DONA DO SOL

DONA DO SOL

PERSONAGENS
Dona
Juiz
Advogados
Promotores
Policiais
Júri
Repórteres
Cigana
Famílias
Dona Carla

CENA I

(quando as luzes se acendem, todos aguardam Dona responder alguma pergunta; um foco destaca a mulher bastante angustiada, olhando para a plateia e depois para os advogados; ela não está nervosa, está fraca e à beira de desabar; o juiz se ajeita incomodado com a demora; o advogado de defesa quebra o silêncio)

ADVOGADO
Dona, você pode falar agora. Eles querem saber o que a senhora tem a dizer.

DONA
Bom... eu não fico muito a vontade com as pessoas me olhando assim. Esse é um dos motivos. Eu gosto daquele lugar do jeito que é. Do jeito que era. Eu gostava daquele lugar porque lá era minha casa. (ela percebe que deve tentar de outra forma) Desculpe. Eu sei. Eu já entendi o que foi aprovado. Eu não quero mais contestar os senhores. (silêncio; ela não tem o que dizer então) Bom, é isso. Então é isso. Obrigada, por me darem essa lição de moral. Por me jogarem num lugar onde eu não queria ficar, num lugar onde eu vejo só a metade do sol de meio dia. (pausa) Mas obrigado por me fazer parecer uma pessoa melhor. Agora eu acho que a gente já pode ir, então. Eu tenho que fazer as malas.

ADVOGADO 1
Dona, as câmeras...

DONA
O que tem as câmeras?

ADVOGADO 2
Eles querem saber mais. Eles querem saber o que você tem pra falar.

DONA
Pra que? O que foi? Já ganharam. Acabou, gente. Eu fui despejada! Já foi. Vamos falar de outra coisa agora. Não tem nenhuma outra desgraça pra filmar, não? Dá licença.

ADVOGADO 1
Dona, por favor. Diga alguma coisa, qualquer coisa. É pro seu bem. Você precisa falar alguma coisa inteligente, se não você vai sair daqui e a sua vida vai ser um inferno.

DONA
Eu não tenho mais nada pra falar! O que você quer que eu fale? Eu já falei o que eu tinha pra falar.

ADVOGADO 1
Você quem sabe.

(Dona suspira contrariada; os Repórteres gritam perguntas e o juiz tenta colocar ordem no tribunal; Dona decide voltar para o púlpito e pega o microfone decidida)

JUIZ
Ordem! Ordem!

(a cena escurece e um foco destaca Dona; silêncio e suspense; Dona tenta procurar as palavras)

DONA
(terrivelmente dramatizado)
“Liberdade. Solidão.”

ATOR 1
Uh! Tosca!

ATOR 2
Cale a boca!

DONA
Eu não sei como começar um discurso, ok? Mas como eu tô me sentindo agora é isso. Falta de liberdade. Falta de solidão. Sim, eu gosto de ser sozinha, eu gostava de ser sozinha. (pausa) Eu entendi a lição. Tô tentando engolir os seus motivos de se voltarem contra a mim desse jeito, como se eu fosse uma monstra. Eu juro, tudo isso que aconteceu me fez pensar melhor na minha vida. Pode parecer papo de perdedor, eu sei. Mas eu tenho que me redimir só pra mim, só dentro de mim, não pra vocês. Eu tava pensando só em mim? Tava. Tava mesmo. Como todo mundo aqui presente. Cada um luta pelos seus direitos, não é mesmo? E o meu direito? Qual era o meu direito que eu exigi esse tempo todo? Qual era? O que eu queria? Eu só queria... (silêncio) Aquele pedacinho específico e único desse planeta que vivemos, que era meu de nascença, que batia o sol nos momentos certinhos da minha vida, quando a minha janelinha da sala brilhava com a potência da luz, e aí ficava aquela poeira bonita, brilhando, sabe? Que nem estrela, sabe? Foi isso que eu perdi. Eu perdi os detalhes. Eu perdi o que eu conhecia como “meu canto” nesse universo. E por que? Porque vocês decidiram que seria justo.

REPÓRTER 1
Você acredita que o seu sol, o seu prazer em adorar o sol, tem mais valor do que a vida de cem famílias?

REPÓRTER 2
O Brasil inteiro quer saber, Dona. Na sua nova residência não bate sol?

DONA
Aquele era meu canto! Minha terra! Tenho seis cachorros enterrados. Tenho cartas espalhadas pelo terreno. Histórias, lembranças. Tenho passarinhos enterrados por todo o lugar! Todo aquele sol era meu até vocês chegarem. Todo aquele riacho. Todo aquele alface. Aquele pé de acerola. Era tudo meu, e o sol tinha os seus melhores momentos naquele lugar. Nenhum lugar vai ser como aquele. Pode ter as mesmas quantidades químicas e as mesmas condições físicas que eu vou sentir a diferença. Vocês não devem entender isso, porque vocês são um bando de mochileiros. Eu cresci naquele lugar, tudo o que eu conhecia de mundo era aquele lugar. E você acredita que vieram me avisar uma vez? Uma cigana, veio me avisar.

(a Cigana entra dançando)

CIGANA
Mãe, dona do sol
Rainha da sua terra
Não chegava à cem metros quadrados
Mas era amor
Dona do sol

Mãe, dona do sol
Menina desde criança
Não chegava à um metro e sessenta
Mas era amor
Dona do sol

(a música se entristece; a Cigana pega Dona pela mão)

Mãe, dona do sol
A esperança é um perigo
Eu vejo, um dia aqui terá
Um condomínio
Cheio de ricos

E a dona do sol chorará
Será famosa no seu insulto
Famílias tirarão o seu sol
Também crianças e outros filhos

Adeus, sol
Adeus, sol
Adeus.

(a Cigana sai; Dona fica pensativa por um tempo; todos aguardam ela continuar)

DONA
Ela tinha razão. Quando começaram a construir eu nem imaginava. Eu fui burra, lógico. Eu até tinha gostado da ideia de ter vizinhos naquela distância razoável. Eu conseguia ver os pedreiros lá longe, trabalhando, fazendo a base do prédio, lá longe, no morro, no horizonte. Nem me importei muito, tudo bem, quer construir, constrói. Só que naquela hora eu não tinha percebido que a merda daquele prédio – desculpem pela palavra – ia ficar bem em frente, bem em frente do meu querido sol da tarde. Só fui perceber isso quando o prédio já tava pela metade. Eu falei: “ué, o que aconteceu?”. Corri pra janela e aí foi um drama, eu tremia quando eu percebi o que ia acontecer quando o prédio ficasse pronto. (pausa) A sombra, ficou certinha cobrindo o meu terreno. Desenhada, certinha. Como eu fui burra? Tava ali, na cara que isso ia acontecer. Era só eu ter medido e ter reclamado antes. Vocês viram como fica certinho, não viram? Vocês filmaram do helicóptero. Fica certinho o quadrado da sombra do prédio na minha terra toda. Como se tivessem feito de propósito. Logo eu. Dona daquele sol por direito genético, por herança, por sangue daquele espaço! Eu não queria ter arrumado a treta que eu arrumei, mas aquilo era tudo o que eu conhecia como vida. (Dona desmonta em um chora contido e sincero) E o pior é vocês necessitarem dessa minha humilhação aqui, pra eu conseguir me redimir com vocês. (silêncio) Me desculpe, aquelas famílias não mereciam o inferno que eu fiz da vida delas. Talvez eu tenha engolido muita escuridão nos meses que seguiram. Elas não mereciam tudo isso. Nem eu.

(um grupo de famílias com cartazes na mão entra em cena; cartazes com coisas como “Todos temos o direito ao sol”, “Não somos ricos”, “As crianças agradecem”, “Fora Dona do Sol”; um jovem ator pega o microfone e lê um depoimento)

ATOR 1
As nossas crianças agradecem a decisão desse júri. Queríamos dizer que não temos ódio da nossa ex-vizinha Dona do Sol. Queríamos dizer que não fomos a favor dessa guerra em nenhum momento. Como disse a construtora em depoimento, a sombra foi uma terrível coincidência, ninguém teve culpa disso. Nós queríamos deixar claro também, que as acusações de violência que essa senhora fez contra as nossas famílias não procedem. Se houve alguma violência, algum arranhão, algum desentendimento, foi sempre porque ela foi querer procurar encrenca com a nossa gente. Nós compramos aqueles imóveis, nós não tínhamos nada a ver com a briga dessa senhora.

DONA
Eu tinha que ficar aguentando eles gritando na igreja deles! Porque eles montaram um grupinho e construíram uma igreja lá! Gritando! Ficavam cantando alto, até tarde da noite, domingo de manhã! Teve horas que eu me irritei, poxa!

ATRIZ
Mentirosa!

ATOR
Deus é justo!

ATRIZ
Bruxa!

JUIZ
Ordem, ordem! Ordem!

(silêncio)

ATOR 1
Posso continuar?

DONA
Por favor.

ATOR 1
Independente da nossa divergência religiosa...

DONA
Independente o caralho.

(gritaria)

JUIZ
Ordem, ordem! Ordem, Dona!

DONA
Desculpe.

ATOR 1
Independente da nossa divergência religiosa, eu acredito que todos temos que lutar pelos nossos direitos. E queríamos parabenizar a dignidade na sua luta aos seus direitos, Dona do Sol. Você tinha o direito de fazer o que fez, todos somos livres pra lutar. Mas uns vencem e outros perdem. Obrigado.

(o ator se retira; as famílias aplaudem e gritam; eles saem comemorando; Dona está arrasada)

ADVOGADO
Bom, senhores. É só isso que temos a falar. Obrigado, e agora, por favor, deixem a vida da minha cliente em paz.

DONA
Esperem, agora eu quero falar mais.

(os outros atores reclamam entre si)

DONA
Eu não era dona de um prédio abandonado. Eu não era dona de um estádio de futebol. Eu não era dona de quilômetros de metros quadrados. Eu era dona de um cantinho afastado no meio do mato. Dava pra ver a cidade de longe, só. Quando eu nasci ninguém foi me avisar que eu teria que ser obrigada a me tornar uma mulher urbana, eu achei que fosse ter escolha nisso. Eu não era dona de riquezas impedindo que outras famílias tivessem também o seu direito a luz do sol. Era só eu e meu chãozinho, confortável e simples. Eu não imaginei que algum dia eu poderia ser um estorvo pra todas essas famílias, não era isso que eu planejava. Meus únicos planos era um chazinho a tarde, um cigarrinho e ver o sol se pôr. Eu não precisava de mais nada, eu não queria mais nada. Em um momento da minha adolescência eu cheguei a pensar que eu era a mulher mais tranquila e mais feliz desse mundo. Eu tinha tudo o que eu queria e precisava ali. Eu nunca precisei mais do que aquilo. (silêncio) Eles não são meus inimigos, agora eu percebo isso. Não existe amigo ou inimigo. Bonzinho ou vilão. Eu devo ser considerada uma bruxa no meio daquela criançada, quando eu passava algumas saíam correndo. Mas ninguém queria entender o meu lado também. Enquanto eu não fizesse uma bagunça todo mundo ia seguir a vida como se nada tivesse acontecido. (pausa) E no fim das contas fui chamada de insensível, fria, egoísta, Dona do Sol, Dona da Via Láctea, coxinha – porque eu queria tirar a moradia daquelas famílias – , enfim. Eu fui considerada a monstra, porque eu queria meu sol de volta.

TODOS
Mãe, dona do sol
Ex-rainha da sua terra
Não chegava a um metro e sessenta
Mas foi amor
Dona do sol

Mãe, dona do sol
Egoísta e mal amada
Maluca, solteirona e solitária
Mas era amor
Dona do sol

(a música entristece)

Mãe, dona do sol
A nossa vida é mais que um canto
O mundo não é justo mesmo
Não sofra a dor
Dona do sol

JUIZ
Dona do sol, com tudo o que eu aprendi nessa vida, concluo que nós aprendemos com as desgraças na nossa vida. Acredite. Leve isso como um ensinamento de vida. Pense agora nas crianças que terão a chance de apreciar o sol que você apreciou a vida toda, quantas crianças que vão aprender a viver naquele espaço do planeta, assim como você aprendeu. Temos que tirar o lado bom das coisas ruins que acontecem com a gente. Talvez você tenha mais mundo pra conhecer do que aquilo, do que aqueles pôr dos sóis. Talvez seja hora de andar pra frente as oportunidades de se ter um pôr do sol único. Não tô dizendo que você já está velha, pelo contrário, estou dizendo que você não precisa ficar estagnada num prazer de espera de uma única situação. Todo tempo é hora de renovação. A lua é bonita, também, você já olhou pra ela? Ela não faz a poeira brilhar como a luz do sol, mas ainda assim é lindo de ver o topo das árvores brilhando a luz dela, não é lindo? Pense bem, Dona do Sol, pense bem. Não se remoa a vida toda por essa perda. (pausa) Enfim. Companheiros?

(todos se levantam e saem deixando Dona sozinha; ela fica em silêncio por alguns segundos, num foco onde a poeira está brilhando; ela se emociona com a cena e se contorce com as lembranças; cantarola a música Mãe Dona do Sol, abraçando o próprio corpo)

(black-out)


CENA 2

(homens entram construindo uma antena surrealista; uma antena razoavelmente grande; um deles entra com um grande computador e instala a antena na máquina; eles cantam)

TODOS
Todos pagam pela água que cai do céu
Tolos choram essa mágoa, mas não vão falar
Nem o ar que eu respirar
Nem o vento que entrar
Tudo está pré-programado
O tempo privatizado
Não adianta o pau quebrar

(Dona do Sol entra dançando entre eles)

TODOS
Mãe, Dona do Sol
Decidiu pôr a boca no trombone
Mãe, Dona do Ar
Comunitária, ela comprou um microfone

Com a desgraça ela aprendeu
Sua pirraça, desapareceu
O sol nasceu pra todos e então terá que ser
Se eu não tive escolha, ninguém também vai ter

Mãe, Dona da Rádio pirata da Vila
De homem, menino, mulher e menina
A puta liberdade agora ela deve espalhar
Artista se transforma quando o mundo acabar

DONA
Sabe, eu percebi que nós humanos nascemos ruins. Já nascemos ruins. Nascemos achando donos de algo , que um pedaço de algo nos pertence por direito de herança. “Essa aqui é MINHA mãe e não olhe pra ela! Essa aqui é meu. É meu. É minha esposa. Minha mulher, meu marido. Meu cachorro. Meu filho. Meu brinquedo. Meu. Meu. Meu. Minha comida, meu espaço – mesmo que eu não esteja usando, o espaço é meu. Não interessa! Se eu quiser deixar isso daí apodrecer, eu posso, porque é meu – tá aqui escrito nesse papel”. As pessoas são assim. Elas preferem que esteja sobrando e estragando do que repartindo. (pausa) Sobrava sol na minha janela. Eu fui feliz por longuíssimos anos, quase quarenta anos, veja só. E a vida foi boa, não posso reclamar, de jeito nenhum. Talvez eu tenha me apegado ao sol num exagero, numa poesia um tanto clichê, num amor um tanto classicista e... sei lá. Não entendo muito bem dessas coisas. Mas eu nunca tive interesse por homens. Nunca tive interesse em sair daquele lugar, não fui uma menina rebelde, fui sempre uma menina direita. Meus pais só tiveram a mim. Filha única e louca solitária solteirona que fez um drama todo por causa de uma sombra. (ri) Meus pais morreram juntos, minha mãe morreu no dia quinze de janeiro de noventa e nove e meu pai no dia dezesseis. Dormiram e não acordaram. E eu só tinha o sol. Ridículo, né? Os poetas vão falar, “Nossa, que lindo. Que história linda, a dessa moça”. (pausa) Mas eu fui ruim. Eu sou uma pessoa que assumo quando eu fui do mal. Eu só pensei em mim mesmo. Eu taquei pedra naquelas crianças, sim. Elas estavam me xingando, eu fiquei irritada! (ela se irrita) Só que eu não acertei nenhuma pedra e eles me acertaram! Acertaram três pedras nas minhas costas! E eu fiquei passando como a que começou a tacar! Ninguém nunca vê os dois lados da coisa. (pausa) Eu também tentei atear fogo na igreja deles mesmo, tentei, confesso. Eu juro por deus que eu fui fazer uma visita à igreja deles naquele dia, eu ia entrar como alguém querendo fazer paz, querendo me entender com eles. E eles começaram a gritar e a falar que eu tava endemoniada, que eu tava com pomba gira dentro de mim, que eu era macumbeira que tinha que me converter! “Ora, a minha religião é a filosofia, meus irmãos!” Eu gritei. Eles só podiam estar de sacanagem com a minha cara. E o que foi que eu fiz? Porque eu também sou filha de deus. Fingi. Fingi que tava endemoniada e enchi aquele lugar de gasolina e taquei fogo. (pausa) Eu não enchi tanto, joguei só um pouquinho de gasolina na frente do púlpito, mas taquei fogo! E aí eles se assustaram! Fizeram uma bagunça! Chamaram a imprensa, falaram que estavam sendo atacados dentro da própria igreja. Oras! Se eles realmente acreditassem que eu tivesse com o capeta no corpo, o que a polícia ia poder fazer com isso? Se eles são os filhos de deus, por que eles não me ajudam, então, pô? Me ajudem a me libertar desse satanás, então. Eu quero ver! Poxa.

(um repórter enfia a cabeça pra dentro de cena)

REPÓRTER
Só uma perguntinha, Dona. Por que você carregava gasolina quando entrou na igreja em nome da paz?

DONA
(pensa e depois diz) Porque eu também sou filha de deus.

(silêncio)

REPÓRTER
Entendi.

DONA
Eles já falavam mal de mim! As crianças deles tacavam pedras na minha janela! Eles tinham me roubado o amor da minha vida – que eu não vou repetir o nome pra não soar poesia. Eles acabaram com toda a minha tranquilidade!

REPÓRTER
É. Você não parece mesmo uma mulher equilibrada. Desculpe te lembrar, Dona. Não sei se você sabe. Mas o sol nasceu pra todos.

(silêncio; Dona faz cara de óbvio; irritada)

DONA
(falsa) Nossa. Obrigada, querido. Puxa, se você não falasse.

(silêncio)

DONA
Agora, por favor...

REPÓRTER
Você sumiu dos holofotes, a mídia esqueceu da Dona do Sol e da história da sombra. O que você anda aprontando por aí? Qual classe social e/ou religiosa você pretende recriminar dessa vez? Já tá treinando tiro ao alvo pra acertar as crianças sem chance ao erro?

DONA
Oras, faça-me o favor!

REPÓRTER
O Brasil inteiro quer saber.

DONA
Quer saber porque vocês ficam fuxicando. Vocês ficam fazendo toda essa zoeira. Se eu fosse rica, isso jamais aconteceria. E aí que está o problema.

REPÓRTER
Pior ainda. Pobre humilhando pobre.

DONA
Queridinho, aquele pessoal não era pobre, não, não sei se você sabe. Você foi dar uma olhada no apartamento deles que eles compraram? Não era prédio de ajuda social, bonito. Não era esses prédios populares pra ajudar famílias carentes, não. Eram todos bem de vida. Eles tem o dobro do que eu tenho. Lógico que eu entendo que eles podem ter ralado pra conseguir comprar aquela merda de apartamento, e eu não ralei nada na minha vida pra ter aquele espaço, que era fruto de uma herança. Mas e daí? Quem julgou e demarcou esses espaços antes? Qual foi o cajado divino que deu aval pra uns construírem aqui e outros construírem ali? Eu não participei de nenhuma reunião pra fazer acordo sobre a divisão desse planeta que nascemos todos juntos, e iguais e pelados! (se acalma) Desculpe. Agora que eu já passei por toda essa situação e decidi focar a minha vida em comunicação, com tudo o que eu aprendi, eu posso dizer que eles tem o direito de lutar pelo seu espaço, sim, assim como eu. Todos temos esse direito. Alguns lutam por direitos fúteis, outros por direitos extremamente necessários – que é um absurdo ainda termos que discutir, com alguns direitos óbvios que ainda são negados por aí. Uns acham que lutam, uns dizem que lutam. E é bom que surja cada vez mais esses embates, esse choques de ideias. Porque é assim que a gente vai se moldando. Mesmo com aqueles que morrem. A gente vai se moldando com a dor de perde-los, de sentir e perceber que isso daqui é passageiro. A gente vai se moldando, porque é assim que surgiram as coisas. Das catástrofes. Os povos se reerguem renovados. Dos choques de estrelas. Dos choques de planetas e meteoros. Tudo o que a gente é ou foi é feita da mesma matéria de diversos meteoros que caíram ao longo dos milhões de anos bem antes de existirmos. Somos feito da mesma coisa. Só montados diferentes, que nem um quebra-cabeça de possibilidades infinitas. (acorda de um sentimentalismo profundo e volta a realidade) Era maconha mesmo, que eu fumava nos fins de tarde. Minha religião é a filosofia. Eu decidi que eu não ia mais falar sobre isso. A luz do sol não é mais meu foco hoje em dia. Eu agora vivo no cu da escuridão.

(os outros atores entram como bailarinos desses musicais grandiosos; Dona do Sol assume a frente da coreografia com um microfone; tudo com um pouco de ironia por ser musicado)

DONA DO SOL
“O mundo caiu
O poço se abriu bem fundo
Eu tive que me redimir

Encontrei sentido
Eu consegui fazer amigos
Eu tive que me redimir

O passado é passado
Agora sou de dona rádio
Não vou mais reclamar
No leite derramado
Eu tenho espaço pra falar
Pra diálogos sustentados
E amar

(todos saem e Dona assume uma posição de radialista)

DONA
Bem, amigos da rádio Dona do Ar! Estamos começando mais um bate boca, quebra pau, come come que vocês já viram nesse caralho de mundo, minha gente! Hoje a cobra vai fumar, molecada! Com a internet se espalhando cada vez mais, dando mais espaço pras pessoas falarem as suas merdas, tudo agora está censurado! É isso mesmo minha gente! O politicamente correto impede que façamos nossas críticas à religião, política, e ao resto de gente que merecia uma boa cutucada! Óbvio que há dois lados da moeda. Até consigo entender os motivos dessa censura repentina, entendo como muita gente esteve abusando da liberdade de expressão pra humilhar outras pessoas, pra escrachar, deixar a pessoa na merda. Igual aquele gordinho famoso que tirava sarro de gordinhas desconhecidas. Umas piadas racistas e homofóbicas defendidas no direito à liberdade de expressão. Então, se for pra ser justo, se for pra que os idiotas se calem, fico calada também! (pausa) Só que não! Não vou ficar calada, ficar calada é o meu cu! Ficar calada é o caralho da sua mãe, seu filho de uma puta que inventou essa ideia de que o problema tava na liberdade de expressão! Deixa os idiotas falar, porra! Deixa aquele humorista – (irônica) engraçadíssimo, ele – aquele que acha que é o Jô Soares, deixa ele falar! As pessoas aprendem com a dor, com as ofensas. Ele aprende com as retaliações. Todo mundo aprende! Liberdade pra falar merda todo mundo tem, mas tem que arcar com as consequências depois. Liberdade pra ser inteligente também todo mundo tem. Com mais ética, mais seriedade, com mais clareza, mas ainda assim, esses que escolherem esse lado, terão que arcar com os radicais que falam merda por aí, porque eles estariam no direito deles à rebate, do jeito que eles quiserem também. Todos temos o direito de ataque, de rebate e de defesa. Percebe como é difícil? Lógico que eu penso o como é duro ser humilhada em rede nacional, num post de alguém famoso e eu, como ser humano, não faria isso tipo de coisa. Mas aquelas pessoas que tem esse sangue frio, que gosta de humilhar e tirar sarro de algumas diferenças, eles existem ali por algum motivo. Mesmo que o motivo seja nos chocar, nós, de esquerda – que eu digo. Todo mundo tem direito a lutar por aquilo que é certo. E a gente vai se tornando redondo e pleno com esses choques de meteoritos. Das piores catástrofes nascem as melhores constelações. E no fim das contas, que vença o mais forte, repito aqui, mais uma vez. (pausa) Vamos agora pra nossa primeira participação do dia. Dona Carla. Alô, Dona Carla? A senhora está me ouvindo?

(Dona Carla aparece em um foco)

DONA CARLA
Sim, estou ouvindo, sim, querida.

DONA
E então, Dona Carla? A senhora quer quebrar o pau em que? Você tem todo o tempo do mundo pra meter o cacete no que quiser. Vamo lá.

DONA CARLA
Eu tô tentando ouvir a Joven Pan aqui. E o seu sinal tá fazendo interferência no sinal deles. Com quem eu posso reclamar? Com vocês aí ou só com eles mesmo?

DONA
Dona Carla, essas rádios e televisões de grande porte monopolizaram todo o nosso ar, você sabia disso? Você sabia que eu não tenho aval pra estar falando aqui com a senhora? Eu não posso. Nós estamos pirateando sinal, pra conseguir ter espaço pra falar. Se a senhora ligar pra eles, você pode complicar aqui pra gente. E você tem o seu direito de foder o barraco, quebrar o pau. O direito é seu, faça o que quiser.

(silêncio)

DONA
Alô? Alô? Caiu?

DONA CARLA
Mas minha filha, não pode fazer isso, minha filha. Tem que ser direita. Cria juízo.

DONA
Ih, dona. Parece minha mãe falando. Eu obedeci a minha mãe e deu no que deu. Essa é a Rádio Dona do Ar.

DONA CARLA
E como é que fica?

DONA
Como é que fica? Fica assim. Esse espaço de ar é meu, é nosso. Estamos cada vez mais melhorando o nosso sinal, essa é a rádio Dona do Ar.

DONA CARLA
Mas eu quero ouvir a Joven Pan.

DONA
(grita) Mude-se de cidade! Mude-se de casa! Compre um rádio novo! Ouça pela internet! Foda-se! Aqui eu quebro o pau!


(Dona desliga a ligação, o foco de Dona Carla se apaga; Dona atende outra ligação logo em seguida) 

DONA
Rádio Dona do Ar, você pode quebrar o pau o quanto quiser, falar as merdas que quiser, com quem eu estou falando?

DONA CARLA
Moça, você não tá entendendo. (o foco se acende novamente) Eu tenho um grande carinho pelo programa que vai começar agora. Desde criança eu tenho esse costume. Não me faça perder o meu programa, moça. Por favor. A Jovem Pan está no meu coração.

(Dona desliga com cara de ódio; o foco se apaga mais uma vez)

DONA
Cada um que lute com suas injustiças na vida, não é mesmo, meus amigos?

(o telefone toca)

DONA
ALÔ? Fala, caralho!

DONA CARLA
(o foco acende) Moça, por favor. Desliga o seu sinal só das seis às oito. São duas horinhas.

DONA
Vai te catar, ô, Dona Carla! Vai ver se eu tô na esquina! Quer lutar pelos seus direitos, você tem todo o poder de ligar lá na Jovem Pan pra eles me denunciarem pra Polícia Federal. Vai! Eu não vou te impedir de fazer isso.

DONA CARLA
Mas eu não quero comprometer o lado de vocês. Eu era amiga na sua, mãe, Dona. Acompanhei todo aquele processo contra o prédio que construíram perto da sua casa. Eu torço pra que você consiga se redimir como pessoa de bom caráter. Mas você não pode querer ser dona de todo o ar. Piratear é crime, querida. (silêncio) Alô? Alô?

(Dona com muito ódio no coração, desliga a ligação em silêncio; o foco de Dona Carla se apaga)

DONA
Bem, amigos da Rádio Dona do Ar. Se você quiser ligar pra me esculachar também é bem vindo. Vale tudo, nessa putaria não existe censura! Vamos para a terceira e última ligação dessa noite e torcer para que não seja a nossa inimiga de estado Dona Carla Chata que te Pariu. Alô?

(um foco destaca um ator encapuzado)

ATOR
Alô?

DONA
Com quem eu falo?

ATOR
Não interessa. Não interessa com quem você fala. Vamos direto ao ponto, Dona de Tudo.

DONA
Uh, mais um ataque. Vamos lá.

ATOR
A sua glória vai acabar em pouco tempo, queridona. Tudo o que você conhece desse mundo vai acabar. Você decidiu ter essa vidinha de comunista retardada e tá atrapalhando gente grande. Não existe espaço pra gentinha como você, bonitona. Gente fraca, solitária, solteirona, morre fácil e ninguém dá conta. Você acredita que alguém ouve as suas expressões, Dona? Você acredita que alguém vai ouvir aquelas mensagens que você tentou enviar pro espaço? O que? Você agora quer ser dona do Universo, é isso? Pessoas como você não vão a lugar nenhum, Dona. Você pensa que a Rede Globo de Televisão, que a Jovem Pan, que a puta que o pariu, tem a força que tem porque foram vagabundos pirateadores? Que eles ficaram fazendo gaiato em sinal dos outros?

DONA
Não existia outros quando eles decidiram que seria deles. É só um espaço no ar.

ATOR
Eu não terminei de falar. Eu tenho todo o tempo do mundo, não tenho?

DONA
Vamo lá. Mas é só um espaço no ar.

ATOR
Um espaço no ar que não te pertence. Você é burra ou o que?

DONA
E por que não me pertence? Quem disse que não me pertence? Eu não participei de nenhuma reunião pra discutir qual parte do planeta é deles e qual é minha! Eu construí essa antena com o meu suor, com a minha criatividade! Eu tenho o direito por um espaço no ar.

ATOR
Você precisa desembolsar uma puta de uma grana pra conseguir esse direito, minha querida. Já chegaram antes de você nessa sua criativa forma de expressão.

DONA
Mas eu nasci no ano que nasci, oras. Não tinha como eu ter disputado antes.

ATOR
E não tem como você ficar roubando coisas que pertencem a outras pessoas. Aquelas pessoas também tem filhos. E os filhos do Marinho? Os filhos dos donos da Jovem Pan? Eles não precisam comer, também?

DONA
Daria pra todos nós comermos bem, se não fosse um ou outro querer ter mais que todo o restante.

ATOR
A vida não é justa mesmo. Você mais do que ninguém sabe disso. Você mesma tentou tirar o direito de cem família criarem seus filhos naquele prédio por uma desculpa de que era apaixonada pelo sol. Faz me rir. Mais do que ninguém você sabe disso.

DONA
Eu era uma insensível, tá bom? E eu perdi! Eu perdi, no fim das contas! Eu já aprendi com isso!

ATOR
Todo bandido diz se arrepender.

DONA
Hoje eu quero falar sobre o limite dos nossos direitos. É pra isso que eu montei isso daqui. Eu não sou bandida. Isso aqui é pra gente discutir o quanto é meu e o quanto é seu. O quanto eu tenho o direito de ofender e o quanto eu tenho o direito de rebater como ofendida.

ATOR
Você sempre consegue se fazer de vítima, não é mesmo? Coitada.

DONA
Não estou me fazendo de vítima. Não sou nenhuma coitada, não, senhor. Como é o seu nome mesmo?

ATOR
Não interessa o meu nome. Esquerdopata vitimista. Vai trabalhar! Fique esperta, queridona. É melhor você ficar esperta.

DONA
Eu não estou me fazendo de vítima. Eu não sou nenhuma vítima. Você tem a liberdade de me ameaçar e a mesma liberdade de vir aqui e me matar. Faça o que achar melhor, queridão. Eu aceito a sua dor de ofendido como justa. Você está no seu direito.

(silêncio)

ATOR
Olha, a minha mãe só quer ouvir o programa dela, entendeu? Ela ficou me enchendo o saco pra eu falar com você. Desliga o sinal só por duas horinhas, vai. Você não conhece a minha mãe, ela tá fazendo o inferno aqui em casa.

DONA
Eu não acredito nisso.

ATOR
É rapidinho. Ela ouve esse programa já faz tempo, vai.

DONA
Manda a Dona Carla buscar tratamento! Passar bem. (desliga; o foco se apaga) Eu já achei que fosse alguém da Polícia Federal. Ter rádio pirata dá até prisão, vocês sabiam? Mas eu sou uma pessoa que fui tão fudida na vida que vale o risco estar aqui com vocês. Eu estaria quietinha no meu canto de terra se não tivessem roubado o meu amor.

(Dona Carla entra nervosa)

DONA CARLA
Você faz muita cena, garota. Muito drama. Te arrumaram um sítio igualzinho ao que você tinha, com a mesma quantidade de sol, com os mesmos metros quadrados.

DONA
Não era o mesmo lugar.

DONA CARLA
Construíram a janela sob medida pra que o sol entrasse naquele exato momento da tarde. Até poeira eles colocaram na sua casa nova, Dona. Você virou uma rebelde sem causa por orgulho!

DONA
Não era o mesmo sol. Me mandaram pra puta que o pariu. Meu canto não era aquele, não tinha porque eu insistir numa réplica do que tinha sido a minha vida.

DONA CARLA
Frescura! Frescura! Você é cheia de querer tirar os direitos dos outros, menina. Se sua mãe fosse viva ela não ia gostar nadinha dessa que você se transformou.

(Dona, ofendida, desliga a antena)

DONA
Vá ouvir a sua Joven Pan, Dona Carla. Eu vou calar a boca.

DONA CARLA
Acho bom. Eu sabia que eu não ia precisar usar de força. Passar bem.

(Dona Carla sai)

DONA
Passar bem.

(silêncio amargurado)

DONA
Ela tá no direito dela. O mais forte sempre vence. Isso é lógica. Eu ia arrebentar a cara dela?

(de uma janelinha podemos ver a luz do sol entrando; vemos a poeira na luz; Dona arruma as suas coisas, derruba a antena com um único chute e sai em silêncio)

(black-out)


CENA 3

(um foco destaca três atores)

ATOR/ATRIZ 1
Dizem que ela virou uma sociopata.

ATOR/ATRIZ 2
Depressão faz isso com as pessoas. A justiça tarda, mas não falha.

ATOR/ATRIZ 3
Pra mim, ela gosta de se fazer de vítima.

ATOR/ATRIZ 1
Uma vagabunda dessas que tentou impedir que aquelas crianças tivessem um lar? Eu não sei como alguém pode perdoar uma pessoa dessas. Uma pessoa dessas não tem escrúpulo.

ATOR/ATRIZ 2
Mas ela não era rica, né?

ATOR/ATRIZ 3
Mas o acordo que eles fizeram, fez a construtora comprar outro terreno que vale o triplo. Ela se saiu bem de lá. E depois montou uma rádio pirata, ouvi dizer.

ATOR/ATRIZ 2
Não acredito.

ATOR/ATRIZ 3
Uma vez no crime, sempre no crime.
ATOR/ATRIZ 2
Talvez porque tenha sido criada em sítio.

ATOR/ATRIZ 1
Lutando por um espaço ao sol. Tem mais clichê?

ATOR/ATRIZ 2
Fala sério. Muito clichê.

ATOR/ATRIZ 3
E depois por um espaço ao ar.

ATOR/ATRIZ 2
Nossa. Muito clichê.

ATOR/ATRIZ 1
Muito.

ATOR/ATRIZ 3
E agora? O que será que ela vai aprontar dessa vez? Vai fazer um Titanic? Vai ter que dividir os mares com os icebergs, hein! Alguém avisa lá pra ela.

ATOR/ATRIZ 2
Ela não gosta muito de dividir as coisas.

ATOR/ATRIZ 1
E diz que é comunista, ainda. Hoje em dia ela diz que luta pelas causas sociais. Dá pra acreditar numa coisa dessas?

ATOR/ATRIZ 3
Todo bandido diz que se arrepende. Todo mundo se arrepende depois que fez merda.

ATOR/ATRIZ 2
Um absurdo!

ATOR/ATRIZ 1
Mas ela não tem cara de arrependida, não. Isso é vitimismo.

ATOR/ATRIZ 2
Gente, se tem uma coisa que eu odeio é gente que se faz de vítima.

ATOR/ATRIZ 3
Eu também.

ATOR/ATRIZ 1
Vamos ficar de olho nessa guria.

ATOR/ATRIZ 3
Vamos. Precisamos.

ATOR/ATRIZ 2
Antes que o mundo acabe.

(silêncio; elxs fazem cara de conspiração e o foco se apaga; uma multidão de transeuntes, numa noite de chuva, andam para lá e para cá. Os três atores (ou atrizes) procuram por Dona entre eles; eles finalmente dão de encontro com o Advogado de defesa)

ADVOGADO
Quem estão procurando?

ATOR/ATRIZ 1
Ninguém. Estamos curtindo a chuva.

ATOR/ATRIZ 2
Nós pensamos que podíamos reencontrar uma velha amiga aqui na chuva.

ATOR/ATRIZ 3
Você viu a Dona por aí? Ela era sua cliente, não era?

ADVOGADO
Era. É. Ela não quer mais se pronunciar. Ela aceitou ficar com o sítio idêntico que arrumaram pra ela. Ela diz que consegue enxergar o prédio que não existe. Ela ficou louca. Ela acha que o sol queima a pele dela. Ela tem repulsa daquela poeira agora. Ela quer tudo bem limpinho. Pegou uma mania de limpeza. Ela mandou tirar toda a energia elétrica da casa, e diz que não quer mais saber de televisão, nem de rádio, nem de ninguém.

ATOR/ATRIZ 1
Virou uma sociopata.

ATOR/ATRIZ 2
Uma xenofóbica. Tadinha.

ADVOGADO
Ela não quer mais saber de vocês e não quer mais ter a sua vida exposta. Ela quer ficar só. Quieta. Acho que daqui a pouco inventa um novo amor, uma nova inspiração. Tudo tem uma fase pra acontecer. Uma hora é a hora do gelo, outra hora é a hora do fogo. E aí a terra vai se moldando e se ressuscitando e se transformando. Assim é bom. Ela não quer mais saber de lutar por direitos nenhum. Ela tem medo de tirar o direito de outros por lutar pelos seus. Acho uma corajosa. Uma desistente corajosa. Uma boa militante da luta pela real liberdade.

(os atores riem falsamente)
ADVOGADO
E ela não quer mais exposição. Não quer que as pessoas comentem sobre ela, sobre os limites que deve tomar. E ela só vai conseguir isso em reclusão. Solteirona, solitária. Mais uma pergunta a fazer?

(silêncio)

ATOR/ATRIZ 1
Ela toma banho com água fria mesmo? E no frio?

ATOR/ATRIZ 2
Você sabe nos dizer se ela está com alguma paquera? Uma árvore, ou a lua dessa vez?

ATOR/ATRIZ 3
Uma flor? Ela tem cara dessas que se apaixona por uma flor.

ADVOGADO
Ela não quer mais exposição, mas sim, talvez ela já esteja na fase de descobrimento de um novo amor.

ATOR/ATRIZ 1
Quem leva comida pra ela nesse lugar?

ATOR/ATRIZ 2
Esse novo amor tem nome?

ATOR/ATRIZ 3
Ela não tem medo de morrer e ninguém lembrar?

(silêncio)

ADVOGADO
Ninguém vai lembrar de forma alguma. Uma hora não vai existir esse alguém. Pro sol, você pouco importa. Passar bem.

ATOR/ATRIZ 1
Meu amigo, menos poesia e mais discussões concretas. O que a gente tá querendo saber aqui é até onde ela vai com essa liberdade desenfreada? Qual o sentido disso tudo? O porquê disso tudo? Por que ser uma rebelde sem causa? (o Advogado sai) Qual a necessidade dessa loucura, dessa busca por esse conforto? Qual o sentido disso tudo? Alguém tem que me responder por que luta tanto assim por uma liberdade a ponto de desistir da própria pela dos outros. Que tipo de idiota faz isso? Alguém tem que responder qual a necessidade de termos uma pessoa assim no mundo? Qual a necessidade da existência dessa figura, dessa Dona do Sol? O que ela tem de mais? Pra mim isso é uma baita de uma hipocrisia, porque por ela aquelas crianças estariam morando embaixo da ponte, sem casa pra morar, por um luxo dela, por uma luz do sol.

(silêncio)

ATOR/ATRIZ 2
Fica calmo, amigo.

ATOR/ATRIZ 3
Talvez seria melhor a gente deixar ela em paz. Ela não tá fazendo mal nenhum agora. A rádio pirata acabou.

ATOR/ATRIZ 1
O que? Deixar ela se safar assim? Sem mais nem menos? Ela quis tirar a liberdade do mundo inteiro, quis tirar a liberdade da Joven Pan, que tem cem anos de credibilidade e conhecimento, quis tirar a liberdade daquelas crianças e agora a gente deixa a liberdade dela viver a vidinha dela assim? De mão beijada?

ATOR/ATRIZ 3
Mas se você pensar bem, ela perdeu todas as disputas. Ela perdeu. Ela decidiu perder. Desistiu. O advogado dela está certo.

(silêncio)

ATOR/ATRIZ 2
Eu acho que elx tem razão.

ATOR/ATRIZ 1
Viu? Ela não pode ficar impune!

ATOR/ATRIZ 2
Não. Eu acho que ELX tem razão. Eu acho que a gente devia deixar ela em paz. O advogado me convenceu um pouco também.

ATOR/ATRIZ 1
Nossa, mas parabéns, seus militantes de merda. Meus parabéns. A gente luta contra os injustos aqui na terra e vocês me vem com essa. Meus parabéns pra vocês.

ATOR/ATRIZ 3
É duro fazer justiça, meu bem. É muito duro fazer justiça.

ATOR/ATRIZ 2
Acho que a gente devia tentar se colocar na vida do outro. É difícil pra caralho esse troço, mas acho que a gente devia tentar.

ATOR/ATRIZ 1
Todo bandido se arrepende na cadeia, na hora que é pego, meus colegas! Não tem como a gente cair nesse vitimismo barato da poesia dessa porcaria! Vocês tão virando o que? O que é que tá acontecendo? A gente ter pena desses vagabundos? É isso que eu ouvi?

(ouvimos apenas a voz de Dona cantando)

DONA
Mãe, Dona de Ninguém
Às vezes foi só um mal entendido
Às vezes você era meu amigo
Aos treze eu já era sozinha
Colecionando a solidão

(Dona entra sambando, mas vemos uma tristeza em seu olhar)

DONA
Não tinha o que reclamar
Eu tive amor, também já vi o mar
Era a rainha da bateria
A vida é minha, de quem eu sou?

Mãe, Dona de Ninguém
Às vezes foi só um mal entendido
Às vezes você foi meu inimigo
Mil vezes eu pensei só na minha bunda
Pisoteei outro coração

Escancarei outro coração
Eu fuzilei outro coração
Despedacei outro coração
Acorrentei outro coração

(os atores 2 e 3 aplaudem orgulhosos)

DONA
Obrigada, gente. Obrigada.

ATOR/ATRIZ 1
(novela) Eu vou acabar com a sua vida, Dona do Sol. Escreva o que eu tô dizendo. (sai)

ATOR/ATRIZ 2
É inveja, querida.

ATOR/ATRIZ 3
Eu invejo você.

DONA
Obrigada, gente. Mas não precisa tanto.

ATOR/ATRIZ
Venham, idiotas! Vamos embora!

ATOR/ATRIZ 2
Vamos. Foi um prazer te conhecer, Dona do Sol. Eu também sou super a favor dos direitos humanos.

ATOR/ATRIZ 3
Tchau! Eu te sigo no Facebook!

(elxs saem)

DONA
Não precisa tanto drama, não. A vida já é muito dura pra ter gente achando que é uma novela. Tem gente por aí querendo “acabar” com a vida da outra, conspirando friamente pela vida da outra. Tem gente por aí querendo ter mais direito no espaço da calçada, ganhar mais salário pela mesma quantidade de suor. Tem gente por aí tapando janelas com mais concretos. Desculpem, mas se o nome disso é desenvolvimento social, então eu não sei mais de nada nessa vida. Se desenvolvimento é crescer asfalto e concreto, então pare o mundo que eu quero descer. (pausa) Já não tem pra onde correr, molecada. Já viramos uma panelona. Desenvolvimento social agora é dar prazer aos respirantes. Dar prazer aos que estão vivos, porque depois que morre não dá mais tempo. Aí já serão outros sofridos que estarão ditando as regras por aqui. Outras crianças que depois serão os chefes. Que serão os nossos líderes de estado, os nossos médicos, os mendigos, os bandidos, artistas, viados, homens de família, putas. Todos crianças. Todos aprendendo o que são pelo tempo que tiverem pra aprender, pelas coisas que deu pra aprender. Todos falhos. Todos ilegais, sem exceção. Todos lutando pelo espaço como um grande fungo cinza e nojento. É isso que somos e é isso que vamos continuar sendo. (pausa) Respirar e gozar são a única forma de ver beleza nessa disputa maluca.

(uma música sensual e a luz cai)

DONA
Depois de tudo isso, comecei a pesquisar sobre a luta pelos direitos da mulher. E eu encontrei uma nova paixão, sim. Estou amando como nunca amei antes. Mais do que o sol, acreditem. Mais do que o céu e do que o mar, pra completar a poesia. Eu encontrei algo que me completou de uma forma como nunca antes. Afinal, tudo o que eu mais queria era gozar do meu espaço na terra, por menor e mais úmido que esse espaço fosse. Não é mesmo? (suspense para a revelação) Como é que eu pude ter pensado em morrer virgem, minha gente? Como é que eu pude ter tido esse pensamento? Sexo, meus lindos! Sexo!  

(vários homens, todos nus, entram e se deitam com Dona que se entrega passivamente ao seu novo amor)

DONA
Hashtag, meu corpo, minhas regras.
TODOS
Mãe, dona do sol
Rainha da sua festa
Não chegava nem a dezoito centímetros
Mas era amor
Dona do sol

Mãe, dona do sol
Menina, que abundância
Nunca fingia, o orgasmo é relativo
Mas era amor
Dona do sol

Mas era amor
Dona do ar
Mas era amor
Dona do pau

(um black-out esconde a suruba com a música grandiosa de final de saga)


CENA FINAL

(depois de um tempo em silêncio; um foco destaca os três atores novamente)

ATOR/ATRIZ 1
Agora deu pra ser puta.

ATOR/ATRIZ 2
Ela é uma mulher livre. Diz que virou feminista.

ATOR/ATRIZ 1
Coitada. Mal sabe que os homens odeiam as feministas. Ridícula.

ATOR/ATRIZ 3
Vai sofrer pelo direito de dar a própria buceta pra quem quiser. Coitada. Essa é sofrida na vida.

ATOR/ATRIZ 2
É. Coitada.

ATOR/ATRIZ 1
Tudo puta.

(a luz cai em resistência; black-out)

FIM


DEUS SEX MACHINE

DEUS SEX MACHINE

ESPETÁCULO PARA TRÊS ATORES E TRÊS ATRIZES.

1º ATO

(em vídeo vemos imagens de larvas e grandes populações de bactérias e insetos; vemos o crescimento de um musgo em rápida velocidade, e também de um cogumelo; vemos as diversas formas de infestação das espécies, de formigueiros à, finalmente, prédios iluminados da cidade grande; vemos então um átomo, planetas, e por fim, um desses seres do mar que emite luz própria; letreiro mostra grandioso: DEUS SEX MACHINE)

(aos gritos, percebemos uma cena de sexo escandalosa; o vídeo desaparece aos poucos; as luzes acendem e um casal heterossexual trepa em um foco; eles apenas trepam e dividem a situação com a plateia)

(em outro foco, duas mulheres aparecem assistindo; elas comentam)

ATRIZ 1
Nossa, forte.

ATRIZ 2
Muito forte.

ATRIZ 1
Nossa, mas eu achei super forte.

ATRIZ 2
Exagero da juventude.

ATRIZ 1
E eles insistem ainda. Pesado, não é?

ATRIZ 2
Forte. Podiam ter avisado.

ATRIZ 1
Seria uma boa forma de publicidade. Enfim.

ATRIZ 2
Achei exagerado.

ATRIZ 1
Exageradíssimo.

ATRIZ 2
Podiam ter colocado em sombra.

ATRIZ 1
Podiam ter deixado mais singelo. Dá pra entender com os símbolos. É até mais poético.

ATRIZ 2
Exagero.

ATRIZ 1
Tem que ser muito boa a cena pra justificar um negócio desses já de cara. Não precisava.

ATRIZ 2
Todo mundo já fez isso. Foi-se essa época.

ATRIZ 1
É, todo mundo já fez isso.

ATRIZ 2
Nossa, mas o ator tem fôlego, né? Ele não deixou um segundo sem bombada. Que exagero.

ATRIZ 1
Será que tá enfiando de verdade?

ATRIZ 2
Lógico que não. Esse cara é gay.

ATRIZ 1
Não é. É?

ATRIZ 2
Repare.

(silêncio; ouvimos apenas os gemidos do casal enlouquecido)

ATRIZ 1
Só falta a crítica também, né? Eles tão querendo criticar o quê com isso?

ATRIZ 2
Sim, falta embasamento. É só cena.

(o ator 1 retira uma bíblia de algum lugar e continua a meter lendo)

ATRIZ 1
Não acredito nisso.

ATRIZ 2
O que é?

ATRIZ 1
É uma bíblia aquilo. Queria ver eles fazerem isso com alcorão. Já não aprenderam sobre respeito depois de tudo que aconteceu com aqueles piadistas franceses?

ATRIZ 2
Pode mais clichê, gente? Esse assunto de novo!

ATRIZ 1
Ah, isso já passou dos limites.

ATRIZ 2
Eu acho que independente de religião, a gente tem que respeitar.

ATRIZ 1
Eles só estão querendo chamar a atenção.

ATRIZ 2
Ganhar a plateia por apelação. Fácil assim. Pra chocar.

ATRIZ 1
Foi-se essa época. O vídeo foi bonitinho e tal, interessante, mas fala sério.

ATRIZ 2
É. Até parecia que pudesse ter uma discussão. (se irrita) Goza logo, caralho! Ninguém demora tanto assim.

(o casal goza deliciosamente sincronizado)

ATRIZ 1
Nossa.

ATRIZ 2
Nossa.

ATRIZ 1
Que exagero.

ATRIZ 2
Forte ele, né? Que desperdício.

ATRIZ 1
Exageradíssimo.

ATRIZ 2
Ganharam a plateia fácil.

ATRIZ 1
É fácil ganhar a plateia nos dias de hoje.

ATRIZ 2
Só faltou um dueto afinado.

ATRIZ 1
Só pra serem mais vendidos.

(o casal, já preparado, inicia um dueto musical perfeito; pode ser uma música romântica qualquer, ou pode ser a sugestão a baixo)

ATOR 1
“Never knew I could feel like this
Like I have never seen the sky before
I want to vanish inside your kiss
Every day I love you more and more
Listen to my heart, can you hear it sings?
Telling me to give you everything
Seasons may change, winter to spring
But I love you until the end of time

Come what may
Come what may
I will love you until my dying day

ATRIZ 3
Suddenly the world seems such a perfect place
Suddenly it moves with such a perfect grace

OS DOIS
Suddenly my life doesn't seem such a waste

ATRIZ 3
It all revolves around you

OS DOIS
And there's no mountain too high
No river too wide
Sing out this song and I'll be there by your side
Storm clouds may gather
And stars may collide
But I love you until the end of time

Come what may
Come what may
I will love you until my dying day

Oh, come what may, come what may
I will love you, I will love you
Suddenly the world seems such a perfect place

(as atrizes, extasiadas, se beijam românticamente)

OS DOIS
Come what may
Come what may
I will love you until my dying day

(música: Come What May – Moulin Rouge)

(silêncio; os atores agradecem se houver aplausos e saem de cena; as duas atrizes estão abraçadas)

ATRIZ 1
Meu deus, e em inglês!

ATRIZ 2
Podiam ter cantado uma música em português.

ATRIZ 1
Sim, deviam.

(elas se abraçam chorando)

ATRIZ 1
Eu amo a liberdade de expressão.

ATRIZ 2
Eu também amo! Mas que falta de respeito com o próximo!

(um ator vestido de Osama Bin Laden entra em cena)

OSAMA
(feirante) Lápis, caneta e lapiseira! Bala Halls e bandeirinha da paz!

ATRIZ 1
Me vê uma lapiseira número cinco.

ATRIZ 2
Eu quero uma bandeirinha da paz.

OSAMA
Eu tenho caderno e fichário também. Posso conseguir algum tablet com alguma meia hora.

ATRIZ 2
Obrigada, só a bandeirinha.

ATRIZ 1
Acho bonita essa sua iniciativa, sabia?

OSAMA
Que iniciativa?

ATRIZ 1
De largar o mundo do crime e tentar trabalhar dignamente.

OSAMA
Eu só sou um cara vestido de Obama, dona. Isso aqui é uma fantasia.

ATRIZ 1
Mesmo assim eu acho bonito. Parabéns, moço.

ATRIZ 2
Eu também acho bonito. Pra quebrar a imagem de que eles não querem trabalhar. Nem todo mundo é terrorista e vagabundo naquele lugar, né? A gente tem que acabar com os preconceitos.

ATRIZ 1
Eu não suporto gente preconceituosa.

OSAMA
Sim, sim.

ATRIZ 2
Enfim.

ATRIZ 1
Você crê naquela religião lá?

OSAMA
Oi?

ATRIZ 1
Sua religião. Você é católico?

OSAMA
Não, não. Não sou não.

ATRIZ 1
Não é católico ou não é muçulmano?

OSAMA
Nenhum dos dois.

ATRIZ 1
Eu sou católica.

ATRIZ 2
Eu sou espírita.

ATRIZ 1
Ó, a gente convive bem. Ó.

(elas se abraçam)

ATRIZ 2
Viu?

OSAMA
Minha mãe era católica e ela falava que quem era espírita ia pro inferno.

(elas riem se olhando sem graça)

ATRIZ 2
Não, não é nada disso.

ATRIZ 1
Jesus tem uma hora pra abrir o coração de todo mundo. Cada hora, pra cada um.

(silêncio)

ATRIZ 1
Enfim.

ATRIZ 2
Como assim?

ATRIZ 1
O que?

ATRIZ 2
Você dizendo até parece que ainda vai dar tempo de eu ver que estou errada e que logo Jesus abre os meus olhos pra sua verdade, é isso que você quer dizer?

ATRIZ 1
Não isso. Mas ainda dá tempo mesmo de você entender. Jesus tem um tempo pra todos.

ATRIZ 2
Eu quem digo: ainda dá tempo de VOCÊ entender! Quem sabe Jesus abre os SEUS olhos para a verdade.

ATRIZ 1
Na bíblia tá escrito que não devemos invocar espíritos.

ATRIZ 2
Também tá escrito que não devemos comer carne de porco!

ATRIZ 1
Mas isso é no velho testamento, sua burra!

OSAMA
Não vamos brigar por besteira, suas lindas. Vocês são amigas, esqueceram?

ATRIZ 1
Ela é burra! Tá na cara! Tá no livro, pra quem quiser saber! Só precisa de um pouquinho de consciência sensata pra entender.

ATRIZ 2
Ai, cale essa boca! É isso que eu odeio em alguns religiosos. Essa certeza da verdade.

ATRIZ 1
Você também disse que eu um dia vou entender a sua verdade, querida. Já esqueceu?

ATRIZ 2
Eu disse porque você disse. Me dá uma bala, moço. Você vende cigarro?

OSAMA
Sim.

(entrega um cigarro e acende como um cavalheiro)

ATRIZ 1
Me vê um também.

OSAMA
Seus deu abomina os vícios, não abomina?

ATRIZ 1
Eu sou católica de nascença, mas não sou aquela que se diga “nossa, que praticante”. E o que você tem com isso? Só deus pode me julgar. Espíritas também abominam o vício. Fala pra ela!

OSAMA
Desculpa.

ATRIZ 2
Hipocrisia de merda.

ATRIZ 1
Olha quem fala. Você psicografa, querida? Vai fazer macumba pra mim agora?

ATRIZ 2
Ai, cale essa boca!

ATRIZ 1
Ué, só fiz uma pergunta.

ATRIZ 2
Ignorante.

ATRIZ 1
Agora eu que sou a ignorante. Fala sério.

(silêncio)

ATRIZ 2
Em que deus você acredita, moço? Você não é ateu não, né?

OSAMA
Não, não sou ateu não.

ATRIZ 1
Ainda bem.

ATRIZ 2
Que deus acredita, então?

OSAMA
Bom, é complicado.

ATRIZ 1
Temos tempo. Eles pagaram pra estar aqui.

OSAMA
Bom, o deus que eu acredito ainda não existe. Eu só tenho ele idealizado na minha mente ainda.

ATRIZ 2
Como assim?

OSAMA
É complicado.

ATRIZ 2
Temos tempo, caralho. Eu fiquei interessada.

OSAMA
É complicado explicar. Mas se querem saber qual é a minha opinião sobre qual deus ESTÁ vigente nessa nossa era, eu posso tentar palpitar.

ATRIZ 2
Como assim “deus vigente”?

OSAMA
Bom, pra mim, deus é a força que comanda, certo?

ATRIZ 1
Certo. Óbvio. Deus comanda tudo e todos. Ele sabe de tudo.

OSAMA
E ele age de acordo com a fé das pessoas, certo? O que faz as pessoas se moverem, certo? Que é a fé, o desejo.

ATRIZ 1
Óbvio, todo mundo sabe disso. Jesus disse: a tua fé te curou.

ATRIZ 2
E até uma parte da física científica tem percebido isso. O poder da mente.

ATRIZ 1
Disso eu já não sei.

ATRIZ 2
Se Maomé não vai a montanha, a montanha vem até Maomé.

OSAMA
É exatamente tudo isso. Eu acredito que o deus perfeito ainda está por vir...

ATRIZ 1
Sim, em breve Jesus voltará para nos salvar! Pode apostar. É nisso que acredito.

OSAMA
(continuando) ...nas nossas mentes biológicas de seres evoluídos dos primatas. Ele vai voltar nas nossas inspirações.

ATRIZ 1
Ah, mas então você não acredita em deus! Você é ateu sim! Eu não vim dos macacos, se vocês vieram problema é de vocês! Ateu!

OSAMA
Eu não sou ateu. Eu acredito na força. Por isso mesmo que ouso dizer que o deus vigente de hoje é o... (suspense)

(silêncio)

ATRIZ 1
Jesus. Eu não tenho dúvidas.

ATRIZ 2
Não faça drama, diga logo!

(Osama estala os dedos e ouvimos vários trechos de músicas seguidas: “Dinheiro na mão é vendaval”, “Eu não preciso de muito dinheiro, graças a deus”, “Grito ao mundo inteiro, não quero dinheiro, eu só quero amar”, entre outras nesse sentido)

ATRIZ 1
Ah, tá bom. Você é comunista, é?

ATRIZ 2
Eu achei que você estivesse falando sério, não fazendo mais uma crítica nesse espetáculo experimental de vocês aí.

OSAMA
Eu tô falando sério.

ATRIZ 2
Não, sim, tudo bem! É legal a analogia e tal, mas eu achei que você estivesse falando da força maior que rege tudo, entendeu? Deus.

OSAMA
Pois bem, a força maior que move os humanos americanos é o que?

ATRIZ 1
Jesus!

ATRIZ 2
Ai, cale essa boca!

ATRIZ 1
Nos estados unidos a maioria é cristã!

OSAMA
Eu disse americanos no sentido de toda a cultura ocidental. O que nos move nos dia de hoje é o dinheiro. Trabalhamos e vivemos chupando as bolas dele.

ATRIZ 1
Que horror! Como assim? Eu não! O dinheiro é do diabo e não de deus! Se fosse de deus não ia ter esse negócio aí de chupando as bolas, não! Deus só faz coisa boa, imbecil! Coisas de deus! Vocês precisam apelar, toda vez? Que tipo de liberdade poética tem isso?

ATRIZ 2
Mas – querido, não ligue pra ela. Eu não estava falando de realidade, eu estava falando de sobrenatural. De um deus sobrenatural, entendeu?

OSAMA
Não, não entendi. A força que move é deus. A força maior que existe na nossa era para o nosso estilo cultural é o dinheiro sem sombra de dúvidas. Seis dias de uma semana de sete, dez horas de um dia de vinte e quatro, e tem gente que ainda faz dois turnos pra se segurar na vida. Consegue entender maior loucura perder a vida fazendo uma coisa que odeia por um dígito no banco que se converte em alguns luxos desnecessários, de vez em quando e só de sábado?

ATRIZ 1
É porque a gente tem que guardar o domingo.

ATRIZ 2
Eu entendo o que quer dizer. Mas eu acho que eu prefiro essa vida assim. Prefiro ter uma prateleira de opções de comestíveis no supermercado do que ter que plantar e matar o que eu quiser comer. Como assim “luxos desnecessários”? Eu não vejo luxo como coisas desnecessárias. A gente tem que aprender a ver que o capitalismo trouxe umas folgas pra vida; eu não preciso cortar uma árvore pra fazer uma porta, eu vou lá e compro a porta pronta. Eu gosto disso, talvez tenha sido a ideia que mais tenha funcionado até agora, mesmo com todos os problemas, pra um pouco de conforto.

OSAMA
Conforto? Você gosta disso porque tá viciada. Se você tivesse desprivilegiada na condição, talvez você tivesse outra opinião. Quando eu era criança, se eu quisesse comer uma Passatempo, eu tinha que roubar o mercadinho que tinha perto de casa.

ATRIZ 1
Meu Deus. Roubar não é certo

OSAMA
Tomei muito cassete já.

ATRIZ 1
Acho bonito a sua iniciativa de largar o crime e trabalhar dignamente. Todo mundo tem uma chance.

OSAMA
Eu nunca saí do crime, dona. Tudo isso que eu vendo é contrabandeado. A questão é que o que é crime pro estado, não é crime na rua pelada. Manjaram?

ATRIZ 1
Toma de volta essa porcaria então, vagabundo! (joga a lapiseira) Você tem que avisar essas coisas! Coloca uma plaquinha pra gente saber. Você acha que a gente chegou onde chegou sendo vagabundos, contrabandeando?

OSAMA
Eu não vou devolver o dinheiro, dona.

ATRIZ 1
Enfie no cu! Não quero saber. Católicos não possuem problemas com dinheiro, meu lindo.

ATRIZ 2
Então você também trabalha para o deus dinheiro, não é? Você contrabandeia pelo dinheiro. O que você tá falando?

OSAMA
Lógico. Quer dizer que agora eu não posso ter uma televisão, um computador? Sendo que é a única coisa que se tem pra fazer quando chega de noite. Eu também sou nascido nessa era, queridona. Também só temos os mesmos desejos e sensações de conquistas, que a gente, aqui desse lado, aprende a invejar desde sempre de vocês, loiros e ricos.

ATRIZ 2
Fácil reclamar. Ele é comunista mesmo. Trabalhe que daí você consegue.

OSAMA
Eu não reclamei! Vocês queriam saber o que eu acredito.

ATRIZ 2
E você distorceu tudo!

OSAMA
E eu não sou comunista! Não me nomeie, porra!

ATRIZ 1
Calma, não precisa ficar violento.

ATRIZ 2
Era só dizer: “não, eu não acredito na força sobrenatural”. Pronto. Calma.

OSAMA
Mas eu acredito na força sobrenatural. Não teria como eu ter respondido outra coisa. A resposta que eu dei foi aquela. Lidem com isso. Pronto.

(silêncio)

ATRIZ 1
Você é um rapaz muito mal educado. Você não precisa falar assim com as pessoas.

ATRIZ 2
Um desnecessário.

ATRIZ 1
Mas fique tranquilo, meu amigo. Deus tem um tempo pra cada um.

OSAMA
Sim. Tem.

(silêncio)

ATRIZ 1
Enfim. Vamos?

ATRIZ 2
Vamos. Eu cansei dessa bagunça aqui. Aplausos! Vai!

(uma sirene de polícia com barulhos de tiros; um casal entra como típicos protagonistas de filmes de ação, atirando para fora em uma cena com bastante efeitos especiais; ela, bem gostosa com a calça colada e ele bem cafajeste; as atrizes 1 e 2 se jogam no chão pra se proteger; Osama dança entre as balas)

BANDIDA
Acho que a gente conseguiu despistar eles. Isso daqui é um bom lugar. Veja, meu amor.

BANDIDO
(para as atrizes) Vocês duas, descarreguem o caminhão. Você (aponta para Osama), tire essa roupa ridícula.

OSAMA
E eu vou ficar pelado?

BANDIDA
(estapeia a cara de Osama) Você é surdo? Tire a roupa.

BANDIDO
O que estão esperando? Vão descarregar o caminhão!

(as atrizes saem tremendo; Osama retira a roupa e vira Ator Pelado)

BANDIDO
Assim que eu gosto. Manda quem tem revólver, obedece quem não é retardado.

BANDIDA
Aqui tem terra pro cultivo. Dessa vez vai dar tudo certo, meu amor.

BANDIDO
Vamo quebrar toda essa merda. Eles se foderam, baby. Eles se foderam.

BANDIDA
E depois sexo, e mais sexo, e mais sexo!

(eles se beijam enlouquecidamente; as atrizes entram arrastando sacos pretos grandes; interagem ciumentas com a cena e saem novamente)

BANDIDA
Esses podem ser nossos escravos. Eles não são imbecis. (se aproxima do Ator Pelado observando-o; enquanto o Bandido se ajeita em uma poltrona) Você quer uma boquete, querido?

ATOR PELADO
Se for possível...

BANDIDA
Cale a boca, idiota! Querido?

BANDIDO
Por favor, seria maravilhoso. (coloca o pau pra fora)

BANDIDA
(para o Ator Pelado) Ande, chupe o pau dele.

ATOR PELADO
O que?

BANDIDA
(estapeia a cara dele) Você é surdo? Eu mandei você chupar o pau dele, pagar uma boquete, fazer um sexo oral. Você é burro ou é surdo? Meu lindo tá precisando de um relaxamento, deve ter matado uns cinco ou seis garotos do seu estilo hoje.

BANDIDO
Seis.

BANDIDA
Ninguém é de ferro. Ou você é homofóbico?

ATOR PELADO
Chupe você, é seu marido!

BANDIDA
(estapeia ele novamente)

(as atrizes entram com mais uma leva de sacos pretos grandes)

BANDIDA
Eu vou contar até três...

ATRIZ 1
Olha, desculpem perguntar. Desculpe atrapalhar. Mas o que está acontecendo aqui? Eu e minha amiga espírita aqui temos um compromisso agora a tarde...

ATRIZ 2
É verdade.

ATRIZ 1
Então eu pensei em perguntar se – depois de descarregar o caminhão...

ATRIZ 2
Lógico, depois.

ATRIZ 1
Lógico. Se a gente vai poder ir embora ou se isso é uma “forçassão” de barra? Entende?

BANDIDO

Claro que vocês vão embora depois de descarregar o caminhão.

ATRIZ 2
Ai, ainda bem! É só um sequestro relâmpago, então. Eu falei, sua boba.

ATRIZ 1
Obrigada, moço. Muito obrigada.

BANDIDO
Imagina, que isso!

ATRIZ 1
Eu já fumei maconha, viu.

BANDIDA
Sai logo!

(elas saem)

ATOR PELADO
Deixa eu ajudar elas com o caminhão.

BANDIDA
Não, o correto é você pensar assim: “depois que eu chupar o pau dele, eu vou ter a chance de ir pra casa”. Entendeu? Vai.

ATOR PELADO
Mas por que você não manda elas? Eu não sou gay, pô!

BANDIDA
Meu amor não gosta de gays, ainda bem que você não é. Ele gosta dessa situação, entende? De forçar alguém que não gosta de lamber saco, a lamber saco, entendeu? É só uma chupadinha, não é nada demais, colega. Vai logo, vai acabar rápido. Não precisa deixar gozar na boca, não é, amor, não precisa, né?

BANDIDO
Não precisa. Vai logo, rapaz. Vamo logo.

BANDIDA
Acho isso tão excitante! “Eu tô ficando de pau duro”, se eu tivesse um pau!

ATOR PELADO
Vocês tão ficando loucos. Eu não vou fazer isso.

(Bandido se levanta irritado; as atrizes entram com mais sacos pretos)

ATRIZ 1
Acho que acabou. Era só aqueles, né?

(Bandido dá um tiro certeiro na cabeça da atriz 1, que cai morta para o espanto de todos)

ATRIZ 2
Ah, meu deus! Ah, meu deus do céu!

ATOR PELADO
Puta que o pariu, pelo amor de deus!

BANDIDA
Acreditem. Agora ela está descansando. Quem sabe se ela foi pro céu. Pensem nisso.

BANDIDO
Eu quero esse ator chupando o meu pau em cinco segundos, por favor, por gentileza.

(silêncio; Bandido aguarda exatos cinco segundos em um silêncio constrangedor; só ouvimos os gemidos de choro da Atriz 2)

ATOR PELADO
Eu não vou...

(Bandido atira na Atriz 2, inesperadamente)

ATOR PELADO
Não! Não, não, não! Por favor! Por favor.

BANDIDA
Vai, querido. É melhor pra você. Não dói, você vai gostar.

(Bandido decide se mover até o Ator Pelado; ele está ajoelhado no chão e fica com a cara já próxima do pau)

BANDIDO
Vamos, garoto. Já teríamos poupado a vida de duas atrizes.

(Ator Pelado, com bastante sofrimento, nega com a cabeça)

BANDIDO
Chupa, caralho!

ATOR PELADO
Eu não vou chupar, vocês podem me matar.

BANDIDA
Querido, eu tenho uma ideia melhor.

(silêncio)

BANDIDO
Tudo bem. Se não for por medo, que seja por luxo. Gosto de deixar outros machos no meu chinelo, com o nariz fungando no meu saco. Por poder mesmo. Pra mostrar que qualquer macho é bosta perto de algumas situações.

BANDIDA
Meu marido é um grande militante misândrico. Meu feminista extremista lindo!

(Bandido aparece com uma maleta cheia de dinheiro; ele abre logo a frente do Ator Pelado)

ATOR PELADO
Meu deus do céu.

BANDIDA
Lindo, não é? Eu arrepio toda vez.

ATOR PELADO
Quanto dinheiro tem aí?

BANDIDO
Vem. Dá uma chupadinha, dá.

(Ator Pelado se ajeita pra finalmente chupar; a Bandida fecha as cortinas antes de vermos o acontecimento)

BANDIDA
Todos adoramos prostituição. É gostoso. É perigoso. É interessante. Se eu pudesse dar um palpite de um deus vigente seria o deus do sexo; em parceria com o deus dinheiro forma-se então a melhor suruba de anjos e santos e de orgasmos celestes. Prostituição não é só aquele sexo em que tem uma puta e um pagador. Tudo o que você já fez foi por algum interesse, ninguém se interessa por pessoas que não possam oferecer nada. Você pode até trepar com alguém só por interesses fisiológicos ou hormonais. Mas pra tentar alguma coisa que dure, precisa ter mais alguma coisa além de um pinto. Uma segurança, pelo menos, de ter um bom sábado a noite num bom restaurante e depois cinema. Quem sou eu pra julgar? A gente aqui anda conforma a banda toca a música. Não dá pra fugir do vício e do tesão. Deus sex machine!

(ouvimos o Bandido gozando)

BANDIDA
Acabou. Viu? Não precisava tanto drama.

(um tiro)

BANDIDA
É, ninguém é perfeito. Eu tento avisar ele.

(Bandido entra levantando o zíper)

BANDIDA
O que houve dessa vez?

BANDIDO
Muito dente. Esse nunca tinha chupado um pinto na vida mesmo, pelo visto. Mas deixou eu gozar na boca. Eu prefiro quando o cara me chupa com nojo. Não gosto de viadinhos assim que se entregam.

BANDIDA
Eu entendo.

BANDIDO
Ou que fingisse que não tá curtindo então, pelo menos, entende? Pra dar um pouco mais de tesão na coisa. Mas na hora, no fim das contas a maioria baba junto comigo. Todo mundo gosta de ser submisso alguma vez na vida. E eu vou por essa vida realizando esses desejos mais íntimos. Foda.

BANDIDA
Você é um lindo, meu amor. Especial. Não fique preocupado. Cada um deve aceitar o destino de nascença.

BANDIDO
Eu nasci pra fazer esses machos cagarem no pau!

BANDIDA
Sim, sim! Só você é o meu macho, garanhão, sensual! O resto do mundo é tudo viadinho.

(eles se beijam)

BANDIDA
Vamos montar a árvore.

BANDIDO
Vamos fazer um dueto.

BANDIDA
Não, agora não. Venha.

(ela o puxa pra dentro da cortina; uns segundos de silêncio; quando as cortinas se abrem, todos os atores estão em cena cantando brega, como um final de musical clichê; pode ser uma música qualquer, ou a sugestão abaixo)

TODOS
“Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Quinhentos e vinte cinco mil momentos bons
Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Como se mede o ano que passou?
Em dias, dinheiro, em beijos, em Coca-Colas?
Em noites, sexo, no riso ou na dor?

Em quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Como se mede um momento bom?
Meça em amor
Meça em amor
Meça em amor
Meça em amor
Era de Amor
Era de amor

ATRIZ
Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Quinhentos e vinte e cinco mil momentos que se quer
Quinhentos e vinte e cinco mil e seiscentos minutos
Como medir a vida do homem ou da mulher?

ATOR
Nas lições que aprendemos, ou nos filmes que choramos?
Nas barreiras que vencemos, ou como a morte está chamando?

TODOS
A hora é agora
A história não acabou
Vamos
Celebrar o ano de quando tudo começou

Lembre com amor
Lembre com amor
Meça em amor
Meça em amor
Era de amor
Era de amor”

(versão em português da música “Seasons of Love” do musical RENT)

(black-out)

FIM DO PRIMEIRO ATO


2º ATO

(luzes e som de uma nave espacial caindo; uma fumaça espessa invade o palco; um astronauta entra em cena um tanto machucado e retira o capacete; é James; ele observa ao redor por alguns instantes, sai de cena e volta arrastando outro astronauta; retira o capacete e apresenta André que está desmaiado; com muito realismo)

JAMES 
Acorda, André, filho da puta!

(sem sucesso, James anda de um lado para outro desesperado)

JAMES
Alguém? Tem alguém nessa merda de lugar? Cacete. (desiste e se senta exausto) Mal saímos do lugar. Mal chegamos no topo do planeta. Merda de projeto.

(André acorda tossindo; James corre ajuda-lo)

JAMES
André! André, caralho! Pensei que... Caralho, velho! Ainda bem!

ANDRÉ
James. Água.

(James corre e volta com uma garrafinha)

JAMES
Toma.

ANDRÉ
O que aconteceu? Chegamos?

JAMES
Na Índia, só pode ser. Ou talvez em uma ilha. Não conseguimos nem sair.

ANDRÉ
Você viu algum índio?

JAMES
Não tem índio na Índia, colega. Foi modo de dizer.

ANDRÉ
Que merda. O que foi que aconteceu?

JAMES
Acho que fomos atingidos por um raio. Você desmaiou já na decolagem.

ANDRÉ
Não sou tão forte como você. Eu sabia que isso pudesse acontecer. Me ajude a levantar.

(James ajuda)

ANDRÉ
Caralho, velho. Fodeu.

JAMES
Fodeu.

ANDRÉ
Ligue o GPS pra sabermos a nossa localização.

JAMES
Fodeu tudo, André. A nave pifou, tudo pifou. Não tem mais nada funcionando, só fuselagem e pó.

ANDRÉ
Caralho. Você tentou arrumar?

JAMES
Você não entendeu? Bum! Explodiu! Ejetei você e eu antes de bater no chão.

ANDRÉ
A gente não pode ficar aqui parados coçando o saco, James. O que a gente faz?

JAMES
Já era, André. Temos que pensar em conseguir alguma coisa pra comer e beber agora. O que sobrou da caixa de emergência talvez dê por uns dois dias, só. A gente precisa encontrar um canto antes que algum bicho nos encontre antes, fazer uma fogueira...

ANDRÉ
Bicho?

JAMES
Sei lá! Tô tentando pensar no básico, André. Fazer uma tenda.

ANDRÉ
Acho que eu torci o tornozelo.

JAMES
Graças a deus foi só isso, né? Venha que eu te ajudo.

(James ajuda André se acomodar em um canto)

JAMES
Já era, André. Falhamos.

ANDRÉ
E os outros?

JAMES
Devem ter conseguido. Não vi rastro deles.

ANDRÉ
E os tubos? Conseguiu salvar ao menos os tubos?

JAMES
Explodiu com a nave.

ANDRÉ
Merda! Merda, merda, merda! E agora?

JAMES
Agora sou eu e você, colega. Não tem tempo pra gente se desesperar agora. Vou procurar madeira pra fazer uma fogueira antes que escureça.

ANDRÉ
Eles vão voltar. Eles vão voltar quando perceberem que a gente caiu.

(silêncio; André fica esperançoso olhando para o céu; James sai; ele fica pensativo por um tempo e depois percebe alguma coisa sensacional)

ANDRÉ
James! James! Mas é lógico!

(James volta correndo)

JAMES
O que foi?

ANDRÉ
Nós conseguimos, James. Esse planeta não é o nosso. O raio que você disse. Nós fizemos a passagem!

JAMES
Como assim?

ANDRÉ
Você esperava que fosse ser normal? O universo é muito louco, meu caro. A gente viajou três mil anos luz em alguns poucos minutos, queridão. Haha! Que raiva de ter desmaiado e ter perdido essa maravilha! Acredite em mim, esse aqui não é o nosso planeta.

JAMES
Acho que você está viajando, André.

ANDRÉ
Eu sei, é muito parecido...

JAMES
Mas vamos dar uma olhada, quem sabe a gente encontra alguma coisa que comprove que conseguimos sair daqui.

ANDRÉ
Não é mais “aqui”, cabeção. Nós conseguimos, acredite em mim. Esse não é o nosso planeta! Aquilo ali é uma plantação de maconha, não é? Olha ali, ó! Veja essa enorme plantação de um tipo de maconha diferente. Percebe como ela brilha diferente?

JAMES
De qualquer forma, nós perdemos os tubos. A reprodução jamais será feita entre eu e você agora. Na verdade, conseguimos metade da missão, se você estiver realmente certo. Maconha não vai nos salvar mais.

ANDRÉ
Sim. Mas de qualquer forma também, somos os primeiros seres humanos a pisar em terra estrangeira parecida com a nossa, que pode nos abrigar. É um marco!

JAMES
Os primeiros e os últimos. (pausa) Mas ainda acho que a gente não conseguiu nem sair de casa.

(silêncio)

ANDRÉ
(misterioso) Nunca vamos saber. Porque mesmo se a gente conseguir voltar pra base e tudo for igualzinho, ainda pode ser que a gente já esteja em outra realidade paralela à que vivíamos antigamente, um pouco parecida, mas não por completo. Entendeu?

JAMES
Para de viajar, André. Vamos tentar brincar de cientistas agora, tá bom? E não de filósofos. Nos resta sobreviver e registrar esse fim agora.

(silêncio; André se decepciona)

ANDRÉ
Você devia ter salvado os tubos. E não eu.

JAMES
Devia mesmo. Mas eu fui um pouco egoísta. Eu não ia conseguir ficar sozinho por tanto tempo, e muito menos ainda cuidando de bebês, clones do meu eu. Desculpe.

ANDRÉ
Você acabou de acabar de vez com qualquer chance que a gente já teve! Pra não ficar sozinho? Você é um homem ou um moleque?

JAMES
Desculpa, mas aqui eu não vou chama-lo de senhor. Agora nós somos mais dois bichos aqui. A hierarquia acabou.

ANDRÉ
Eu sei, eu sei. Desculpa. Mas seu último gesto humano foi uma cagada.

JAMES
Eu sei.

ANDRÉ
Que bom que você sabe.

(silêncio)

JAMES
É, eu sei.

ANDRÉ
Os dois últimos humanos.

(Bandida entra toscamente rolando como em filmes de ação, e aponta a arma para os dois)

BANDIDA
Hava caran picué?!

(James e André não conseguem disfarçar o brilho no olhar ao som de uma música; enfim uma solução para a não extinção)

BANDIDA
HAVA! Ashgomo folo véu bragaliança duma pirácara! Esbrigona! Esbri!

JAMES
Que linguagem é essa?

ANDRÉ
Não é de nenhuma conhecida, estamos em outro planeta!

(Bandida atira na perna de André)

ANDRÉ
Ai! Eles são violentos! Eles são violentos!

BANDIDA
Ashgomo folo véu duma pirácara...

ANDRÉ
Nós não entendemos! A gente não entende! We don’t uderstand! Não atire!

BANDIDA
Oh! So, you guys speak English. Let’s finish it now! Tell me! Who the fuck are you? I saw the lights! You both came from a ship, from space! Tell me!

ANDRÉ
Você fala inglês, James?

JAMES
Não falo.

ANDRÉ
Porra, seu nome é James e você não fala inglês!

JAMES
Não deu tempo, caralho! E você?

ANDRÉ
Os filmes estavam certos, o inglês realmente é uma língua universal.

JAMES
Quando eu nasci o mundo já tava em colapso. Não deu tempo.

BANDIDA
HAVA! FUCK!

ANDRÉ
We don’t speak English, senhorita alien.

BANDIDA
My name is not Allen. My name is Bandida.

JAMES
Quando eu nasci só existiam seis mulheres no mundo. Minha mãe foi uma das últimas.

ANDRÉ
Tá bom, a gente já entendeu, James. Eu tô sangrando pra porra!

(inesperadamente, Bandida atira na cabeça de André)

JAMES
Ai, meu deus do céu! Por que fez isso? Why? Why?

BANDIDA
(se insinuando) I have a big surprise for you, baby.

JAMES
Big surprise?

BANDIDA
Big. Twice.

(sem dizer nada ela tira a roupa de James, com bastante sensualidade; ele fica nu por completo)

BANDIDA
Are you gay?

JAMES
Gay? Eu? No meu planeta as coisas são diferentes.

BANDIDA
So you like this. (segura a vagina)

JAMES
Sim. Yes. (ri)

BANDIDA
Good.

(ela vai em direção a saída)

BANDIDA
Wait a minute, darling. (sai)

JAMES
Wait. Sim. Tô aqui. Ai, meu deus do céu! Foi mal, André, depois eu faço um funeral. Mas deus nos deu mais uma chance de procriar, de continuar ao menos alguma parte de nossa espécie. Eu vou fazer filho pra caralho com essa delícia!

(Bandida entra acompanhada do Bandido; eles rolam no chão como em filmes policiais)

BANDIDA
Darling, here is your new slave. Please, don’t kill him.

BANDIDO
E o inglês é pra quê?

BANDIDA
Pra mostrar que aqui não tem nenhum idiota.

JAMES
Vocês falam português!

BANDIDO
De onde você é?

JAMES
Me desculpe senhor, ela quem me pediu pra tirar a roupa. Não briguem. Eu vou seguir a minha vida, desculpem. Eu não queria atrapalhar.

BANDIDO
Fica pelado, caralho! De onde é que você veio?

JAMES
Qual o nome desse planeta? Desculpe perguntar.

BANDIDO
Primeiro me fala de qual planeta você veio.

BANDIDA
A gente viu as luzes. Vocês caíram de uma nave. Ele destruiu parte da nossa plantação.

BANDIDO
Você é gay? Fica pelado, caralho! Jogue essa roupa no chão!

(James obedece)

JAMES
Não sou gay, não. Sou hétero. Mas é que no meu planeta a gente não teve opções...

BANDIDO
Você tava interessado na minha mulher, não tava? Achou que ia comer ela, não achou?

JAMES
Vou ser sincero. Achei. Mas é que ela me mandou tirar a roupa e eu não sabia da existência do senhor.

BANDIDO
Deus não existe imbecil. Olha que idiota, outro católico, amor.

BANDIDA
Não existe esse negócio de senhor aqui, ouviu bem?

JAMES
Eu tava falando de você.

BANDIDO
Eu, deus? Você tá maluco?

JAMES
Não, você não entendeu... Eu tava dizendo que eu não sabia da sua existência por isso eu cobicei comer ela, entendeu?

BANDIDA
Quer dizer que se eu fosse solteira eu ia ter que estar disponível, é isso? Pro seu ego?

JAMES
Eu acredito ser o último da minha espécie, o último ser vivo do meu planeta. Eu achei que eu pudesse... só continuar. Foi isso.

BANDIDA
Ignorante.

BANDIDO
Você é polícia, não é, não?

JAMES
Não, não. Eu sou um astronauta, eu era um astronauta.

(silêncio; Bandido observa James dos pés a cabeça, como se estivesse medindo)

BANDIDO
(fofinho) Não gostei dele, amor. Ele parece ser gente boa. Acho que já deve ter chupado um pau nessa vida, tem cara.

BANDIDA
Esse é o último, querido. Não vai surgir mais ninguém aqui, escute o que eu tô dizendo. Seremos eu e você, finalmente. E com todo aquele dinheirão!

BANDIDO
Com todo aquele dinheirão! Só pra nós dois!

BANDIDA
Essa é a semana da colheita, seu lindo. Acabou a patifaria.

BANDIDO
(para James) Ô, colega? Já teve uma árvore de dinheiro só sua?

JAMES
Oi?

BANDIDA
Você é surdo, caralho? Ai, como eu tenho raiva de ter que ficar repetindo as coisas.

BANDIDO
Eu perguntei se você já teve uma árvore de dinheiro? Umas dessas que dá dinheiro, compreende?

JAMES
Bom, meu pai foi empresário a vida toda. Eu foquei a minha vida nos estudos científicos com a ajuda dele. Depois com a ajuda do governo. Hoje eu me sustento. (inicia um discurso dramático) Quer dizer, o meu mundo acabou, né? O sexo feminino entrou em extinção; por algum motivo não se nascia mais mulher. A gente foi estudando, tentando solucionar o problema. E percebemos que tudo isso aconteceu por uma defesa, sabe? Sério. Um último golpe misândrico de origem orgânica, por nunca termos conseguido chegar na liberdade feminina idêntica a liberdade do homem. Como se o corpo delas estivessem pensando: “Bom, chega! Hora de não continuar a espécie.” Parece besteira. Chegamos num ponto onde eram pouquíssimas mulheres e elas não estavam dando conta. E nem dos estupros. E só nascia macho. Não adiantava, nem com procedimento cirúrgico – chegamos a tentar fazer um homem com útero!, mas sem sucesso. Não tinha mais o que fazer para o corpo da mulher entender que ela tinha que reproduzir uma fêmea, se não fodeu, a gente tentou de tudo. E óbvio que elas foram ficando velhas, e por fim, morreram. O restante da população, machos, se mataram, obviamente, em pouco tempo ainda. Sim, uns queriam comer, outros não queriam dar e aí começou a rebelião. (pausa) Aí a gente encontrou uma solução. A nossa medicina científica estava bastante avançada no nosso planeta, e então conseguimos criar o primeiro ser humano totalmente em um tubo – isso já quando só existiam os filósofos e cientistas na base nuclear que fizemos no Egito, só homens. Os tubos, também feministas – era uma piada que a gente fazia – , funcionaram, para o nosso espanto. Fazia uma gestação de nove meses em quatro, acreditam? Quatro meses e o bebê estava pronto e saudável. Mas por mais mágico que possa parecer, também só estavam dispostos a reproduzir... (?)

BANDIDO
Machos.

JAMES
Exatamente. E nessa correria da vida, decidimos que não existia mais chance de a gente seguir com a vida no nosso planeta. O planeta ainda estava bem, com as plantas e matas reengolindo as cidades, estava tudo bem. Mas a ciência quis ir mais longe, aquele lugar habitava uma nostalgia dura de olhar. Então decidimos partir. E pensamos que podíamos usar e refazer a tecnologia do tubo e finalmente o tubo seria a reprodutora de seres unissexuais. Machos procriando outros machos em tubos. Futurista, né?

BANDIDO
Super futurista.

JAMES
Mas aí a nossa nave explodiu, junto com os tubos, e pode ser que eu seja o último humano vivo. A nossa história vai ter um fim. Por isso que eu pensei que eu pudesse... procriar com a sua esposa. Ao menos tentar um híbrido, já seria uma salvação.

BANDIDA
Somos humanos também.

JAMES
De outro planeta, ou de outra realidade. Mas enfim.

BANDIDA
Vocês dois eram namorados?

JAMES
Oi?

BANDIDA
Você e esse cara. Vocês se pegavam?

JAMES
Os homens se revezavam no prazer, mas esse formato de “namoro” já havia acabado faz tempo. Mas sim, a gente se pegava pra gozar. Era só um passatempo.

BANDIDA
Adoro gays.

BANDIDO
Seremos bons amigos .E esses tais tubos explodiram, é?

JAMES
Explodiram. Foi-se a minha chance.

BANDIDO
Não existe mais nenhum?

JAMES
Talvez lá no meu planeta eu ainda conseguisse construir com alguns protótipos velhos. Impossível de saber.

BANDIDO
Querida, faça as malas. Moço, como a gente faz pra chegar no seu planeta?

JAMES
(ri) Oras, não é tão fácil assim. Vocês aqui possuem nave espaciais? Uma base de lançamento?

BANDIDO
Não, mas como faz pra conseguir isso?

JAMES
Dinheiro, meu caro. E energia. Não sei em qual nível evolutivo vocês estão aqui.

BANDIDA
Dinheiro não é problema, meu querido. É chegada a hora da colheita.

JAMES
Mas não há mais nada que se fazer lá.

BANDIDA
Aqui também não. Nós fizemos o assalto da história, meu lindão. Somos procurados no planeta inteiro. Nós temos todo o dinheiro do mundo e queríamos usufruir disso com maestria. Ir pra outro planeta seria uma coisa única.

JAMES
Oras, mas façam uma plástica. Muda o visual, muda de nome. Não é tão simples fazer uma viagem dessas, levaríamos anos só pra construir uma nave novamente.

BANDIDO
Nós temos dinheiro.

BANDIDA
Não há mais mercado, garotão. Nosso roubo quebrou o mundo capital. Nós arrancamos o negócio pela raiz, crise mundial, meu caro. Esse planeta também já era.

BANDIDO
E nós temos muito dinheiro, todo o dinheiro que a gente precisa pra conhecer todos os planetas dessa galáxia. Eu quero ir.

JAMES
Meus amigos, mas do que vai adiantar o seu dinheiro sem mercado. Seu dinheiro só vale aqui, dinheiro não é uma coisa universal. De que adianta vocês terem todo o dinheiro do mundo se não tem mais onde vocês comprarem coisas? 

(silêncio; eles não tinham pensado nisso)

BANDIDA
Quem disse que o dinheiro não é universal? Nossos planetas, mesmo com as diferenças, aprenderam e desenvolveram as mesmas línguas. Por que não pode ser que o dinheiro daqui não seja o mesmo dinheiro em outro planeta? Hein? Por que não pode ser? Pode ser sim.

JAMES
Mas de qualquer forma, pra gente conseguir construir uma nave nova, nós precisaríamos comprar muitas coisas que se encontra só em uma sociedade capitalista. Não tem como começarmos da extração do aço, por exemplo. Derrubando árvore pra construir uma porta, não tem como.

BANDIDO
Mas eu quero ir pro planeta dele, não pra outro! Ele tem máquinas de fazer macho, querida.

BANDIDA
Eu sei, querido. Mas você entendeu o que ele disse? É muito trampo. E depois, se por um milagre conseguíssemos, você ia ter que esperar aqueles bebês crescerem. Pense só o tempo que vai ser, você já vai estar bem velhinho.

BANDIDO
No seu planeta é proibido pedofilia?

JAMES
Nós temos outros nomes pras coisas que começaram a acontecer com o tempo. Costumo dizer que voltamos àquela era onde o menino jovem tinha um tutor professor, que ensinava tudo o que se sabia, como um mestre. Era só homem no mundo, oras. Eu perdi a minha virgindade com nove anos, e com meu pai de criação.

BANDIDA
Meu deus.

BANDIDO
Viu? Então tudo bem se eu pegar algumas crianças.

BANDIDA
Pare com isso! Aqui a gente abomina esse tipo de coisa. Pelo menos abomina agora.

JAMES
Mas não era uma coisa vista como sacanagem. Era como um ensinamento, uma coisa pura e divina.

BANDIDA
Ah, pelo amor de deus, moço! Não me venha com esse desculpinha esfarrapada. Eu sei bem aqui como é que funciona a força do tesão, como é que o pinto de vocês funciona. Não me venha com essa.

BANDIDO
Eu quero ir, Bandida. Eu quero muito ir.

BANDIDA
Não tem jeito, meu amor. Não existe mais fábricas e nem mercado pra comprar tudo o que ele precisa.

BANDIDO
Ah.

BANDIDA
Não se preocupe. Eu estava brincando quando disse que ninguém mais iria aparecer aqui. Uma hora outra nave cai e talvez com alienígenas machistas, do jeitinho que você gosta.

BANDIDO
Vou torcer. (abatido, ele vai em direção à saída) Meu amigo gay, se você precisar de um lugar pra ficar, pode ficar aqui com a gente. Mas eu não curto comer viadinhos e nem quero que você erga os olhos pra cima dela, então não sei o que te faria ficar. Até mais.

JAMES
Puxa, tudo bem! Obrigado. Eu aprendi a me virar bem sozinho. E quem sabe não surge alguma outra nave com alienígenas femininas heterossexuais algum dia desses? Vamos torcer.

(Bandido sai)

JAMES
Enfim.

BANDIDA
Enfim.

JAMES
Seu marido é gay?

BANDIDA
O que?

JAMES
Ele gosta de homens, não gosta? Acho que ele pode ter um pesinho de pedófilo também. Você percebeu? Ainda bem que ele não se interessou por mim, ele tem cara de ser roludo. Tô tão cansado dessa vida.

BANDIDA
Ele é mesmo. Ainda bem que ele gostou de você, você teve sorte. Ele adora ter amigos viadinhos.

JAMES
E gosta de comer uns caras héteros a força, é isso?

BANDIDA
Exatamente.

JAMES
Cada um com as suas loucuras. Em sexo não se intromete se não for convidado.

BANDIDA
Meu marido veio ao mundo pra ensinar os homens. Já perdi a conta de quantos estupradores ele tirou o cabaço. Ele enfia a rola pra corrigir, já viu isso?

JAMES
Já. Já vi sim. É muito natural isso. Muitos homens acreditam nessa forma de correção.

(silêncio; Bandida fica pensativa quanto a última fala de James)

JAMES
Enfim.

BANDIDA
Desculpe perguntar, mas como era o dinheiro no seu planeta? Como funcionava o mercado?

JAMES
Nós chegamos a usar papel, mas depois voltamos pro esquema de troca. Funcionava bem, se não fosse o fim da mulherada.

BANDIDA
Entendi.

JAMES
E aqui?

BANDIDA
Aqui dinheiro dava em árvore. Dá em árvore.

JAMES
Como assim dá em árvore?

BANDIDA
Dá em árvores. Nasce moeda e que se você esperar um pouco vira nota.

JAMES
Tá de zoeira.

BANDIDA
Tô não. Por que estaria? É assim que é aqui, porra.

JAMES
Nossa, mas muito interessante.

BANDIDA
E nós roubamos todas elas. Consegue ver aquela plantação brilhante ali?

JAMES
Aquilo não é maconha? Eu jurava que fosse algum tipo de maconha.

BANDIDA
Aquilo tudo é a única riqueza vigente do planeta. Uma última e única plantação e todinha nossa. Não é fácil cultivar, sabe. Mas vai valer a pena quando der fruto.

JAMES
Impressionante.

(silêncio)

JAMES
Só uma perguntinha: o que vocês vão fazer com todo o dinheiro que roubaram agora?

BANDIDA
Gastar! Comprar um apartamento no Guarujá e tudo o que eu tenho direito. Um iate e um Iphone! Dois Iphone e um tablet! E meu marido tem o sonho de comprar um Playstation 9.

JAMES
Mas se o mercado não existe, se o mundo está falido, você vai comprar onde? Como?

(Bandida reflete e não sabe o que responder; ela entra num leve desespero, pois não tinha pensado nisso)

BANDIDA
Não faça pergunta difícil, moço.

JAMES
Não, eu só queria saber. Pra que ter toda riqueza do mundo se não tem mais ninguém pra te invejar ou nenhum lugar pra você gastar? Acho válido a gente pensar nisso, não? Sei lá. Mas é uma plantação muito bonita, viu? Será que eu poderia ver mais de perto?

(num súbito, Bandida atira na cabeça de James que cai morto)

BANDIDA
Odeio esses comunistas intelectuais. Fica fazendo a gente criar um monte de dúvidas na cabeça, caralho! Não interessa como eu vou gastar! Se o dinheiro é meu, foi direito pelo meu suor de roubo! Eu cheguei a suar sangue aquele dia! Eu cheguei a suar sangue.

(um Anjo e uma Anja, com asas de metal, entram em cena magistralmente; Bandida se converte instantaneamente com a visão)

ANJOS
(cantam algumas vogais em cânone)

BANDIDA
(se ajoelha extasiada) Oh, meu santo deus! Meu santo Jesus Cristo. Agora eu entendo! Agora eu entendo. Eu aceito, eu aceito! Oh, meu santo Jesus, como eu não pude ver antes? Perdão!

ANJO
Vocês ainda estão falando dele? Mas, gente, como esses humanos gostam de se remoer, né?

ANJA
Porra, já faz tanto tempo. Papai já até tinha esquecido disso, não é, papai?

ANJO
Foi só uma gozada, meu. Maria levou a sério demais isso tudo.

ANJA
Aquela safadinha.

ANJO
Não fale assim. Até que eu parecia um ser divino naquela época.

ANJA
Parecia. Parecia.

ANJO
Porra, mais de dois mil anos, não foi?

ANJA
Bem mais, acho. Tá vendo o perigo de se intrometer na vida deles? Eu avisei, não avisei?

ANJO
Qualquer um cairia na minha lábia. Eles realmente acreditaram, coitados. Vou tentar ser mais evoluído nas próximas.

ANJA
É que você é um gostoso, né?

ANJO
Pode ser.

ANJA
Fiquemos espertos com a órgãos reprodutores.

ANJO
Sim.

BANDIDA
Chegou o fim dos tempos? É hoje o dia que todos falavam? Por favor, tenham misericórdia. Essa arma é cenográfica! Eu nunca matei ninguém na vida real, era tudo encenação! Por favor!

ANJA
Oi?

BANDIDA
Vocês vieram nos buscar, não vieram? Você são anjos. É o dia do arrebatamento, não é? Agora eu acredito. Por favor, eu li a bíblia. Não deixe que mandem eu e meu marido pro inferno. Por favor. Eu sei que a gente não fez muita coisa boa aqui nessa vida, mas é que a vida foi difícil, entende? A vida foi muito difícil.

ANJO
(encena) Ainda dá tempo de você se converter, minha filha.

ANJA
(segurando o riso) Isso. Ainda dá tempo para todos. Jesus ainda voltará, mas não hoje.

ANJO
Basta você se arrepender dos pecados, meu amor. Dos palavrões e das plantações de maconha. Só isso e você estará salva. Ao menos que seja lésbica, aí não.

ANJA
(não aguenta e ri)

BANDIDA
Não, aquilo não é maconha, não. É dinheiro, senhor. Nós roubamos todo o dinheiro do mundo e agora nem temos onde gastar. No fundo eu era católica. Nos perdoe, tenha piedade de nós. “Ave Maria, cheia de graça...”

ANJO
Ave.

BANDIDA
“O Senhor é convosco. Bendita sois vós entre as mulheres. Bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus...” (continua)

(os dois anjos se olham e retiram as asas e a vestimenta – que pode ser algo parecido como a de um astronauta; Bandida continua na sua conversão paranoica)

ANJA
Enfim, acho que aqui será um bom lugar pra descansar alguns séculos, querido.

ANJO
Graças a deus.

BANDIDA
Graças, graças! Mil graças! “Pai nosso, que estais no céu...”

ANJA
Tadinha.

ANJO
Quem sabe eles não precisem de uma forcinha mais uma vez? Me parece que eles estão em uma crise mundial, você viu? Um novo messias hibrido seria funcional agora, não acha?

ANJA
Funcional pra quê? Você já não viu? Pra eles botarem seu filho na cruz de novo e depois distorcerem tudo o que ele ensinar? Acho que chega de intervenções alienígenas, querido. Eles nunca aprendem nada.

ANJO
Queria gozar apenas.

ANJA
Se for pra fazer, como o cu, poxa. Tem que ter vagina? Tem que ter? Não vá engravidar ela de novo que não dá certo, pelo amor de deus.

BANDIDA
Oh, meu deus do céu! As asas não são orgânicas?

ANJA
São de metal, querida. Vem do chão. Isso é um tipo de meio de transporte somente.

ANJO
Chiu, não fale.

BANDIDA
Meu deus. Mas deus é um mistério mesmo. Que coisa incrível. Eu quero me converter, eu quero me converter sim. Eu e meu marido! Nós dois temos medo de ir pro inferno.

ANJA
Bom, vou deixar vocês sozinhos por alguns minutos.

ANJO
Obrigado, querida.

ANJA
O cu, bonitão. Só o cu, hein!

ANJO
Pode deixar.

ANJA
Vou dar uma olhada naquela plantação ali pra ver é fumável. Já volto. (sai)

ANJO
Vinte minutinhos! (ele pega a Bandida pela mão, carinhoso) Venha, minha filha.

ANJA
Pra onde vamos? Eu quero encontrar Jesus, senhor. Eu quero muito.

ANJO
Eu vou te batizar, primeiro.

BANDIDA
Serei como Maria? É um plano? Um filho do espírito santo?

ANJO
Não, sem filhos dessa vez. Vocês nunca entenderão o porquê da mistura de raças. Da última vez mataram ele sem dó e nem piedade. E olha que meu filho era gente boa, hein. Dessa vez só tô querendo me aliviar mesmo.

BANDIDA
Meu corpo é seu corpo, santo anjo do senhor.

(o Anjo pega Bandida no colo e sai)

(um vídeo nos apresenta dois órgãos genitais, um pinto e uma buceta; com cortes rápidos, as duplas de imagens vão se revezando, deixando dois pintos, depois duas bucetas, um pinto e uma buceta de novo. Com as mudanças, os órgãos vão tomando outras formas, montagens de pintos grandes e/ou com formatos absurdos e vaginas em outras dimensões e lugares do corpo; podem mudar de cor, alguns brilhantes; deve-se brincar com as possibilidades de órgãos de reprodução que poderiam existir em outros planetas, com outros tipos de seres evoluídos; um letreiro termina o vídeo com “Deus Sex Machine”)

(no palco, fumaça e suspense; notas de dinheiro caem na plateia e rolam moedas pelo palco. Uma música grandiosa introduz, finalmente, uma árvore repleta de notas penduradas, e moedas de ouro nas pontas)

(black-out)

FIM DO SEGUNDO ATO


3º e ÚLTIMO ATO.

(depois de um silêncio, um foco destaca as duas atrizes do começo do espetáculo sentadas na mesma posição, assistindo algo que acontece na escuridão)

ATRIZ 2
Achei forte demais.

ATRIZ 1
Pesado. E nem deu pra entender nadinha de nada. Você entendeu alguma coisa?

ATRIZ 2
Ah, eu até que entendi, mas sei lá.

ATRIZ 1
Eu acho que eles tão se escondendo no argumento de que “não precisa ter nexo, não tem que entender”. Essa juventude de hoje é muita maconha. Eu tenho orgulho em dizer que tudo o que eu já fiz na vida foi sóbria. Não precisei da ajuda da terra em nenhuma forma, desses aditivos.

ATRIZ 2
Eu cheguei a usar algumas coisas. Uns antidepressivos, pra dormir, essas coisas. Já fumei um baseado pra relaxar e criar também.

ATRIZ 1
Não, eu também já fumei maconha, sabia? Não tem problema só uma vez. Eu tô dizendo que não precisa ser desses artistas porra loucas, sabe? Não precisa. Ter pinto de novo, cena de sexo escrachada? Todo mundo já fez isso. Minha geração de formatura – quando eu me formei em artes cênicas, já faz uns seis anos – eram todos uns nerds. É sério. E foi bom, sabe? Já é passado essa visão anti-burocrática de artistas jovens e maconheiros, de loucão que morre de overdose, de putaria. Já chega disso. A gente tem que se burocratizar sim, nós estamos vivendo isso. E liberdade de expressão não é liberdade de opressão, a gente tem que sempre lembrar. Eu me senti muitíssimo oprimida com aquele negócio do cara lendo a bíblia e trepando ao mesmo tempo. Acho isso muita apelação, não precisa. Fere com a minha religiosidade, entendeu? Se eu fizer uma peça dizendo que ser gay é errado, por exemplo, vão condenar a minha alma e me chamar de homofóbica: “Uh, homofóbica! Ela odeia gays!”. Onde tá a sua liberdade e onde tá a minha?

ATRIZ 2
Ora, mas calma! Tem que haver senso nisso também. Por que você faria uma peça falando que ser gay é errado?

ATRIZ 1
Eu também tenho o direito a minha religiosidade! Pra você ela pode parecer babaca, mas eu tenho esse direito, não tenho? Não tenho esse direito em constituição? Em lei? Por que esses “artivistas” só oprimem o cristianismo? Porque ninguém fala mal da umbanda que faz macumba! Você sabe o que é isso? Macumba, garota! Vá falar mal do alcorão pra ver se eles não vêm e explodem você. Vai!

ATRIZ 2
São coisas completamente diferentes isso, como você é idiota! Vocês oprimem toda uma sociedade há muito tempo, é muito diferente...

ATRIZ 1
Como diferente, garota? Idiota é você. Nós estamos vivendo uma Cristofobia nos dias de hoje, sim. Todo mundo faz piadinhas quando eu falo que sou católica. Por que? Eu gosto de ser católica, o Padre Fábio de Melo é um lindo. É um absurdo isso. E olha que tava escrito que isso ia acontecer na bíblia, viu, tava escrito isso! A perseguição contra os justos. Eu até arrepio, ó.

ATRIZ 2
Vocês não são a minoria, gata. Vocês são a maioria, a grande maioria aqui. Essa é a diferença. Vocês que oprimem o resto. A maioria encurrala a minoria sem chance.

ATRIZ 1
Ai, não tem nada a ver. Cale a boca. Pode parar com esse papinho! A gente luta por justiça, por amor ao próximo. São os princípios de um cristão de raiz. Você é burra? Você não lê?

ATRIZ 2
Bom, por vocês ainda serem a maioria, a grande maioria, prefiro defender os outros, os que estão acuados. Prefiro ficar do lado deles.

ATRIZ 1
Porque você é uma ignorante que não quer saber da verdade.

ATRIZ 2
A umbanda, os índios, os muçulmanos e todo o resto, todos os putos.

ATRIZ 1
Macumbeira! Terrorista! Biscate!

ATRIZ 2
Depois de tudo isso, não tem como eu te defender, amiga. Eu fico triste, eu fico muito triste. Você é uma idiota. Eu nunca conheci alguém tão ridícula como você. Se um dia você fizer uma peça homofóbica, eu jamais olharei nessa sua cara porque a gente já beijou na boca e foi super legal. Você esqueceu? Você seria a rainha da hipocrisia se fizesse isso.

ATRIZ 1
Aquilo foi uma catarse de uma cena bem feita, amiga! De um dueto. Eu não sou lésbica.

ATRIZ 2
Não interessa. Se você fizer alguma coisa do tipo eu nunca mais olho na sua cara.

ATRIZ 1
Então você está me censurando nos meus possíveis assuntos, não é?

ATRIZ 2
Não, você vai poder falar, vai fazer o que quiser, mas não olhe mais na minha cara.

ATRIZ 1
Então você prefere ficar do lado dos terroristas nessa história, não é? De gente que explode gente? É isso? É muito engraçado, você é a favor da liberdade de expressão contra os católicos – desse grupinho ridículo que a gente assistiu – , mas acha que uma piada com Maomé justifica um massacre como aquele, como se os terroristas fossem heróis?

ATRIZ 2
Não interessa! Não interessa! Lógico que não justifica. Não quero mais falar. Ninguém falou que eles são heróis. Chega desse assunto!

ATRIZ 1
Oras. Se eu matasse todo mundo agora, você jamais iria entender os meus motivos. Iria me colocar na cruz. Mas defende os terroristas.

ATRIZ 2
E você é contra uma cena de uma bíblia com uma trepada, acha exagero, desrespeitoso, mas é a favor dos cartunistas que fizeram quase a mesma coisa com os símbolos de Maomé. Cadê o nexo?

ATRIZ 1
Isso não interessa! É completamente diferente isso que você tá falando. Eu não acredito no Maomé!

ATRIZ 2
Como não interessa? Você pode censurar, mas quando te censuram não pode?

ATRIZ 2
Eles matam pessoas! Eles entram no seu local de trabalho e metralham tudo. Você não assiste televisão? Crianças de oito anos aprendendo a usar metralhadora. Isso não é liberdade de expressão, querida. É muito diferente eu vir criticar uma peça porque ela feriu a minha religiosidade, do que eu abrir fogo contra todo mundo que fez isso. Eu sou contra, mas eu não vou matar aquele ator, ainda mais porque ele é lindo e depois falariam que é homofobia. “Olha lá, a homofóbica matadora de ateus e gays.”

ATRIZ 2
A proporção de mortos nessa guerra é muito maior que isso, amiga. A força da sua maioria não dá espaço pra minoria deles. Eles fazem por fé contra o seu deus, já que o seu deus fez com que a prosperidade de lá virasse guerra e pobreza e mortes mais do lado deles; enquanto aqui estamos no bem bom. Chorando as mortes só dos brancos americanos, e marcando datas históricas só dos massacres do lado de cá. Só se lembra do onze de setembro, só lembra! Eles só conhecessem essa opção de expressão, minha amiga, eles acreditam ser revolucionários na luta por dignidade e justiça, por tudo o que fizeram com o povo deles. Foi isso que deu pra aprender. Entendeu? Foi o que deu tempo de aprender a fazer.

ATRIZ 1
Gente, mas eu tô pasma. Mesmo eu sendo a cristã aqui, é você quem acredita então que algum cristão tem o direito de entrar e matar todo mundo aqui, por causa daquela cena. Vai que alguém se ofendeu. É isso que eu entendi?

ATRIZ 2
Lógico que não! Ninguém tem o direito disso!

ATRIZ 1
Só deus tem esse direito!

ATRIZ 2
Não é isso que eu tô dizendo! Você é burra ou o que?

ATRIZ 1
Burra é sua mãe. O que você tá dizendo, então? Me fala, me explica então. Explique pra burra.

ATRIZ 2
Eu tô dizendo que os homens brancos vieram com a sua bíblia e com seu Jesus e catequizaram o mundo inteiro, abominaram todos os outros rituais, todas as outras divindades e esperanças e culturas variadas; como se essa fosse a forma perfeita de solução para a ordem e progresso. “Jesus o único senhor e salvador”. E os que não se adequam? Fogo neles! Pedras! Saques! Por isso entendo essa a crítica que fizeram aqui. Mas uma piada contra gente oprimida não sei quais são os motivos sociais disso.

ATRIZ 1
Não justifica.

ATRIZ 2
Como não justifica?

ATRIZ 1
Não justifica matar alguém.

ATRIZ 2
Você acha que aquela região tem guerras e pobreza porque não é próspera ou porque foi saqueada?

ATRIZ 1
Porque aquele lugar foi amaldiçoado.

ATRIZ 2
Porque estão sendo saqueados desde muito tempo, pela glória e riqueza dos grandes templos cristãos, imbecil!

ATRIZ 1
Não me chame de imbecil!

ATRIZ 2
Acredite, poderia haver prosperidade para todos. Poderia ao menos ter terra pra todos. Um espaço no planeta. Mas ocupadores de prédios abandonados são chamados de vagabundos, e muitas vezes por muitos que se dizem do “amor ao próximo”.

ATRIZ 1
Não é assim que funciona, minha querida. Esses vagabundos aí querem tudo de mão beijada. Trabalhar ninguém quer, né?

ATRIZ 2
Ai, meu deus. Mas você é uma ignorante.

ATRIZ 1
Você está completamente equivocada, senhorita atriz inteligente. Isso tudo não dá o direito de você fazer uma cena de sexo com uma bíblia na mão. Isso é mexer com quem tá quieto. O cristianismo só quer ter o direito de exercer os seus rituais de domingo, de exercer a sua crença. Aguarde uns cristãos extremistas surgirem, aguarde. Aí eu quero ver.

ATRIZ 2
(para a plateia) O deus dos caras manda repartir o pão, dar tudo aos pobres, amar ao próximo, daí você defende  uma família pobre ganhar cento e setenta reais por mês, e os cara: “Nooossa! Criar vagabundo. Nossa.” Os extremistas já estão dentro do governo – com uma puta quantidade de votos – impedindo que um casal gay adote uma criança que um casal hétero abandonou.

ATRIZ 1
Eu acho que só precisa ter um pouco de respeito na liberdade de expressão quando tiver que discutir esses assuntos.

ATRIZ 2
O que? O respeito dos cartunistas assassinados contra a religião dos caras tudo bem? Só não pode afetar a sua, é isso? Então você entende a dor de uma piada contra a sua fé, não é?

ATRIZ 1
Mas não justifica uma barbárie daquela. Eu não vou sair matando as pessoas por discordarem de mim.

ATRIZ 2
(se irrita) Mas porque você não foi oprimida a vida toda! Porque foi você quem oprimiu!

ATRIZ 1
Não vitimize os terroristas. Pra mim, oprimido é quem foi fuzilado sem chance de luta. Eu nunca mataria ninguém, muito menos por religião. Não justifica.

ATRIZ 2
Se a sua vida fosse a ferro e fogo mataria sim! Mataria pelo seu direito a ter direitos! Se a sua vida fosse uma merda, se sempre você tivesse em desvantagem, você mataria sim. Eu mataria pelo meu direito a ter os prazeres de vida que só alguns experimentam, mataria sem dúvida.

ATRIZ 1
Isso porque você é uma louca. Esquerdopata. Petralha. Você tá ajudando a afundar esse país. Defendendo terrorista. Onde já se viu?

(silêncio)

 ATRIZ 2
É impossível discutir com gente burra.

ATRIZ 1
Concordo com você. Mas Jesus tem uma hora pra todos. Fique tranquila.

(o ator que fez a cena de sexo entra arrumando seu figurino)

ATRIZ 1
Moço! Posso falar com você um minutinho? Eu sou atriz também, e crítica de teatro. Eu gostaria de conversar sobre uma cena que vocês fizeram.

ATOR 1
Fique a vontade.

ATRIZ 1
Não é por causa da religião, viu. Eu sou católica, mas não sou muito praticante. É que com tudo o que aconteceu, acho que a gente devia ter mais respeito com os símbolos que envolvem as outras crenças, entendeu? Achei um pouco exagerado. Claro, que essa é só minha opinião no meu direito à expressão, não é mesmo? Vocês não precisam mudar a cena por mim, lógico. Mas o que você acha disso? Você não acha que vocês podem causar mais fúria nos extremistas, naqueles pastores deputados, por exemplo?

(silêncio)

ATRIZ 1
Então? Não acha?

(Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e Silas Malafaia entram com uma cruz grande que possui um formato de pênis na ponta; o Ator 1 tira a roupa completamente e fica de quatro)  

ATOR 1
Eu dou o cu em cena pra defender o meu direito de dar o cu na vida.

(Atriz 1, desesperada e gritando, fecha as cortinas rapidamente antes que possamos ver a penetração)

ATRIZ 1
Gente, que absurdo. Esse pessoal precisa de um processo judicial, não dá pra continuar desse jeito. É muito ódio contra Jesus.

(a Atriz 2 retorna)

ATRIZ 2
Não é contra Jesus, minha linda. É contra algumas pessoas que enfiaram no cu alguns bons pensamentos dele.  Se é que ele existiu.

ATRIZ 1
Vocês ainda vão engolir tudo isso. Vocês perceberam que eu fui a maior oprimida desse espetáculo? Que vocês todos são contra o que eu acho e que me humilham com essas heresias, e essa falta de respeito? Percebeu isso? Uma hora eu explodo e aí vocês vão ver só, ainda bem que eu sou uma pessoa calma.

ATRIZ 2
Você tem o direito de montar uma peça que ataque o grupo LGBT. Que fale que os gays estão errados por serem assim. Você tem esse direito de se expressar.

ATRIZ 1
Mas vocês vão tentar me censurar.

ATRIZ 2
Eu te censuro, você me censura. Talvez um dia a gente encontre uma balança.

(o Anjo entra em um foco recebendo uma boquete da Bandida)

ANJO
Talvez seja essa a real função da piada. Se olharmos pela perspectiva de que o planeta é um ser vivo por si só, e que nós somos células dessa vida que respira em conjunto, podemos concluir que o riso serve como combate às coisas que vemos e/ou julgamos como não naturais ou de ação falha. Se alguém tropeça na rua, ele torna-se um alvo de olhares e de risos; as vídeo cassetadas, é engraçadíssimo; são as células combatendo uma falha na ação, pra que não se tropece mais, que não se caia mais, que não se machuque mais. Então nós rimos. Mas e se for a sua mãe como uma sacola de compras que de repente se espalha pela rua um monte de laranja – que ela comprou com o duro suor dela – como seria? Seria engraçado? E se alguém se mijasse de rir de ver a sua mãe cair com as laranjas? A liberdade de se rir de algo, de rir da falha pode ser considerada por alguns como um concerto benigno pra nossa evolução. Já ouvi alguém dizer que rimos da gordice porque obesidade é uma doença, e o planeta precisa consertar isso, gordofobia não é só uma questão estética. Não sei até que ponto eu consigo defender esse pensamento, de que pessoas mereçam humilhação, exposição, serem xingadas de baleia, de zoeira, por uma saúde coletiva que só teremos um resultado palpável daqui alguns séculos ainda. Eu estou sendo um pouco egoísta, eu sei disso. Devíamos pensar nos que virão, no futuro, mas eu prefiro defender o prazer momentâneo também. E é disso que todos os seres respirantes precisam, um segundo de respiração, um sexo gostoso, comer o que quiser e por fim, a descoberta do que foi feito esse deus que tanto procuram. Átomos.

ATRIZ 1
Ih, outro ateu. Sacanagem. Um anjo ateu?

ANJO
Eu sou um astronauta ateu.

(Bandido entra raivoso com o que vê)

BANDIDO
Que merda que tá acontecendo aqui?

(Bandida se levanta; as duas atrizes se sentam pra assistir)

BANDIDA
Querido, ele é um anjo. Ele veio nos trazer salvação pra nossa vida bandida. Venha, chupe o pau dele comigo.

BANDIDO
Você ficou louca?

BANDIDA
Querido, você não precisa mais sofrer. Você pode se abrir agora. Ele me disse coisas lindas. Disse que distorceram todo o cristianismo. Você pode gostar de homens, meu amor. Não é errado isso, ninguém mais vai te oprimir agora, querido. Nós devemos devolver todo aquele dinheiro, distribuir com os pobres, criar projetos sociais. Chega dessa luxuria, meu amor! Venha, chupe, querido. Eu estou grávida.

(Anja entra)

ANJA
O que? Você o que? Eu não acredito nisso, meu amor!

ANJO
Nós usamos aquele negócio... como é?

BANDIDA
Camisinha. É um plástico que encapa.

ANJO
E aí estourou. Ela disse que era quase cem por cento de chance de funcionar. Eu sempre fui sortudo, né?

ANJA
Isso vai dar merda.

ANJO
Agora já foi. Ela é contra o aborto.

BANDIDA
Meu corpo, minhas regras.

BANDIDO
Vocês treparam, é isso que eu entendi?

BANDIDA
Ele é um anjo, meu amor. Ele me trouxe um filho do espírito santo. Vai ser diferente, você será como José.

BANDIDO
E desde quando você é católica?

BANDIDA
Desde sempre. (baixo) Cale a boca se não ele vai nos enviar pro inferno por duvidar. Vai, chupe o pinto dele. Anda logo!

BANDIDO
Eu que sou o macho. Eu sou o seu machão, Bandida.

BANDIDA
Você não precisa mais se esconder, meu amor. O fim dos tempos está chegando. Ele me disse que inventaram todo esse negócio de repressão sexual. Você pode ser uma flor, se você quiser. Agora você pode finalmente sair do armário, meu lindo.

(Anjo e Anja riem escondido; Bandido se enche de ódio)

BANDIDO
Eu não sei do que você está falando, sua lazarenta.

BANDIDA
Chiu. Relaxe, amor. Não precisa disso. Eles são seres divinos, eles estão aqui pra nos ajudar. Não é mesmo, meus amigos?

ANJO
Sim, sim. Você pode ser gay, sim, cara. Não precisa mais se reprimir. Eu não tenho preconceitos, anjos são bi sexuais. Se quiser vir, pode vir.

ANJA
Ele é roludo. Se divirta.

BANDIDO
Eu não sou gay! Eu odeio isso! Eu odeio isso!

(silêncio)

BANDIDA
Ele tá com medo de se abrir na frente de vocês. Nossa sociedade nos reprimiu de uma forma que tá impregnado nele esse medo de assumir.

BANDIDO
Cale a boca! Fica quieta!

ANJA
Quando nosso senhor Jesus voltar, esse homens que inventaram essas besteiras não terão chances. Fique tranquilo, meu amigo.

ANJO
Quem come também é gay, queridão. Não tem mais gay ou menos gay. Transa com pessoas do mesmo sexo, é gay.

BANDIDA
Viu, querido?

BANDIDO
Eu só dou uma correção em gente que se acha macho demais. Eu quero quebrar com esses machos de araque. Qualquer um vira a bunda por um preço, ou por um medo. Eu odeio homens. Eu odeio como eles tratam as mulheres. É isso que eu faço. Eu sou o macho sobre o macho!

ANJO
E quem vai quebrar com o macho que você pensa que é nesse direito de quebrar esses outros machos?

(silêncio)

ANJO
Venha. Chupe o meu bilauzão, chupe.

(silêncio; Bandido pensa por um tempo e depois vai até o Anjo)

BANDIDO
A força sempre vence.

BANDIDA E ANJA
Machos.

(Osama Bin Laden entra novamente; os outros personagens desaparecem; as duas atrizes continuam no mesmo local)

OSAMA
Lápis, caneta, lapiseira, bala halls e bandeirinha da paz! Cuidado, meus amigos! Um lápis é uma arma nos dias de hoje! E pode ser, num pode? Eu tenho a liberdade de achar isso por direito na constituição. Isso aqui é teatro, esse lápis pode ser o que eu quiser. Isso daqui é contrabando da polícia do Rio de Janeiro, meus colegas. Só gente da polícia usa esse tipo de caneta aqui. Em breve vou lançar uns quadrinhos que eu desenho. Eu sou desenhista também. Aí vocês vão ver o que é crítica de verdade. E se eu morrer lutando por um direito de ser livre, por escrever e desenhar o que eu quiser,  vou morrer feliz, vou morrer orgulhoso de mim, se por um acaso eu ofender alguém. Parece piegas, mas foda-se. Estamos todos, um atacando o outro com piadas e “falta de respeito” da nossa pessoal e intransferível forma de ver o que é moral e o que é imoral, e desde sempre isso acontece, num embate um tanto infantil de ambos os lados, eu confesso. A liberdade de expressão não deve ser medida, não, e nem censurada, de ambos os lados, então. Acho que devíamos rir sim de alguém que possui discursos que atrasam o nosso desenvolvimento social, como a homofobia, o racismo, o machismo, o fanatismo religioso, e afins. Mas eu penso assim porque somos artistas, ativistas, gays, maconheiros, putas, biscates, loucões que talvez morramos de overdose logo, logo por essa vida de puto. Se a gente tivesse outra vida, tivesse nascido em outro local, com outra religião influente, talvez teríamos crescido acreditando que temos que ser homens bombas pra conseguir liberdade. Nunca saberemos. Mas eu sei que com a minha opinião, com essa opinião esquerdopata de jovem que se acha revolucionário, eu terei que arcar com as consequências que os radicais poderão – e tem esse direito – de causar contra mim. Eu tenho que aceitar essa realidade, que todo mundo que eu ofendo também tem o direito de rebate. Se um tem o direito de ataque, o outro tem o direito de rebater na altura que achar necessária, no tamanho da dor da ofensa que é pessoal e intransferível também. Quem julga as importâncias de cada um no fim das contas? No final, vencerá sempre o mais forte, o que tiver o melhor advogado ou o que tiver a arma mais potente ou o que estiver em cena. E se por um acaso morrermos em nome da luta, faz parte da luta morrer.

(todos os outros atores aparecem em focos, com grandes metralhadoras em punho)

TODOS
Que vença o melhor.

(eles fuzilam a plateia)

(black-out)

****** FIM*******