ARTEIRO (OU ARTISTA) E O REGISTRO PROFISSIONALIZADO NO SENTIDO EXISTENCIAL E POÉTICO DA COISA

ARTEIRO (OU ARTISTA) E O REGISTRO PROFISSIONALIZADO NO SENTIDO EXISTENCIAL E POÉTICO DA COISA

MONÓLOGO EM TRÊS ATOS

PERSONAGENS
Ele
Participação de duas atrizes e um ator, combinados com antecedência.

ATO I

ELE
Fechem a porra da porta da burocracia e sentem as bundas por uma liberdade poética infinita! Agradeço a atenção, e o dinheiro da bilheteria que vai pagar o meu pão de cada dia. Não, eu não sou bom em projetos profissionais ou trabalhos sócios educativos. Não sou bom de lábia na papelada burocrática, e na venda do produto – que nem é bem um produto, convenhamos. Eu só queria colocar o meu cu aqui em jogo e ter gente pra vir assistir, sem motivo algum, sem ter um porquê, sem precisar exceder as expectativas críticas de vocês indivíduos de cabeças diferentes. Sem ter que pensar no amanhã, na janta de hoje, no preço do buzão, no aluguel e na porra do maldito cigarro.

ELE
Eu tenho vivido de favor, por não saber lidar com esse mundão. Por não querer ter um patrão, por ter medo de suar o sovaco com trabalhos inúteis para a minha própria e intransferível ascensão espiritual e existencial. Eu não consigo, eu prefiro morrer a pegar no batente. Vocês não devem saber do que eu estou falando. Eu também me formei no papel, fui no sindicato e coloquei meu registro numérico pra funcionar. Significou o quê? Bosta nenhuma. Um artista que não é louco e consegue se enquadrar no meio comum, tenho minhas dúvidas da sua capacidade artística e intelectual. “Oras, eu preciso comer, ninguém enche a barriga com poesia.” Pois eu prefiro morrer a calar a boca. Vocês, plateia, tem esse direito. Vocês tem esse direito de levantar a bunda da cadeira e ir embora, ou de me dar um tiro pra calar essa minha boca inútil e egoísta. Porra, por que só eu vou falar? Podem falar, podem atirar coisas em mim. O idiota que inventou que isso daqui seria um show de egocentrismo pra depois do espetáculo vocês virem me dar os parabéns pela minha desenvoltura cênica merecia um murro na boca do estômago. Que bosta!

ELE
Antes, o teatro servia pra outra coisa. Não tinha essa divisão. Não existe essa divisão, essa parede aqui, eu não sou o comandante aqui. Isso daqui era pra ser uma festa, pra gente dançar juntos, pra eu apertar a sua bundinha, pra gente se divertir. Pra você rir de mim, e eu rir de você, pra eu te beijar e pra você ficar bêbado com esse vinho, e pra enfim, aprendermos todos juntos alguma coisa. Mas não. Vocês vem, pagam a mixaria do ingresso, sentam as bundas e ficam com medo de que eu mexa com vocês. Ficam torcendo pra que eu consiga fazer vocês rirem, ou chorarem, ou torcendo pra que role algum tipo de nudez, alguma coisa inovadora; mas tudo em ordem e progresso, sem mudar muito as regras pra eu não me sentir incomodado. Sinto lhes informar, caros colegas, mas tudo já foi inventado, tudo já foi feito em cena. Só dá pra gente se divertir falando o que a gente quiser, sobre o assunto que rolar. Podia ser uma comédia sobre sexo, uma comédia familiar, uma crítica política, uma dança poética, um musical pra entretenimento, uma história baseada em fatos reais, algum assunto social ou o caralho a quatro. Mas não. Eu decidi vir aqui, sentar a minha bunda no canto desse palco e é essa a arte que eu vim pra mostrar. Gostem ou não, é isso. Fim.

ELE
Quem julga o artista não deve sair falando mal depois, deve vir e tacar me um murro na cara agora. Agora é a hora! Vir aqui e falar o tamanho da merda que eu sou, e não sair espalhando críticas não construtivas ao tipo e as escolhas de cena que eu fiz durante a apresentação. Vou ficar desconcertado se alguém me interromper nesse momento? Claro que vou. Vou ter que dar uma improvisada, porque isso daqui é dramaturgia, e tem começo, meio e fim. Mas eu iria ficar tão contente. Que alguém viesse agora e me desse um tapa na cara, ou um beijo na boca, que jogasse esse vinho na minha cara, ou roubasse o vinho e fosse embora. O que for! Queria tanto chegar aqui nesse palco burocrático de uma casa burocrática e que algum louco idiota batesse uma punheta na minha cara e mostrasse que liberdade artística tá na mão do atuante e na mão do espectador também. No mesmo nível de direitos! Não existe essa divisão! Não existe essa porcaria de divisão. O mais engraçado de tudo isso, é que se alguém tivesse me interrompido eu nem teria conseguido continuar com a minha reclamação e teria que ter pulado todo esse primeiro texto, mas até agora ninguém. É sempre assim. Rola um medinho do espectador.

ELE
Fiz parte de um grupo que tratava sua plateia como serviçais. Que acreditava que o público estava ali para servi-los de elogios e de maconha e de curtidas no Facebook depois do espetáculo. Eu odeio ser elogiado, não me procurem no final dessa merda. Não me adicionem que eu não vou aceitar se eu não te conhecer. Não babem no meu saco, não fiquem me bajulando, porque eu cago igual a todos aqui dentro. Todo dia eu sento na privada e cago igualzinho todo mundo. Não existe essa sensação de que o artista está num patamar diferente, intocável e adorado. Eu prefiro dizer que eu estou aqui pra servir vocês e não o oposto. Eu chupo pau, chupo buceta e peitinhos, dou o cu e faço o que quiserem. Sou um artista escravo dessa minha plateia linda que pagou pra me ver atuar, seus lindos. Não puxem meu saco, hoje é minha vez de fazer isso com vocês.

(Ele distribui taças de vinho para a plateia)

ELE
Gostaria de pedir pra que todos fiquem a vontade, podem tirar os sapatos se quiserem. Se quiserem tirar a roupa, fiquem a vontade também. Não há limites aqui dentro desse espaço, estamos aqui pra todos aprendermos alguma coisa e não só vocês. Vamos lá, gente, eu sou bastante crítico, e quero que vocês me impressionem.

ELE
Tem gente aqui que nunca havia ido à um teatro antes? Perigoso ter a primeira experiência com algo desse tipo, mas enfim, cada um tem aquilo que merece. Algum artista profissional, com registro em carteira de trabalho? DRT? Ótimo, lindo, grande bosta. Algum formado em academia? Mestrado ou doutorado em artes? Hum. Medo de vocês. Algum amador amante sensual dessa porra louquice teatral? Você é o meu tesão, caro amador.

ELE
Vou contar uma historinha. Certa vez um amigo que se diz ator veio e me disse: “Cara, vamos montar uma pecinha, eu e você. Tô meio cansadão de trabalhar com iniciantes e amadores. Quero algo com registro profissional.” Eu cuspi na cara dele. Não, não cuspi, eu sou um bundão na vida real, só tenho cu e coragem aqui nesse palco, na vida eu sou um merda. Mas naquele dia eu percebi com quem eu quero andar nessa vida, com qual tipo de artista eu não quero ter contato. Não, seus anos de experiência teatral não te faz melhor artista do que o pequeno iniciante aqui. Isso não te dá o direito de esculachar a arte dessa galera que tá começando agora; na verdade eu acredito que ninguém tem o direito de esculachar com a arte de ninguém. Gostar é uma coisa, esculachar é outra. Quantas vezes vi críticos dizendo o que devia e o que não devia ser feito em cena. Porra, em arte? Em teatro? Claro que eu entendo que se a proposta é um musical e nenhum dos atores cantam, óbvio que temos o que apontar como falha. Mas em escolhas de temas e estética? Isso é muita pretensão. Todo crítico, desses cínicos que se acham maiorais, não tem o produto pra mostrar pra gente poder criticar em rebate. Um crítico é um cara que não conseguiu pegar no batente e nem dar o cu à tapa aqui em cima de um palco. Claro, existem momentos pra uma discussão da arte, do que deve ser propagado e do que deve ser ignorado. Além dos gostos pessoais, claro que eu entendo das discussões e da importância de se discutir o proposto. Mas nunca desanime um grupo amador. Artista profissional tem o mal costume de se achar no direito de ser escroto, de ser mesquinho e palpiteiro. “Mas você sabe quem é Brecht? Você sabe quem é Meyerhold?” Meu cu, minha gente! Nunca tentem testar o coleguinha. Isso é feio, é mesquinho. Às vezes o cara só tá começando, e todo mundo já esteve no começo, porra!

ELE
Outra coisa que eu odeio é esse tipo de diretor que precisa mostrar seu poder com estupidez. Claro que as cagadas em um processo de montagem são fundamentais, mas tem gente que passa dos limites na ignorância. Tem gente que parece que não tem poder nenhum na vida pessoal, e aí desconta seu mau humor e sua falta de sexo na vida dos companheiros artísticos. Porra, gente, arte não é matemática. Tem as suas técnicas, mas tem muito mais vida e tesão do que uma porra de uma papelada acadêmica. “Ah, então você tá querendo dizer que o artista não precisa estudar, não precisa de técnica?” Lógico que não é isso. Um artista parado no tempo vai continuar cometendo os mesmos deslizes. Mas o que eu abomino é indiferença para com os amadores. Já está no nome, meus amigos. Eles são amantes e nós transformamos a arte em burocracia. Porque eu estou com meu numerozinho que o estado comprovou que eu sou artista, depois que eu paguei os quatrocentos e sessenta reais pro sindicato. Então eu não preciso comprovar nada mais em cena, é só eu abrir a minha carteira de trabalho e viver a porra da vida. Vejam. DRT: 38613. O estado me aceitou como artista. Vejam como eu sou um fodão. Vejam como eu mereço ser aplaudido no fim dessa merda, porque o estado é quem está dizendo, e quem são vocês pra falarem que não. E o amador? O amador tá ali fazendo por mais tesão ainda. Me lembro que quando eu ainda tava começando eu fiquei puto uma vez porque um grupo profissional que foi se apresentar na minha cidade nem comemorou no fim do espetáculo. “Porra, como assim eles não comemoram no fim do espetáculo? Eles não ficam felizes?” Naquela época, quando eu apresentava qualquer porcaria era um tesão descomunal que me fazia perder o sono. Hoje eu entendo um pouco do que aquele grupo tinha. Eles apresentavam aquilo todo final de semana, oras, não tinha mais o que comemorar, a vida era aquela, normalzinha. Quando a arte vira burocracia e vira a necessidade financeira, o amor, o amante teatral, o tesão do falar alguma coisa, desaparece e todos nós ficamos chatos e práticos e se achando no direito de ser melhores que vocês, doce plateia do meu coração. Não se assustem quando ouvirem de alguém que está envolvido com arte dizer que o ator/arteiro/artista é melhor e mais inteligente do que quem não é da área. Isso é uma mesquinharia clássica da nossa gente, peço desculpas desde já por isso. Mais vinho?

(ele serve pra quem pedir)

ELE
Enfim. Não sei pra que tá servindo tudo isso, mas não interessa também. Se vocês quisessem uma historinha qualquer, com conflitos e desenlaces, ficassem em casa assistindo novela. Eu não vim aqui pra isso. Eu vim aqui pra gente prosear, pra gente poder discutir essa porcaria da necessidade de só eu falar nessa merda. Talvez seja porque eu tô bebendo há mais tempo que vocês. Daqui a pouco vocês se soltam. Alguém aí fuma um baseadinho? Artista careta é o ó, hein? (ri) Com licença.

(Ele vai acender um baseado; a Atriz interrompe)

ATRIZ
Olha, você vai ter que me desculpar, mas essa casa burocrática segue as leis do estado. Você pode trabalhar profissionalmente como artista, pode ter o direito de se achar no direito de fazer o que quiser, mas fumar maconha em um local privado ou público ainda é contra a lei. Me desculpem. Eu sou responsável pelo local, não posso arriscar.

ELE
Mas na casa do artista pode tudo. Isso faz parte da minha cena. Tava na dramaturgia, minha querida. Faz parte desse meu personagem fumar maconha.

ATRIZ
Os vizinhos podem chamar a polícia. Alguém pode se incomodar aqui. Ao menos que seja maconha de mentira, eu não posso autorizar.

ELE
Mas o Zé Celso fuma maconha o quanto ele quiser. Se chamarem a polícia eles botam a polícia pra correr. Eu assumo esse risco, eu assumo a bomba.

ATRIZ
Bem, você não é o Zé Celso. E ele tem o teatro que é dele. De propriedade dele.

ELE
Porra, mas como eu posso continuar sendo podado desse jeito? Isso é censura! Ninguém falou que tinha limites aqui nessa porra.

ATRIZ
Você não precisa apelar pra fazer esse tipo de intervenção artística. O que você quer falar com essa maconha em cena? Que todo artista é louco drogado? Eu também sou atriz e nem por isso sou uma descabeçada irresponsável.

ELE
Eu tenho os meus motivos existenciais e poéticos. Pode não ser importante pra você, mas é importante pra mim.

ATRIZ
Isso daqui tá fazendo parte da cena, no fim das contas? Era isso que você esperava, não era?

ELE
Mas é claro que não! Eu só queria fumar meu baseadinho. O resto que se foda!

ATRIZ
Pois fume lá fora, depois que você acabar o que tem pra falar aí. Aqui dentro não. Desculpem.

(silêncio; a Atriz se retira discretamente)

ELE
Gente, me desculpem. Fui interpelado e não do jeito que eu achei direito. Eu queria uma intervenção externa, algo que fugisse do roteiro, mas não que me podassem. Eu não sou artista pra ser podado, entende? Não paguei os quatrocentos e sessenta reais pra ser impedido de fazer ou falar alguma coisa, entende? Não é justo limite artístico pra ninguém nessa vida. Brochei. Dá um black-out aí produção. Valeu. Calma, faz um black-out em resistência. Isso. Valeu, pessoal.

(black-out)

(em um vídeo, vemos algumas participações do ator em alguns curtas-metragens ou trabalhos em áudio visual)


ATO II

ELE
Música pra descontrair o ambiente. Vamos voltar a poesia e à estética teatral. Me mandaram entrar aqui e listar os meus problemas, expor pra encontrar uma solução. Escrevi essa canção pra eu poder me explicar, só o violão que tô aprendendo, ok?

“Me mandaram entrar aqui e listar os meus problemas
Expor para encontrar uma solução
Escrevi essa canção pra poder te explicar
Só o violão que tô aprendendo

Os meus princípios otimistas
Não sei onde é que foi parar
O meu discurso pessimista foi mais fácil de arrumar
E eu só vejo nesse mundo um destino de fuder
Pra mim e pra você
E não tem “mas”
Não sou sincero sempre

Quando digo que não estou bem
Não quero que venha me abraçar
Legal seria se dinheiro você pudesse me emprestar
E eu te diria amém
O mundo então vai ficar bem
“Se deus criou a rota mata”
Mas aí tá tudo bem
Não tenho dinheiro pra pagar o aluguel
E nem pra comprar um Marlboro
Já tá acabando a minha maconha
E tô devendo pro mundo
Que vergonha, inseguro
Vou ter que ligar pro tio Raimundo
Nem quero ver o que ele vai dizer
A minha alma pro capeta agora eu vou ter que vender

Então eu decidi uma peça montar
E achei que teria patrocínio
Mas nessa vida de artista não tem como se safar
Eu sou um grande amante do ócio
E não veio ninguém
Não vou negar
Com a grana só deu pra pagar o buzão
Quase não deu pra alimentação
Eis o meu dilema
Será que a morte é a melhor e única saída para meus problemas”

ELE
Palmas, caralho! É música de outra peça, mas foda-se. Tá no Youtube se alguém quiser baixar pra ter no celular. Compartilhem e curtam. Ajude os artistas sem fomento ou patrocínio cultural.  Por que diabos alguém paga pra ver um panaca fazer macaquices? Essa é a minha grande dúvida existencial. Vocês tem o direito de pedir o reembolso se vocês não gostarem do que viram, e eu tenho o direito de não devolver. Cada um tem aquilo que merece. Algum motivo pra estarmos aqui hoje, existe, não tenha dúvida disso. Nada acontece por acaso.

(o Ator se levanta da plateia, vai até o palco e beija Ele na boca; eles se beijam por alguns segundos)

ELE
Caralho. Isso sim é inesperado.

ATOR
Tem certeza que a gente não combinou isso antes?

ELE
Se combinou ou não, não interessa. O que interessa é essa sensação. Meu personagem não esperava por isso, ao menos eu devo fingir que isso foi espontâneo. Eis a lindeza da magia teatral.

(o Ator volta pro seu lugar na plateia)

ELE
Mais alguém? Façam fila, amados. Tenho beijos e saliva para todos.

(se tiver mais alguém, ótimo, se não, tudo bem)

ELE
Bom, enfim, ótimo, delícia. Agora é a hora de falarmos sobre deus, deuses e deusas. Para isso, necessito repetir uma cena de um outro espetáculo que fiz. Nada se cria, tudo se copia. Só que vou cantar uma música gospel enquanto preparo o meu chá dessa vez.

(em um liquidificador ele despeja algumas coisas estranhas misturadas; ao mesmo tempo canta alguma música brega de Jesus)

ELE
Bom apetite! (ele bebe a mistura)

ELE
Crises existenciais artísticas: o que não pode faltar? Sexo, drogas, estrelas, eu e deus. É o básico do meu estilo teatral. Só vamos esperar fazer o efeito, já que drogas ilícitas estão proibidas nesse local.

(Ele retira toda a roupa, ficando completamente nu; em vídeo vemos o universo; ele dança ao som de uma música frenética, ensandecido)

ELE
Foda-se o seu pudor. Corpo nu não é proibido em local público e/ou privado. Isso é um planeta redondo rodeado por pontinhos brilhantes de energia. É só um pinto, galera. Não se espantem tanto.

(o vídeo termina com a imagem de uma carteira de trabalho)

ELE
38613. Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão. Diversão de quem? Eu tô nesse mundo pra tentar entender alguma merda. Merda, artistas! Merda! Caralhos e bucetas para nossa alegria!

ELE
Alguém quer trepar? Não precisa ser aqui em cena, pode ser aqui escondidinho.

(uma das Atrizes se levanta da plateia e sobe no palco)

ELE
Para os iniciantes eu tenho um conselho. Vida de artista é tipo prostituição. Você está aqui pra vender a sua cara e o seu corpo para o público. Venha, querida. Vamos ali no cantinho.

(eles saem de cena; black-out)


ATO III

(quando as luzes se acendem, a Atriz volta pro seu lugar se arrumando discretamente; Ele volta com algum figurino grandioso de um espetáculo de época)

ELE
Desnecessário. Podia ter feito de outro jeito. Sem embasamento teórico. Escrachado. Exagerado. Gratuito. Pervertido. Copião. Clichê. Paga pau. Canastrão. Amador. Falso moralista. Pseudo intelectual. Dramaturgia contemporânea? Isso tudo era texto pré estabelecido com começo, meio e fim? Que porra de contradição é essa? Cuidado, artistas de terceiro grau! Todos viemos ao mundo se achando julgadores com um cajado divino da verdade absoluta do que se deve ou não fazer. Vou fazer a pergunta mais óbvia para discussões do tipo: o que é arte? Ah! O que é arte, meu deus do céu? O que é arte nessa porra? Vou explicar já.

(ele sai e volta com um quadro em branco)

ELE
Vejam bem. Arte não é matemática. Vou fazer um único ponto nesse espaço em branco.

(ele pinta um pontinho no quadro)

ELE
Obviamente, eu não vou conseguir responder a uma pergunta tão complexa, mas não existe ponto final nessa discussão, então está tudo certo. Vejam o que eu desenhei nesse quadro. Alguns dirão: "Não é nada, é só um pontinho num quadro em branco”. “Isso é arte? Esse cara quer vender esse quadro pra alguém? Que porcaria de artista esse cara pensa que é?” Gente, pra mim, esse único pontinho pode significar o tamanho da minha existência nesse universo entre tantos universos existentes, pode significar o tamanho que eu me sinto nessa vida de uma folha em branco, nessa loucura da vida, pode significar até mesmo a minha idiotice como artista cabaço, uma merda qualquer que qualquer um poderia fazer, mas isso não tira o meu mérito. “Porra, mas ele demorou dois segundos pra fazer essa merda.” Não interessa isso! Arte não tem a ver com o seu gosto ou com o gosto de terceiros, arte não precisa ter plateia, eu dei a opção pra vocês irem embora lá no começo do espetáculo. Eu sei que eu não me alimento de poesia, que eu preciso ganhar dinheiro de alguma forma pra me sustentar, mas mais do que isso – porque eu prefiro morrer a fazer outra coisa da vida – estamos aqui pra nos expressar, seja essa expressão a coisa mais estúpida e inútil nessa vida. E não vai ser a opinião de um qualquer que vai me tirar o mérito, e nem a opinião na carteira de trabalho do estado que vai me dar o direito de ser chamado de artista sim senhor! Eu não vou julgar o seu trabalho, posso não me envolver com ele, mas eu jamais irei julgar, porque de julgadores da grande verdade poética o mundo está cheio.

ELE
Eu subi esse morro porque preciso falar com deus. Deus tem uma mensagem para todos que querem ouvir. Precisei tomar um chá ativador da mente pra conseguir ser tão brisado assim, mas enfim, quem nunca? E ele me deus os dez mandamentos do artista moderno. Eis aqui para toda a noção, e para todo o sempre.

(no telão, vemos os mandamentos um a um)

ELE
1 - Nunca despreze a arte que você não pratica.
2 - Nunca diga "esse filme/peça é uma bosta". Diga: "gostei" ou "não gostei".
3 - Nunca menospreze o trabalho dos iniciantes. (Lembre-se, você já foi um)
4 - Nunca questione a escolha do tema de alguma obra. Ela pode não ter sido feita pra você.
5 - Nunca teste seu colega artista pra ver quem sabe mais sobre devido assunto.
6 - Nunca menospreze os "não-artistas".
7 - Nunca tente parecer cult. (Não se é cult tentando parecer cult)
8 - Nunca jogue seus estudos universitários na cara das pessoas (no nosso ramo existem diversos outros fatores para a definição do artista, tanto nas experiências práticas como nas acadêmicas, ou como na vida)
9 - Aceite que existe público pra todo tipo de manifestação nesse mundo.
10 - Não esconda a sua singularidade.

ELE
Foda-se o seu registro profissional, cara! Conheci tantos e tantos amadores que mandam bem melhor em cena do que você. Carimbo não diz nada nessa nossa área, então não se preocupe com isso. Seja um eterno amador do teatro! Ultimamente tenho visto tanta gente que odeia tanto tudo isso, porque só quem odeia uma coisa é que se torna um crítico desses pé no saco. Tenha consciência que gosto não é dono da verdade, e seja justo e paciente nos comentários sobre. Vamos dar as mãos, um, dois, três, e vamos deixar o mundo ser bonito do jeito que é, mesmo com o feio. Se for pra ser piegas, vamos ser piegas! Se for pra ser chulo, vamos ser chulos! Deixe acontecer naturalmente, eu não quero ver você chorar. A vida é bela, é bela a vida! Amor, amor, caralhos e bucetas e poesia sem rima! Nada de limitação, pelo amor dos deuses e das deusas! Chega de chatices acadêmicas e sistemáticos de plantão. Arte é outra coisa, mas eu também não sei realmente dizer o que ela é. (pausa) Obrigado.

(black-out)


FIM




A MADAME MAL AMADA E O PUTO ABANDONADO

A MADAME MAL AMADA E O PUTO ABANDONADO

PERSONAGENS
Solange
Boy

CENA 1

(Solange, madame bem vestida, entra calma e se ajeita em uma cama; ela tira um echarpe e acende um cigarro; de uma sacola, Solange retira um pequeno bolo de aniversário e coloca duas velas com os números cinco e zero; ela retira uma aliança de casamento e a esconde)

SOLANGE
Meio século de puro... (pensa) De puro... puro...

(um foco destaca Boy fazendo uma dança sensual para Solange; ele faz um strip-tease sem tirar a cueca e algum acessório sexual de couro no peito; Solange, com pouco interesse, impede que ele encoste muito nela; a música termina e ele tenta roubar um beijo, ela não aceita; um período de silêncio)

BOY
Você quer conversar? É o seu aniversário, é? Não parece que você tem cinquenta. Parabéns.

SOLANGE
Você é um rapaz bonito. Vai virar um homem bonito.

BOY
Obrigado.

SOLANGE
Qual a sua idade?

BOY
A metade. Um quarto de um século.

SOLANGE
Hum.

BOY
Dois.

(silêncio)

SOLANGE
Você gosta de fazer isso?

BOY
Não é fácil pagar a faculdade. Eu gosto sim.

SOLANGE
E seus pais?

(silêncio)

BOY
A gente veio pra trepar, não veio? Eu vou fazer tudo o que nenhum homem conseguiu fazer nesses seus cinquenta anos de existência.

(ele vai tentar beijá-la, ela se desvencilha)

SOLANGE
Eu não sou dessas garotinhas que você tá acostumado. Vamos com calma.

BOY
Na verdade eu tô acostumado com coroas. E com rapazes. Garotinhas não pagam pra trepar.

SOLANGE
Entendo.

BOY
Você só quer companhia, é isso? Eu posso ser uma boa companhia. Sei conversar também, sou letrado, de família boa. Vamo cortar o bolo?

SOLANGE
Ainda não.

(silêncio)

SOLANGE
Quer vestir a camiseta?

BOY
Eu tô bem assim.

SOLANGE
Fuma?

BOY
Só maconha.

SOLANGE
Fume um cigarro comigo.

(ela tira cinquenta reais da bolsa e entrega para ele; ele aceita o cigarro)

BOY
Tô vendo que eu vou ter uma noite fácil hoje.

SOLANGE
É difícil aguentar essas velhas mal comidas?

BOY
Não. Eu já disse que gosto. Gosto de deixar as pessoas se sentindo desejadas.

SOLANGE
Mas é uma encenação, não é?

BOY
Oi?

SOLANGE
É uma encenação. Você gosta porque você sai com dinheiro depois da gozada. De graça, você prefere as novinhas, não prefere?

BOY
Faz tempo que eu não sei o que é trepar de graça.

SOLANGE
Por que?

(silêncio)

BOY
Mundo louco esse.

(silêncio)

BOY
Você é casada?

(silêncio)

BOY
Você quer fumar um baseado?

SOLANGE
Você tem um baseado?

BOY
Tenho.

SOLANGE
Não, eu não quero. Você é jovem demais. Ainda está preso em algumas besteiras. Eu também já fui como você, também já fui porra louca, também já tive vinte e cinco anos. Essa vida passa e pede mais cuidado.

BOY
A gente vai fazer o quê, então? Por que você se considera mal comida?

(silêncio)

SOLANGE
Eu tenho um filho com a sua idade. A mais nova tem dezenove.

BOY
Dois?

SOLANGE
Três. Tive um menino e duas meninas. Marido empresário, bem cuidado, filhos universitários. Modelo familiar clássico, ao modo de ver das pessoas de bem.

BOY
E o sexo?

(silêncio)

SOLANGE
Faz tempo que eu não faço de graça.

BOY
(ri)

SOLANGE
Vida de mulher é diferente.

BOY
Sei bem.

SOLANGE
Você é bissexual?

BOY
Biologicamente todos somos, não? Mas de graça nada me interessa.

SOLANGE
Mas você prefere mulher.

BOY
Prefiro dinheiro.

(silêncio)

BOY
Por isso comigo você pode pular esse sentimento de culpa, entende? Que tá desesperada precisando pagar pra trepar. Comigo não tem essa, não. Meu tesão é esse. Eu gosto de me sentir vendido, e dar prazer por isso. Eu vou amar te dar prazer, isso me faz bem.

SOLANGE
Você é muito jovem ainda...

BOY
Eu não gosto muito quando usam dessa desculpa pra dizer que eu ainda vou entender alguma coisa que eu não sei.

SOLANGE
Desculpe.

(silêncio)

SOLANGE
Você parece um rapaz de personalidade. Qual é o seu signo?

BOY
(ri) É sério? Você é dessas místicas?

SOLANGE
Toda mulher velha é.

BOY
Você não é velha. Não use essa palavra.

SOLANGE
Você não precisa dar esses textinhos decorados pra me agradar.

BOY
Eu sou Leão.

SOLANGE
Eu já sabia.

(silêncio)

BOY
Estamos aqui pra quê, então? Você tava se sentindo sozinha no seu aniversário, é isso? Cadê a sua família?

(silêncio; Solange, vagarosamente corta dois pedaços de bolo e os coloca em um pratinho; os dois comem os primeiros pedaços em silêncio)

BOY
Gostoso.

SOLANGE
Você também. Mas pode guardar o seu tesão. Eu não quero trepar. Sua noite vai ser fácil.

(silêncio)

BOY
Eu não sei muito o que fazer, então...

(ela retira mais uma nota de cinquenta reais e entrega pra ele)

SOLANGE
Você vai ter uma noite fácil. Não se preocupe.

(silêncio)

BOY
Você tá com problemas?

SOLANGE
O que?

BOY
Muitos problemas em casa?

SOLANGE
Não. Minha vida é boa. Eu tenho tudo o que preciso. Meu marido dá conta também. Não tem falta de nada, nem de carinho nem de nada.

(silêncio; ela se aproxima do Boy e o acaricia no rosto, maternalmente)

SOLANGE
Você é um rapaz bonito.

(silêncio)

BOY
Você tá com pena de mim, não tá? Você vê a minha prostituição como coisa impura, não vê? Minha prostituição é pura escolha.

SOLANGE
Eu sei. Sua prostituição não é diferente da minha.

BOY
Você não ama seu marido?

SOLANGE
Se ele não tivesse dado a vida que ele me deu, eu não amaria não.

BOY
Dinheiro. Sei.

SOLANGE
Conforto.

BOY
Sei. Amor é coisa de cinema.

SOLANGE
Pelo menos isso você descobriu cedo. Na sua idade eu era tapada ainda.

BOY
Mas você já conhecia seu marido nessa época, não conhecia? Então você ama ele. Ou pelo menos amou em algum momento.

SOLANGE
Ninguém tem só um amor na vida.

BOY
Hum, entendi. Tem outro nessa história, é isso?

(silêncio)

SOLANGE
Eu disse. Eu fui bastante tapada na juventude.

BOY
Quem nunca?

(silêncio)

SOLANGE
Quer mais um pedaço?

BOY
Obrigado. Tô satisfeito.

SOLANGE
Vista a camiseta.

BOY
Tá calor, tô bem assim.

(ela retira outra nota de cinquenta reais; ele obedece se divertindo)

BOY
Seu marido deve ser um bom empresário.

(silêncio)

SOLANGE
E a sua mãe?

BOY
Não acho pertinente a gente falar sobre isso.

SOLANGE
Eu vou te dar o quanto de dinheiro você precisar.

(silêncio)

BOY
Minha mãe é boa. Nunca faltou nada em casa. Mas ela não podia dar a vida que eu queria ter. Hoje eu tenho meu apartamento com o dinheiro das gozadas da vida. Pago a minha faculdade e viajo pra fora do país uma vez por ano.

SOLANGE
Ela sabe disso?

BOY
Lógico que não.

SOLANGE
E ela não imagina de onde vem todo esse dinheiro?

BOY
Ela não me questiona. Na verdade, ela nunca teve tanta obrigação comigo.

SOLANGE
Por que?

(silêncio)

BOY
Na real, preferiria que a gente tivesse pelados nessa cama.

SOLANGE
Sua especialidade, né?

BOY
É. Eu sou taludo, deus me deu um presentão.

SOLANGE
Não fale essas coisas. Não precisa disso.

BOY
Você é do tipo puritana, é? Você quer que eu seja mais carinhoso, mais romântico? Eu sei fazer esse tipo de coisa também.

SOLANGE
Você não vai precisar ativar os seus dotes.

BOY
Eu fico meio atado assim. Conversar é muito chato. Vamo brincar um pouquinho.

SOLANGE
Eu quero saber mais de você.

(silêncio)

BOY
Por que isso?

SOLANGE
Porque sim. Porque eu vou pagar.

(silêncio)

SOLANGE
A sua infância. Como foi? Você viveu bem? Sua mãe cuidou bem de você?

(Boy veste a calça um pouco incomodado com o assunto)

BOY
Eu preferiria estar fazendo você gozar.

SOLANGE
Pare de falar essas coisas.

BOY
Eu sou um garoto de programa, você quer que eu fale de deus?

(silêncio)

SOLANGE
Vamos direto ao ponto, então.

BOY
Vamos. Vamos direto ao ponto. Você quer companhia pra trocar uma ideia. Eu não sou expert nisso, mas enfim.

SOLANGE
Eu quero te ajudar a sair dessa vida.

(silêncio)

BOY
O que? E você se importa, por quê?

SOLANGE
Me afeiçoei por você.

BOY
(ri) Olha, dona, eu não preciso que sintam pena de mim. Minha vida é boa. Minha vida é uma delícia, na verdade. Eu só tô usando o dom que deus me deu. Essa é minha profissão.

SOLANGE
Você não pode ser feliz fazendo isso.

BOY
Eu sou muito feliz.

SOLANGE
Você poderia ter tido outro destino, se eu não tivesse... (pausa) Você já foi uma criança, e se tivesse tido outras oportunidades nessa vida não iria precisar vender o corpo.

BOY
Qualquer profissão é uma venda do corpo, dona. Eu só não nasci pra ganhar mil reais, mil e quinhentos no mês pra ralar que nem um camelo. Eu venho, gozo e tiro mil reais na noite. Agora eu não me vendo pra um patrão cuzão achar que é dono de mim por um mês inteiro.

(silêncio)

SOLANGE
Se você é tão feliz assim, pra que você precisa usar droga?

BOY
Oi?

SOLANGE
Pra que você precisa de droga se você se diz tão feliz?

BOY
Maconha não é droga. Eu não uso outro tipo de coisa, nem cigarro e pouquíssimo álcool.

SOLANGE
Maconha é droga sim.

BOY
É só pra relaxar.

SOLANGE
Pra relaxa de algum estresse. De algum problema que você deve ter.

BOY
Lógico que eu tenho problemas. Quem não tem problemas? Mas minha profissão é o menor dos meus problemas.

SOLANGE
Eu quero ajudar você. Você merece mais do que isso.

BOY
Se você quiser me dar dinheiro pra ser seu cachorrinho companheiro de noites, aqui estou eu. Mas não vou abandonar meus outros clientes. Alguns deles precisam de mim pra continuar a vida.

(silêncio)

SOLANGE
Eu queria poder te falar...

BOY
Me falar o que?

SOLANGE
É complicado.

(Boy devolve cinquenta reais pra Solange; eles riem da brincadeira)

BOY
Pode me falar.

(silêncio)

SOLANGE
Você canta, não canta?

BOY
(estranha) Como você sabe disso?

SOLANGE
Supus. Eu sou uma velha mística.

BOY
Canto sim. Eu gosto de cantar. Eu costumo dizer que só largaria dessa profissão se eu encontrasse futuro em cantar.

SOLANGE
Cante uma música pra mim.

(silêncio)

BOY
Eu gozo e faço alguém gozar por quinhentos reais. Mas pra cantar quinhentos reais é muito pouco.

SOLANGE
Você disse que tira mil reais na noite.

BOY
Faço duas ou três sessões.

(silêncio; Solange entrega um bolo de dinheiro pra ele)

BOY
Eu vou ficar um pouco tímido agora.

SOLANGE
Relaxa. Cante pra mim.

BOY
Fazer um strip-tease é tão mais fácil.

SOLANGE
Só canta.

(silêncio; Boy se ajeita timidamente em um microfone)

BOY
“Foi você o sonho bonito que eu sonhei
Foi você eu lembro tão bem você na linda visão
E me fez sentir que o meu amor nasceu então
E aqui está você, somente você a mesma visão
Aquela do sonho que eu sonhei...
La la la la la la la la la... e aqui está você somente você a
Mesma visão...”

(Solange se emociona com a música)

BOY
Gostou? Você tá chorando?

SOLANGE
É engraçado. Eu cantava essa música pros meus filhos quando eles eram bebês.

BOY
Eu tenho lembranças boas com essa música. Lembranças que eu nem sei se existiram.

(Solange se aproxima de Boy e o acaricia no rosto novamente)

SOLANGE
Acredite. Os motivos existem. As lembranças existem.

(Boy estranha a reação de Solange)

BOY
Eu ainda preferiria que estivéssemos trepando.

SOLANGE
Para de falar isso. Eu já pedi pra você parar.

BOY
Nem minha mãe consegue me segurar na minha putaria de vida, nas minhas palavras. Tomei muito tapa na boca por causa da minha boca suja e ainda sim virei um puto.

SOLANGE
Faltou alguma coisa?

BOY
Amor não. Faltou dinheiro.

SOLANGE
Eu quero te ajudar.

BOY
Eu não gosto de esmolas. Eu preciso trabalhar pra ter dinheiro.

SOLANGE
Eu quero que você largue essa vida. Vá seguir seu sonho de ser cantor.

BOY
Você quer ser minha empresária, é isso? Eu não tenho futuro. Deus deu meu tom na cueca. Vinte e três centímetros duro e grosso.

SOLANGE
(se irrita) Para! Para com isso!

BOY
O que é bonito e gostoso tem que ser falado e mostrado.

SOLANGE
Não hoje, por favor.

BOY
Deus sabia o porquê eu nasci.

SOLANGE
Deus não tem nada a ver com isso. Eu sinto que... Eu posso mudar isso ainda.

BOY
Para de se preocupar, dona. Minha vida é boa.

SOLANGE
Mas poderia ser diferente se eu...

(silêncio)

SOLANGE
Me desculpe. Eu não devia estar fazendo isso.

(ela retira todo um envelope da bolsa e entrega pra ele)

BOY
O que é isso?

SOLANGE
Um presente. Uma desculpa.

BOY
Quanto tem aqui?

SOLANGE
O suficiente.

BOY
Quanto?

SOLANGE
Vinte mil. Pra você dar um jeito nessa vida.

(ela vai sair, ele a segura)

BOY
O que é isso, dona? O que tá acontecendo? Você passa a vida ajudando as pessoas por nada, é isso?

SOLANGE
A gente é cheio de merda nessa vida, garoto. Alguns erros não dá pra mudar. É difícil pra mim, foi difícil pra mim, e eu sei como é difícil pra você. Você pode até dizer que a sua vida é boa, que você é feliz, mas eu sei que você tem que se esconder. Você tem que se esconder das pessoas, porque o dinheiro que você ganha é impuro na visão das pessoas de bem. Eu sei das hipocrisias dessas tais pessoas de bem, mas é fácil falar, difícil é viver. Eu sou uma velha mística e eu vejo nos seus olhos que você também tem seus problemas, suas amarguras. Uma mulher que é mãe sabe olhar nos olhos de um rapaz e ver as coisas. (pausa) Me desculpe.

(antes de sair, ele a segura pelo braço de novo)

BOY
Espera. Só me deixe agradecer do jeito que eu sei, então.

(ele a beija carinhosamente; um selinho romântico; Solange quase chora)

SOLANGE
Me desculpa.

(Solange sai)

BOY
Que velha, maluca. (ele gargalha cheirando as notas de dentro do envelope) Caralho, vinte e mil reais, porra! Adoro pirações de coroas mal amadas. Coitado desse marido. (de dentro do envelope ele encontra uma foto; ele observa a foto sem entender até que algo o faz se assustar)

SOLANGE
(canta em off) “Foi você o sonho bonito que eu sonhei
Foi você eu lembro tão bem você na linda visão”

(Boy pega as suas coisas e sai correndo de cena)

(black-out)

(quando as luzes se acendem, Solange está de costas, com roupas mais simples e jovem, segurando um bebê; ela continua cantando enquanto sua voz narra ao fundo)

SOLANGE
“E me fez sentir que o meu amor nasceu então
E aqui está você, somente você a mesma visão
Aquela do sonho que eu sonhei...”

GRAVAÇÃO
Eu tive três filhos. Um menino e duas meninas. O menino foi fruto de um amor interrompido por forças naturais. As meninas eu pude ver crescer, pude dar carinho e comida na mesa. O passado fica na memória, e as coisas às vezes ficam erradas para sempre. Eu era uma tapada quando jovem, com medo dos meus pais, com medo da hipocrisia das pessoas de bem, de uma mãe solteira que não tinha onde cair morta, de um amor impossível interrompido por um casamento de fachada, por dinheiro. Abortar, naquela época, não era uma opção, eu nunca quis. Então eu tive aquele garotinho. (pausa) Mas eu o dei pro mundo.

(ela coloca o bebê em uma cesta e sai de cena enquanto ouvimos apenas o choro da criança)

FIM





A CRISE E OS VAGABUNDOS

A CRISE E OS VAGABUNDOS

PERSONAGENS
O POETA
O MILITANTE
O MARGINAL
A CRISE

O TEATRO É UM MUSEU DE ESTÁTUAS VIVAS. ENQUANTO A PLATEIA AGUARDA O TERCEIRO SINAL, OS TRÊS PRIMEIROS PERSONAGENS ESTÃO CADA UM EM UM PÚLPITO, COM UMA DESCRIÇÃO/EPITÁFIO EM UMA PLAQUINHA.

UMA PLACA DESCE TOSCAMENTE COM O TÍTULO DO PRIMEIRO ATO:
“O MUNDO DOS GUERRILHEIROS INJUSTIÇADOS E REVOLUCIONÁRIOS VAGABUNDOS EM TEATRO SURREALISTA”

NUM DEVIDO MOMENTO, O ESPETÁCULO SE INICIA NO SUSTO.

ATO 1

TODOS
“Nada o vagabundo vai tentar se alimentar-se-á
Nada o vagabundo vai tentar se alimentar-se-á
Nada o vagabundo
Nada o vagabundo
Nada
Nada”

(eles fixam o público)

TODOS
Quem fica pra história, também cagava. Os grandes homens. Em grandes privadas. Espremia espinha e se masturbava.

POETA
As santas, os santos e os Dumont!

MILITANTE
Os revolucionários e guerrilheiros dos direitos humanos!

MARGINAL
O Marquinho dono da biqueira do São Pedro.

TODOS
Nós fazemos parte da história. Eu, você. Você, eu e ele. Ele, eu e você. Você, nós, eles. Nós todos nesse caralho.

(um foco destaca a Crise, de costa para a plateia, em movimentos lentos; ela cantarola em uma aparição surreal)

TODOS
A crise bonita, dos cabelos coloridos, do rosto escondido, se anuncia em recitada poesia.

POETA
(se anuncia) É a minha área! Esse assunto é meu, eu domino!

(o Militante e o Marginal jogam poesias em papel para o alto)

POETA
De repente você nasce pelado, você nasce de dentro da vagina da sua mãe. Desculpe a indelicadeza, eu gosto de ser prático e direto. Aí ninguém avisa pra você que o mundo funciona desse ou de outro jeito, nenhum ser supremo aparece pra fazer alguma indicação real. Simplesmente nascido, cuspido, sem bula. Eu tento, mas eu não consigo me lembrar de nenhum manual de instruções confiável nessa vida, que desse pra tirar real proveito. Até tentam nos enfiar goela abaixo algumas indicações, algumas regras de normatividade, mas no mais, você olha pro alto e tá cheio de pontinhos brilhantes jogando a luz dessa energia cósmica na nossa cara, sem você querer palpitar. Elas simplesmente estão ali, observando indiferente a nossa existência, as estrelas, os planetas. Não importa se a gente tá se amando ou se explodindo, não importa. Nós humanos. A plantinha continua nascendo ali, eu querendo ou não, eu acompanhando o seu crescimento ou não. E é por isso que eu me tornei o que eu me tornei. Perco menos tempo cagando do que sentado na frente do papel, escrevendo, dissertando. Perco menos tempo dormindo do que tentando expressar minhas porcarias que ninguém nem gosta de ler, eu sei. E você me pergunta: “Pra quê então? Pra que serve? Pra que diabos você escreve se não tem espectador nenhum pra contemplar? O que você oferece para esse mundo? Qual é o seu produto?”.

MILITANTE E MARGINAL
“Não diga que você espera ganhar dinheiro com as suas poesias, meu caro. No mundo competitivo de hoje, não há mais espaço pra esse tipo de perda de tempo.”

(silêncio)

POETA
Os gênios em seu tempo sempre são subestimados.

(Militante e Marginal gargalham)

MILITANTE
Essa foi do fundo da humildade.

MARGINAL
Gênio!

(gargalham mais)

POETA
Eu também faço parte dessa história. Por bem ou por mal. Eu também estou vivendo a história rolando, molecada. E a crise existencial faz parte da alma do artista, aceitem isso. É melancolia mesmo.

MILITANTE
Você tem DRT?

MARGINAL
Tem registro profissional?

POETA
Artista não precisa da burocracia.

MILITANTE
E quer viver do que?

MARGINAL
Esqueceu que você também é um animal?

MILITANTE E MARGINAL
Você precisa se alimentar. Você precisa de proteínas. Não se compra nada com dinheiro de mentirinha, com seu jeito de vender poesia.

POETA
Eu não vendo as minhas coisas. Eu simplesmente escrevo. Não creio que eu tenha leitores. Ainda não consegui publicar.

(silêncio)

MILITANTE
Mas, então...?

POETA
É por isso que a crise me visita no meu quarto à noite. Devo a alma para ela. Ela tem me ajudado a pagar meu aluguel, a pagar as minhas contas, porque eu não consigo trabalhar no mundo real pra conseguir me sustentar. Tenho vivido de ganhar esmolas dos amigos, confesso. É uma fase, vai passar. 

MARGINAL
Vagabundo uma vez, vagabundo o resto da vida. Você é alcoólatra?

POETA
Se eu pudesse escrever, pintar, dançar por todos os segundos dessa minha curta existência eu ficaria feliz. É muito pedir isso?

MILITANTE
Meu deus do céu. Sem noção nenhuma. Rodinha de ciranda não muda o mundo, coração.

POETA
Muda sim! Pode acreditar que muda sim!

MARGINAL
Não muda não!

MILITANTE
Cu em teatrinho de porão contemporâneo não muda o mundo! Não adianta de porra nenhuma.

POETA
Muda sim, porra! Muda sim! Adianta sim! Você não tem noção de como muda, cara. 

MILITANTE
Seu produto é muito - como eu posso dizer? - efêmero, meu querido. Você não tem um produto vendável que seja palpável, consegue entender? Ninguém necessita realmente de poesia pra sobreviver.

MARGINAL
É verdade.

POETA
Na verdade necessita sim.

MARGINAL
Não necessita não. Eu, por exemplo, eu tô falando por mim, eu mesmo não necessito de poesia.

POETA
Precisa, necessita sim. Você é que não sabe.

MARGINAL
Se eu tô dizendo que eu não preciso quer dizer que eu não preciso. Eu que tô falando.

POETA
Se eu tô dizendo que você precisa, mas não sabe, quer dizer que você nunca vai assumir que precisa porque você acha que não precisa, mas eu como artista sei que você precisa da arte e a sociedade precisa também. 

MARGINAL
Você viaja.

POETA
Rap é poesia. Rap é poesia, por exemplo.

MARGINAL
(gargalha) Ah, cala a boca! Ó, o cara. "Rap é poesia"! Puta cara burro.

MILITANTE
Ele tem razão, Rap é poesia sim.

(longo silêncio; os três refletem sobre o que é poesia por um tempo; uma luz destaca a Crise novamente)

CRISE
(canta) “A gente faz música e não consegue gravar
A gente escreve livro e não consegue publicar
A gente escreve peça e morre antes de encenar
A gente tá por fora
Tê Mercedes não vai dar
Inútil. Nós somos todos inútil.”

TODOS
Inútil. Inutilizável. Substituível. Desnecessário. Lésbico. Negra. Periférico. Mão de obra mais barata. Amontoamento e controle militar à ferro e fogo.

MILITANTE
A mundo já é doente no centro, creio que todos concordam. Agora imagine que algumas crianças nascem e crescem numa borda dessa merda toda...

POETA
No lugar menos acolhido, esquecido.

MARGINAL
Como esperar por obediência? É de quem menos a gente pode exigir obediência, caralho!

MILITANTE E POETA
No último fio da margem. O marginal mais cruel é tão vítima quanto a sua vítima.

MARGINAL
(se anuncia) É a minha área! Esse assunto é o meu, violência eu domino!

(o Poeta e o Militante jogam papelotes de cocaína para o alto e aparecem com grandes armamentos)

MARGINAL
(vendedor) Cerveja, vinho, cocaína, maconha e loló! (explica) De repente você nasce pelado, você nasce de dentro da vagina da sua mãe. E a merda toda já começa quando o ator negro é o escolhido pra ser o marginal bandido traficante e dono de uma crueldade típica de vilão de quadrinhos de herói. Vejam bem, vocês podem me julgar, tô pouco me fudendo. Todo mundo tem o direito de fazer seu julgamento da vida, de querer dizer o que acha moral e imoral. Esses dias uma tia na rua me disse: “Menino, larga essa vida, vai fazer o ENEM.” “Ô, tia, eu nem terminei o ensino fundamental, não deu tempo pra perder tempo, morô?”. Minha mãe era puta, meu pai era crackeiro. Com dois anos de idade eu tomava chute se eu babasse o leite da mamadeira. A gente era em seis irmãos. Os mais velhos saiam cedo do barraco que a gente chamava de lar pra pedir dinheiro na rua pro meu pai poder comprar a droga dele. Eu não julgo meu pai, cada um tem sua história particular, a vida dele também foi uma merda. Minha mãe se prostituía porque era viciada, também não julgo, também pra comprar a droguinha do meu pai, que ela amava ele também. E aí não deu tempo de criar essa visão empreendedora do mundo, entende? Não deu tempo de pensar que trabalhar pra ganhar oitocentos contos por mês fosse a melhor e mais direita forma de me sustentar, entende? Nem deu tempo de abrir uma multinacional porque as duas pessoas que poderiam me dar algum suporte morreram antes de eu completar dez anos. E aí vida de orfanato pros seis coitados favelados, ranhentinhos. E depois foi tudo morar com a minha vó e uma tia. (pausa) Duas guerreiras. Nenhum dos meus irmãos fez a vida pra direita. (pausa) Aí eu arrumei um trampo uma vez. Um tiozinho me ofereceu cinquentão pra trabalhar carpindo uns terrenos pra ele. Eu tinha uns treze anos, catorze. Cinquentão pra passar a tarde toda no sol, queimando a cuca e criando calo de suor no sovaco. Aí na mesma época um parceiro de bocada me ofereceu duzentão por noite pra passar de aviãozinho de cocaína pros viciados do bairro. Duzentão por três horinhas de trampo, eu conseguia fazer. Noite de festa na cidade, dava pra tirar mais de mil, cara. Pra ajudar minha tia, ajudar uns irmão que tava preso, ajudar todo mundo, caralho! Aí a porra do playboy filha da puta vem me aconselhar pra eu mudar de vida e pra arrumar um trampo, que é mais digno eu me mijar de suor, matando frango, quebrando pedra, carpindo dez, doze horas por dia pra ganhar novecentos reais por mês, até o fim da vida e se aposentar sem ter conseguido nem ir pra Disney? Se liga, meu chapa. Que profissão seria melhor que essa que eu tenho, cara? Eu salvei minha tia e minha vó, porra. Salvei tudo os meus irmão. Por mês eu conseguia fazer a minha vida - quando a polícia não aparecia pra levar o meu dinheiro suado, claro. Porque havia um combinado, entendeu? Há um combinado entre os grandes e os pequenos. Chiu, não falo mais nada sobre isso. (pausa) Comprei motinha, carrinho, Xbox. Comprei namoradinha, levei meus irmãos mais novos em viagenzinha pro Guarujá, reformei a casa da minha tia, TV daquela fininha de parede. Porra, ENEM, tia? Perder tempo na frente do livro? Olha pra minha cara. Eu posso tomar um tiro amanhã e morrer, eu quero mais conseguir ter dinheiro também pra poder curtir a vida enquanto eu tô respirando aqui. Não dá tempo de pensar nas consequência, quando o pior já acontece na sua vida direto.

(silêncio; Militante e Poeta interpretam, talvez com máscaras)

MILITANTE E POETA
Desculpa de vagabundo, será sempre desculpa de vagabundo. Além de traficantezinho de merda, o garoto também roubava carros da Zona Norte. Ladrão!

MARGINAL
Roubei mesmo. Roubei e vou roubar ainda! E só roubo carro de rico, tá bom? Pobre que rouba pobre merece pau no cu. Só roubei carro de gente que tinha mais do que um. Pra que diabos uma família com três ou quatro indivíduos precisa ter oito carros na garagem? Oito carro pra três pessoas, porra! Aquilo existe pra juntar pó enquanto minha vó nem liquidificador tinha? Ela foi ter o primeiro liquidificador dela depois que eu comecei a colocar dinheiro em casa na mesa. 

MILITANTE
Síndrome de Robin Hood. Justiceiro do morro.

POETA
É você quem mede o valor do suor dos outros? A família de três indivíduos que possui oito carros conseguiu com o trabalho. Aposto eu que são todos louros. Bebem vinho e jogam baralho. 

MARGINAL
O valor do meu suor de criança faminta que tomava cacete de pais despreparados não foi levado em conta. Quando os direitos humanos e a assistência social veio tentar fazer alguma coisa pela comunidade, seus louros disseram que estavam tentando relaxar a barra de vagabundo, que assistência social acomoda o pobre. Porra, eu fui saber o gosto de um Danone só depois dos catorze! Caralho! Você tem noção que tipo de merda é essa e como foi que essa cabeça aqui se construiu? Porra!

POETA
A lei foi feita para ser cumprida.

MARGINAL
Se ela está do seu lado sim. Se ela está contra você não. Na rua a lei é da rua.

MILITANTE
Você nem é tão negro assim, cara. Podia sim ter escolhido outra vida. Todo mundo tem uma chance.

MARGINAL
"Você nem é tão negro assim"? Você tá tirando com a minha cara? Que tipo de argumento é esse? Eu nunca tive crise nenhuma pra me emprestar o dinheiro do aluguel, meus caros. Não tinha ninguém que olhasse por mim com dó, nem quando eu tinha nove anos de idade e experimentei maconha pela primeira vez. Eu era uma criança! Aí depois você vem me dizer que eu devia ter feito as escolhas direitas na minha vida pra não cair em desgraça? Eu já nasci desgraçado, sorte na vida de alguém como eu é virar traficantezinho de merda sim. Muitos morrem antes de conseguir o primeiro videogame. A crise pra mim é bosta, porque tudo é crise. Eu cago todo dia. Cagaram em mim literalmente porque onde eu morava não tinha saneamento básico. 

POETA E MILITANTE
Não é porque existe cachaçarias que as pessoas bebem cachaça, é porque as pessoas bebem cachaça que existe cachaçaria.

MARGINAL
Esse pensamento não é mais moderno. Se você perguntar qual o desejo, qual a felicidade de cada jovem nesse planeta, em cada lugar e cultura diferente, qual é a busca e a verdadeira felicidade desses jovens, a resposta será diferente pra cada um. Minha felicidade se dá pelo que dizem que é felicidade aqui nesse lugar que eu vivo. E os jovens da minha idade querem trepar, ir pra balada e jogar videogame fumando um baseado. Fim. Não pude deixar de ficar contente quando eu saí dar rolê com meu primeiro carro com o chassi adulterado. Se não fosse assim, eu teria que carpir e tomar sol na cuca por milhões de anos até conseguir comprar um fusca.

TODOS
Quem é o culpado da existência do marginal? A porra da ideia de felicidade que, infelizmente, só está no alcance de alguns. Dos que nasceram pré-avantajados e, ainda hoje, com menos melanina na pele.

CRISE
(canta) “A gente faz carro e não sabe guiar
A gente faz trilho e não tem trem pra botar
A gente faz filho e não consegue criar
A gente pede grana e não consegue pagar.
Inútil.”

TODOS
Inútil. Na margem. Preto. Pobre. Tomando chute de canalhas. Esquecido e trocado por um caviar. Julgado podre e desnecessário.

CRISE
O mundo precisa de militância! O mundo precisa de militância!

MILITANTE
(se anuncia) É a minha área! Esse assunto é meu, eu domino!

(o Poeta e o Marginal surgem com cartazes com frases de direitos humanos)

MILITANTE
Eu fiz USP. Meu pai paga meu aluguel. Meu pai pagou tudo nessa vida. Tenho conta poupança desde que nasci. A barba de vagabundo é consequência do curso que escolhi. Fiz filosofia. Maconheiro filosófico. Eu podia ter me tornado um empadinha, um enroladinho, defendendo a minha classe de nascença, defendendo o meu direito de não ter que dividir o aeroporto com a probaiada. Eu podia ter me acostumado com as injustiças dessa vida, já que a minha vida particular não era nada injusta. Meu bercinho de ouro ainda está guardado no porão de casa. Tive tudo. Playstation e Xbox. Fiz aula de piano, inglês e teatro. Fui pra Disney duas vezes. A vida me deu vantagem pelo suor de herança. Meu avô foi militar. Meu pai defende a volta da ditadura, claro, pra ele aquela época foi boa. Pra mim, posso dizer que realmente foi boa também, tive tudo de mão beijada por causa da pensão do meu avô. Eu não sou negro, não sou gay, não sou pobre, não sou mulher, não tive motivos pra me revoltar com essa vida, com a forma como sou tratado desde sempre. Eu podia ter ficado quietinho aceitando os milk-shakes e as baladas VIPS que a vida me proporciona todo dia. Mas eu quis ser revoltadinho. Eu chorei com as mortes na Candelária, e eu tinha cinco anos naquela época. Meu pai bravejando que vagabundo tinha que morrer e eu me perguntando por que eu tinha o direito de tomar Danoninho todo dia enquanto tinha criança morrendo na sarjeta pela mão do estado. Me chamam de esquerda caviar. Playboyzinho que defende o que não vive. Depois da maconha e dos meus livros de poesia não consigo mais colocar a cabeça no meu travesseiro de penas e dormir sossegado sabendo da injustiça que isso é. Da injustiça e da falta de oportunidades iguais. “Pois então pegue o seu Iphone e doe pra um mendigo, pegue o seu carrinho e troque por leite pelas crianças da favela.” (ri) O mundo tá cheio de idiotas, e eu tive tudo pra me tornar mais um. Eu não fiz um voto franciscano, não fiz um voto de pobreza, eu não acho que todos tenham que ser pobres, pelo contrário. Eu acho que há prosperidade para que todos gozem da vida com o mínimo de dignidade.

POETA E MARGINAL
Tá com dó? Adote um marginal.

MARGINAL
Me adote, tio. Eu me contento com um Danone por dia.

POETA
Você pensa que vai fazer revolução com seus posts no Facebook, Playboy? Sabe quem tá ligando pro que você pensa?

MARGINAL
Dá um real aí, tio.

POETA
Você pode até ser simpatizante de alguma causa, mas o protagonismo é de outras pessoas. Você é protagonista de historinhas de monarquia, meu caro. E você está no posto de rei, mesmo com essa barba.

MILITANTE
Eu não tinha como ter escolhido a vida que eu tive. Quando eu percebi, eu já tinha tudo.

(o Poeta e o Marginal gargalham)

MARGINAL
Quer trocar?

POETA
Mas mesmo que tivesse tido escolha, aposto que teria escolhido o papai e a mamãe de Higienópolis, né?

MILITANTE
Qualquer um que tivesse escolha escolheria isso. Todos queremos conforto. Eu só quero dizer que eu não me tornei um mercenário que quer lutar por mais e mais e mais. Eu não me tornei no clássico reaça que acha que todo mundo que não cresceu na vida é vagabundo.

POETA
Pois então reparta, Jesus!

MARGINAL
Comece repartindo comigo! Eu nunca andei de avião. Tomei geral a única vez que eu tentei me aproximar de um aeroporto. “Vagabundo não viaja de avião!”, gritaram.

MILITANTE
Eu não sou o culpado das injustiças desse mundo. Eu também nasci pelado.

POETA
Com correntinha e chupeta de morango e chocolate.

MARGINAL
Sem goteiras e córrego cheio de merda como vizinho.

POETA E MARGINAL
Você não muda o mundo sendo o pivô das injustiças. Se você tem o dobro, você tem o dobro pra quê?

MILITANTE
É culpa do meu pai, é culpa do meu avô!

POETA
Fácil colocar a culpa nos progenitores.

MILITANTE
A culpa de você ter se tornado um marginal também é de seus pais. A culpa de você ter se tornado um poeta também. É tudo culpa das gerações que passaram, nós somos vítimas dessa porcaria de sistema!

(Poeta e Marginal gargalham)

POETA
Vitimismo com Toddynho.

MARGINAL
Chupeta com glitter.

POETA
Você é o pior dos vagabundos, queridão.

MARGINAL
Seu suor vale mais que o meu de nascença.

MILITANTE
Eu confesso. Eu sou mesmo um vagabundo. Mas eu quero usar da minha vantagem que eu tenho de nascença pra impedir que exista cada vez mais injustiças.

POETA
E você vai virar o que? Político? Vai se candidatar a deputado pra mamar mais ainda nas tetas da sociedade?

MARGINAL
Ou prefere ser um guerrilheiro da luta armada? Pegar na metralhadora e paçocar a cabeça da polícia e do estado fascista. Não existe revolução sem violência, meu amigo. Se eu ficasse quieto no meu canto, eu já tinha morrido simplesmente por ser quieto e preto. “Muito quieto, muito preto, inútil”.

(silêncio)

MILITANTE
Eu não sou negro, não sou gay, não sou pobre, não sou mulher, não sou artista. Mas eu sou militante de todas essas causas e eu vou defender até o cu do burro pelo direito dessas pessoas.

POETA E MARGINAL
Simpatizante sim. Protagonista não.

MILITANTE
Eu aceito a coadjuvância.

(finalmente a Crise se vira para o público; suspense; seu rosto é indefinido)

TODOS
A crise da juventude abandonada e desesperada. É bonito e digno sofrer pelas injustiças do mundo. Revolução não parece revolução enquanto está na fase da batalha. Terá os que dirão que somos vagabundos, que queremos luxos e conforto sem suar. Terá também os que tentarão nos matar. Terá os que dirão que é perda de tempo porque o mundo já está na merda, que só temos que aceitar as condições. Mas não dá pra dormir em paz. Desenvolvimento de uma nação não é prédios e economia estável. Desenvolvimento de uma nação é bem estar social para os que estão vivos e respirando agora, nesse instante. Todos. Eu e você. Eu, você e ele. Você, ele e eu. Ele, eu e você.

CRISE
Vocês querem saber o que a crise acha?

TODOS
(se ajoelham desesperados) Sim! Sim! Queremos saber! Todos queremos a crise de bom humor e participativa! Ninguém aqui pensa em suicídio, pelo amor de deus!

(silêncio)

CRISE
Vocês já fazem parte da história, meus queridos. Tá vivo? Tá no mundo? Tá no cu do mundo? Faz parte da história. O lado que vocês escolherem defender vai dizer qual reencarnação de parte da sua alma vai continuar existindo. Ninguém lê o que você escreve, mas algum dia alguém lerá. Ninguém se importa com o pobre morto na operação policial, mas seus filhos lembrarão. Ninguém quer saber o que o maconheirinho revolucionário de merda quer dizer pro mundo, mas você ainda vai fazer alguém pensar. Tentar dói e é sofrimento na certa. Mas tentem. Só tem essa vida, só tem essa chance. Não custa tentar. Mudar o mundo é muita utopia, muita coisa de sonhador babaca? Foda-se.

TODOS
Foda-se!

CRISE
É clássico falar que os gênios são inúteis. Todo mundo é taxado como bosta antes de morrer. Mas se o problema é o medo de ser esquecido, sinto em avisá-los que esse é o destino de todos. Nenhuma estrela tá se importando com os nossos amores e as nossas guerras.

(silêncio; a Crise sai de cena quieta)

TODOS
“Nada o vagabundo vai tentar se alimentar-se-á
Nada o vagabundo vai tentar se alimentar-se-á
Nada o vagabundo
Nada o vagabundo
Nada
Nada”

POETA
Poesia não alimenta barriga.

MARGINAL
Tiro na cabeça mata em dois segundos.

MILITANTE
Utopia é coisa de vagabundo.

(as luzes caem em resistência; black-out)


ATO II

UMA PLACA DESCE TOSCAMENTE COM O TÍTULO DO SEGUNDO ATO:
“UTOPIA BABACA EM TEATRO REALISTA”

(quando as luzes se acendem o Marginal está com duas metralhadoras aguardando clientes; o Poeta e o Militante entram ao mesmo tempo)

MARGINAL
O que querem?

POETA
Maconha.

MILITANTE
Eu também.

POETA
Uma só.

MILITANTE
Me vê duas.

MARGINAL
Esperem aqui.

(o Marginal sai; o Poeta e o Militante se cumprimentam timidamente)

MILITANTE
Tá de boa hoje aqui?

POETA
Não sei. Eu vi uma viatura quando eu tava chegando, mas acho que tá tranquilo.

MILITANTE
Eu vi também. Dei um tempo antes de subir.

POETA
Eu também.

(silêncio)

MILITANTE
Só fuma maconha?

POETA
Só, só. Eu gosto de escrever. Maconha me dá inspiração.

MILITANTE
Escritor?

POETA
Poeta. Eu escrevo poesias.

MILITANTE
Legal, cara.

POETA
E você?

MILITANTE
Eu estudo na USP. Faço filosofia.

POETA
Legal.

MILITANTE
É. Feminista, maconheiro, abortista e vagabundo.

POETA
(ri) E petralha também, aposto.

MILITANTE
É o que tem pra defender na altura do campeonato.

POETA
Pois é. Entendo bem.

(silêncio)

POETA
Bom seria se a gente pudesse plantar, né? Morro de medo de ter que ficar vindo aqui.

MILITANTE
É. Mas vagabundo não tem vez, né? Coisas de vagabundos tão em segundo plano.

POETA
É, pois é. (pausa) Quem será que foi o merda que decidiu isso, né?

MILITANTE
Isso o que?

POETA
Que isso é liberado e isso é proibido. É tão absurdo essa merda.

MILITANTE
Pode crer. Sociedade hipócrita do caralho.

(o Marginal retorna)

MARGINAL
Tá aqui. Dez seu. Vinte seu.

(eles pegam e pagam)

POETA
Valeu!

MILITANTE
Valeu, fio!

(eles vão sair, mas param; o Marginal continua na sua pose com as metralhadoras)

MILITANTE E POETA
(começam a falar juntos) Viu...?

MILITANTE
Pode falar.

POETA
Não, por favor. Fala você primeiro.

MILITANTE
Não, por favor, aposto que o que você tem pra dizer é mais importante.

POETA
Imagina, eu sou só um poeta vagabundo.

MILITANTE
E eu um playboyzinho de merda. Pode falar.

MARGINAL
Qual é, caralho? Isso aqui não é reunião social. Pica mula.

(silêncio)

MILITANTE
Eu tenho uma proposta pra vocês dois.

MARGINAL
O que? Proposta de quê, maluco? Pirou?

MILITANTE
Você tem a arma, eu tenho o dinheiro e ele tem a sensibilidade artística. Eu acho que a gente podia fazer alguma coisa pra mudar essa porcaria.

POETA
Puxa vida, cara! Eu acredito muito naquele negócio de que as pessoas não se encontram por acaso, sabe? Eu não ia vir hoje, eu ia deixar pra vir na sexta, mas alguma coisa me fez subir pra comprar esse baseado nesse exato momento por algum motivo. Eu não sabia o que era, mas agora eu percebo. Essa nossa reunião não é por acaso. Eu super concordo com você.

MARGINAL
Mandei picar mula, molecada! Isso aqui não é bala de borracha. Vocês estão me cansando.
MILITANTE
Escuta, desculpe. Você também deve estar cansado das injustiças do mundo, não está? Você mais do que ninguém deve saber que merda é crescer rodeado de violência e sangue. Eu sou um nerd filho da puta que sonha demais, mas eu acho que a gente podia unir as nossas forças e combater de frente esse mundo. De mão armada mesmo e com um pouco de sensibilidade artística. Aí minha participação seria com o dinheiro do meu pai. Tipo o Batman, sabe? Formar um trio de super heróis justiceiros, sabe?

POETA
Eu concordo. Não dá pra gente mudar essa porra só levantando bandeirinha de paz. Você levanta a bandeirinha de paz e faz manifestação pacífica e ninguém dá atenção. Tem que quebrar tudo mesmo. Tem que fazer bagunça pra que essa porra desse mundo acorde de vez.

(o Marginal debocha gargalhando)

MARGINAL
O que é que tá acontecendo aqui? Vocês são surdos ou o que? Mandei vazar. Vaza!

MILITANTE
Meu amigo, veja bem.

MARGINAL
Vaza, caralho!

MILITANTE
Vamo assaltar um banco! Vamo lutar pelos direitos! Você só precisa entrar com as armas e a guerra e a gente faz o resto.

POETA
Eu fico com a parte sensível da coisa. Eu fico com o marketing e a criação das nossas teorias.

MILITANTE
E eu entro com o dinheiro. Meu pai tem muito dinheiro.

MARGINAL
Vocês querem assaltar, é?

MILITANTE
Não que eu precise. Talvez por uma síndrome de Robin Hood. Vamo começar assaltando o meu pai. Roubar o que o rico deve para a sociedade, porque ele tem demais, ele tem sobrando, enquanto tem gente que não tem nada.

POETA
Somos todos taxados de vagabundos mesmo. Não ia mudar nada. Estamos no mesmo barco.

MARGINAL
E vocês querem entrar na luta armada, então? Querem se aliar, é isso?

MILITANTE
Vamos fazer o nosso. Não por grana, por ideologia.

MARGINAL
Em que mundo vocês vivem?

(o Militante retira sua roupa/disfarce e por baixo ele veste alguma roupa clássica de super herói)

POETA
Não acredito.

(o Marginal gargalha)

MARGINAL
Tá de sacanagem.

(o Poeta também faz a mesma coisa e mostra sua roupa de herói)

MARGINAL
Ah, não! Você também!

POETA
Eu estive pensando nisso faz muito tempo. A gente tem que acabar com esses filhos da puta, com os verdadeiros vagabundos e a verdadeira bandidagem desse mundo.

MILITANTE
A elite que dorme bem enquanto outros não têm o que comer.

POETA
Isso!

MARGINAL
Vocês estão assistindo filmes demais.

MILITANTE
Talvez sim.

POETA
Mas não é novo mudar o mundo com arte.

(silêncio; o Marginal pensa contrariado, mas finalmente também revela sua identidade de herói)

POETA
Eu sabia! Eu sabia! Nada acontece por acaso!

MARGINAL
Eu ia numa festa a fantasia hoje.

POETA
Nada acontece por acaso!

MARGINAL
Seu pai tem carro?

MILITANTE
Tem. Meu pai tem carro que ele nem usa. Carro parado e empoeirado na garagem.

MARGINAL
E depois?

POETA
Depois a gente vai atrás dos grandes. Dos que possuem as fortunas.

MILITANTE
E daí a gente joga dinheiro pra comunidade do helicóptero do meu pai. Tipo Robin Hood mesmo.

MARGINAL
Vocês tão ligados que isso daqui tá parecendo um sonho de criança, né?

POETA
E o que nesse mundo não veio de um sonho de criança?

(silêncio)

MARGINAL
Odeio poesia.

POETA
Você pensa que odeia.

MARGINAL
Não, eu odeio mesmo. Vocês tão ligados que a gente vai mexer com as piores pessoas desse mundo, né? A gente vai fazer os piores inimigos do mundo, mexendo com gente rica. Eles estão blindados pelo estado e por todo armamento dos militares.

POETA
Por isso os disfarces.

(silêncio)

MARGINAL
Ai, ai. Eu não tenho nada a perder. E vocês?

MILITANTE
Eu não consigo mais dormir a noite.

POETA
Eu só escrevo sobre injustiças sociais.

(silêncio)

MARGINAL
Ok. Aceito.

(Com uma música de ação eles fazem alguma pose clássica de um trio de super heróis; como se esse fosse o final do espetáculo, eles terminam orgulhosos pelo plano de revolução que tiveram. Inesperadamente os três são metralhados por alguém fora de cena; os corpos caem e ficam mortos por um longo silêncio. Finalmente, a Crise entra vestida de Mulher Gato com metralhadoras)

CRISE
Crises existenciais infantis merecem ser podadas na raiz! Fim do espetáculo!

(black-out)

FIM