nem menos? Ela quis tirar a liberdade do mundo inteiro, quis
tirar a liberdade da Joven Pan, que tem cem anos de credibilidade e
conhecimento, quis tirar a liberdade daquelas crianças e agora a gente deixa a
liberdade dela viver a vidinha dela assim? De mão beijada?
ATOR/ATRIZ 3
Mas se você pensar bem,
ela perdeu todas as disputas. Ela perdeu. Ela decidiu perder. Desistiu. O
advogado dela está certo.
(silêncio)
ATOR/ATRIZ 2
Eu acho que elx tem razão.
ATOR/ATRIZ 1
Viu? Ela não pode ficar
impune!
ATOR/ATRIZ 2
Não. Eu acho que ELX tem
razão. Eu acho que a gente devia deixar ela em paz. O advogado me convenceu um
pouco também.
ATOR/ATRIZ 1
Nossa, mas parabéns, seus
militantes de merda. Meus parabéns. A gente luta contra os injustos aqui na
terra e vocês me vem com essa. Meus parabéns pra vocês.
ATOR/ATRIZ 3
É duro fazer justiça, meu
bem. É muito duro fazer justiça.
ATOR/ATRIZ 2
Acho que a gente devia
tentar se colocar na vida do outro. É difícil pra caralho esse troço, mas acho
que a gente devia tentar.
ATOR/ATRIZ 1
Todo bandido se arrepende
na cadeia, na hora que é pego, meus colegas! Não tem como a gente cair nesse
vitimismo barato da poesia dessa porcaria! Vocês tão virando o que? O que é que
tá acontecendo? A gente ter pena desses vagabundos? É isso que eu ouvi?
(ouvimos apenas a voz de
Dona cantando)
DONA
Mãe, Dona de Ninguém
Às vezes foi só um mal
entendido
Às vezes você era meu amigo
Aos treze eu já era
sozinha
Colecionando a solidão
(Dona entra sambando, mas
vemos uma tristeza em seu olhar)
DONA
Não tinha o que reclamar
Eu tive amor, também já vi
o mar
Era a rainha da bateria
A vida é minha, de quem eu
sou?
Mãe, Dona de Ninguém
Às vezes foi só um mal
entendido
Às vezes você foi meu
inimigo
Mil vezes eu pensei só na
minha bunda
Pisoteei outro coração
Escancarei outro coração
Eu fuzilei outro coração
Despedacei outro coração
Acorrentei outro coração
(os atores 2 e 3 aplaudem
orgulhosos)
DONA
Obrigada, gente. Obrigada.
ATOR/ATRIZ 1
(novela) Eu vou acabar com
a sua vida, Dona do Sol. Escreva o que eu tô dizendo. (sai)
ATOR/ATRIZ 2
É inveja, querida.
ATOR/ATRIZ 3
Eu invejo você.
DONA
Obrigada, gente. Mas não
precisa tanto.
ATOR/ATRIZ
Venham, idiotas! Vamos
embora!
ATOR/ATRIZ 2
Vamos. Foi um prazer te
conhecer, Dona do Sol. Eu também sou super a favor dos direitos humanos.
ATOR/ATRIZ 3
Tchau! Eu te sigo no
Facebook!
(elxs saem)
DONA
Não precisa tanto drama,
não. A vida já é muito dura pra ter gente achando que é uma novela. Tem gente
por aí querendo “acabar” com a vida da outra, conspirando friamente pela vida
da outra. Tem gente por aí querendo ter mais direito no espaço da calçada,
ganhar mais salário pela mesma quantidade de suor. Tem gente por aí tapando
janelas com mais concretos. Desculpem, mas se o nome disso é desenvolvimento
social, então eu não sei mais de nada nessa vida. Se desenvolvimento é crescer
asfalto e concreto, então pare o mundo que eu quero descer. (pausa) Já não tem
pra onde correr, molecada. Já viramos uma panelona. Desenvolvimento social
agora é dar prazer aos respirantes. Dar prazer aos que estão vivos, porque
depois que morre não dá mais tempo. Aí já serão outros sofridos que estarão
ditando as regras por aqui. Outras crianças que depois serão os chefes. Que
serão os nossos líderes de estado, os nossos médicos, os mendigos, os bandidos,
artistas, viados, homens de família, putas. Todos crianças. Todos aprendendo o
que são pelo tempo que tiverem pra aprender, pelas coisas que deu pra aprender.
Todos falhos. Todos ilegais, sem exceção. Todos lutando pelo espaço como um grande
fungo cinza e nojento. É isso que somos e é isso que vamos continuar sendo. (pausa)
Respirar e gozar são a única forma de ver beleza nessa disputa maluca.
(uma música sensual e a
luz cai)
DONA
Depois de tudo isso,
comecei a pesquisar sobre a luta pelos direitos da mulher. E eu encontrei uma
nova paixão, sim. Estou amando como nunca amei antes. Mais do que o sol,
acreditem. Mais do que o céu e do que o mar, pra completar a poesia. Eu
encontrei algo que me completou de uma forma como nunca antes. Afinal, tudo o
que eu mais queria era gozar do meu espaço na terra, por menor e mais úmido que
esse espaço fosse. Não é mesmo? (suspense para a revelação) Como é que eu pude
ter pensado em morrer virgem, minha gente? Como é que eu pude ter tido esse
pensamento? Sexo, meus lindos! Sexo!
(vários homens, todos nus,
entram e se deitam com Dona que se entrega passivamente ao seu novo amor)
DONA
Hashtag, meu corpo, minhas
regras.
TODOS
Mãe, dona do sol
Rainha da sua festa
Não chegava nem a dezoito
centímetros
Mas era amor
Dona do sol
Mãe, dona do sol
Menina, que abundância
Nunca fingia, o orgasmo é
relativo
Mas era amor
Dona do sol
Mas era amor
Dona do ar
Mas era amor
Dona do pau
(um black-out esconde a
suruba com a música grandiosa de final de saga)
CENA FINAL
(depois de um tempo em
silêncio; um foco destaca os três atores novamente)
ATOR/ATRIZ 1
Agora deu pra ser puta.
ATOR/ATRIZ 2
Ela é uma mulher livre. Diz
que virou feminista.
ATOR/ATRIZ 1
Coitada. Mal sabe que os
homens odeiam as feministas. Ridícula.
ATOR/ATRIZ 3
Vai sofrer pelo direito de
dar a própria buceta pra quem quiser. Coitada. Essa é sofrida na vida.
ATOR/ATRIZ 2
É. Coitada.
ATOR/ATRIZ 1
Tudo puta.
(a luz cai em resistência;
black-out)
FIM