A MADAME MAL AMADA E O PUTO ABANDONADO

A MADAME MAL AMADA E O PUTO ABANDONADO

PERSONAGENS
Solange
Boy

CENA 1

(Solange, madame bem vestida, entra calma e se ajeita em uma cama; ela tira um echarpe e acende um cigarro; de uma sacola, Solange retira um pequeno bolo de aniversário e coloca duas velas com os números cinco e zero; ela retira uma aliança de casamento e a esconde)

SOLANGE
Meio século de puro... (pensa) De puro... puro...

(um foco destaca Boy fazendo uma dança sensual para Solange; ele faz um strip-tease sem tirar a cueca e algum acessório sexual de couro no peito; Solange, com pouco interesse, impede que ele encoste muito nela; a música termina e ele tenta roubar um beijo, ela não aceita; um período de silêncio)

BOY
Você quer conversar? É o seu aniversário, é? Não parece que você tem cinquenta. Parabéns.

SOLANGE
Você é um rapaz bonito. Vai virar um homem bonito.

BOY
Obrigado.

SOLANGE
Qual a sua idade?

BOY
A metade. Um quarto de um século.

SOLANGE
Hum.

BOY
Dois.

(silêncio)

SOLANGE
Você gosta de fazer isso?

BOY
Não é fácil pagar a faculdade. Eu gosto sim.

SOLANGE
E seus pais?

(silêncio)

BOY
A gente veio pra trepar, não veio? Eu vou fazer tudo o que nenhum homem conseguiu fazer nesses seus cinquenta anos de existência.

(ele vai tentar beijá-la, ela se desvencilha)

SOLANGE
Eu não sou dessas garotinhas que você tá acostumado. Vamos com calma.

BOY
Na verdade eu tô acostumado com coroas. E com rapazes. Garotinhas não pagam pra trepar.

SOLANGE
Entendo.

BOY
Você só quer companhia, é isso? Eu posso ser uma boa companhia. Sei conversar também, sou letrado, de família boa. Vamo cortar o bolo?

SOLANGE
Ainda não.

(silêncio)

SOLANGE
Quer vestir a camiseta?

BOY
Eu tô bem assim.

SOLANGE
Fuma?

BOY
Só maconha.

SOLANGE
Fume um cigarro comigo.

(ela tira cinquenta reais da bolsa e entrega para ele; ele aceita o cigarro)

BOY
Tô vendo que eu vou ter uma noite fácil hoje.

SOLANGE
É difícil aguentar essas velhas mal comidas?

BOY
Não. Eu já disse que gosto. Gosto de deixar as pessoas se sentindo desejadas.

SOLANGE
Mas é uma encenação, não é?

BOY
Oi?

SOLANGE
É uma encenação. Você gosta porque você sai com dinheiro depois da gozada. De graça, você prefere as novinhas, não prefere?

BOY
Faz tempo que eu não sei o que é trepar de graça.

SOLANGE
Por que?

(silêncio)

BOY
Mundo louco esse.

(silêncio)

BOY
Você é casada?

(silêncio)

BOY
Você quer fumar um baseado?

SOLANGE
Você tem um baseado?

BOY
Tenho.

SOLANGE
Não, eu não quero. Você é jovem demais. Ainda está preso em algumas besteiras. Eu também já fui como você, também já fui porra louca, também já tive vinte e cinco anos. Essa vida passa e pede mais cuidado.

BOY
A gente vai fazer o quê, então? Por que você se considera mal comida?

(silêncio)

SOLANGE
Eu tenho um filho com a sua idade. A mais nova tem dezenove.

BOY
Dois?

SOLANGE
Três. Tive um menino e duas meninas. Marido empresário, bem cuidado, filhos universitários. Modelo familiar clássico, ao modo de ver das pessoas de bem.

BOY
E o sexo?

(silêncio)

SOLANGE
Faz tempo que eu não faço de graça.

BOY
(ri)

SOLANGE
Vida de mulher é diferente.

BOY
Sei bem.

SOLANGE
Você é bissexual?

BOY
Biologicamente todos somos, não? Mas de graça nada me interessa.

SOLANGE
Mas você prefere mulher.

BOY
Prefiro dinheiro.

(silêncio)

BOY
Por isso comigo você pode pular esse sentimento de culpa, entende? Que tá desesperada precisando pagar pra trepar. Comigo não tem essa, não. Meu tesão é esse. Eu gosto de me sentir vendido, e dar prazer por isso. Eu vou amar te dar prazer, isso me faz bem.

SOLANGE
Você é muito jovem ainda...

BOY
Eu não gosto muito quando usam dessa desculpa pra dizer que eu ainda vou entender alguma coisa que eu não sei.

SOLANGE
Desculpe.

(silêncio)

SOLANGE
Você parece um rapaz de personalidade. Qual é o seu signo?

BOY
(ri) É sério? Você é dessas místicas?

SOLANGE
Toda mulher velha é.

BOY
Você não é velha. Não use essa palavra.

SOLANGE
Você não precisa dar esses textinhos decorados pra me agradar.

BOY
Eu sou Leão.

SOLANGE
Eu já sabia.

(silêncio)

BOY
Estamos aqui pra quê, então? Você tava se sentindo sozinha no seu aniversário, é isso? Cadê a sua família?

(silêncio; Solange, vagarosamente corta dois pedaços de bolo e os coloca em um pratinho; os dois comem os primeiros pedaços em silêncio)

BOY
Gostoso.

SOLANGE
Você também. Mas pode guardar o seu tesão. Eu não quero trepar. Sua noite vai ser fácil.

(silêncio)

BOY
Eu não sei muito o que fazer, então...

(ela retira mais uma nota de cinquenta reais e entrega pra ele)

SOLANGE
Você vai ter uma noite fácil. Não se preocupe.

(silêncio)

BOY
Você tá com problemas?

SOLANGE
O que?

BOY
Muitos problemas em casa?

SOLANGE
Não. Minha vida é boa. Eu tenho tudo o que preciso. Meu marido dá conta também. Não tem falta de nada, nem de carinho nem de nada.

(silêncio; ela se aproxima do Boy e o acaricia no rosto, maternalmente)

SOLANGE
Você é um rapaz bonito.

(silêncio)

BOY
Você tá com pena de mim, não tá? Você vê a minha prostituição como coisa impura, não vê? Minha prostituição é pura escolha.

SOLANGE
Eu sei. Sua prostituição não é diferente da minha.

BOY
Você não ama seu marido?

SOLANGE
Se ele não tivesse dado a vida que ele me deu, eu não amaria não.

BOY
Dinheiro. Sei.

SOLANGE
Conforto.

BOY
Sei. Amor é coisa de cinema.

SOLANGE
Pelo menos isso você descobriu cedo. Na sua idade eu era tapada ainda.

BOY
Mas você já conhecia seu marido nessa época, não conhecia? Então você ama ele. Ou pelo menos amou em algum momento.

SOLANGE
Ninguém tem só um amor na vida.

BOY
Hum, entendi. Tem outro nessa história, é isso?

(silêncio)

SOLANGE
Eu disse. Eu fui bastante tapada na juventude.

BOY
Quem nunca?

(silêncio)

SOLANGE
Quer mais um pedaço?

BOY
Obrigado. Tô satisfeito.

SOLANGE
Vista a camiseta.

BOY
Tá calor, tô bem assim.

(ela retira outra nota de cinquenta reais; ele obedece se divertindo)

BOY
Seu marido deve ser um bom empresário.

(silêncio)

SOLANGE
E a sua mãe?

BOY
Não acho pertinente a gente falar sobre isso.

SOLANGE
Eu vou te dar o quanto de dinheiro você precisar.

(silêncio)

BOY
Minha mãe é boa. Nunca faltou nada em casa. Mas ela não podia dar a vida que eu queria ter. Hoje eu tenho meu apartamento com o dinheiro das gozadas da vida. Pago a minha faculdade e viajo pra fora do país uma vez por ano.

SOLANGE
Ela sabe disso?

BOY
Lógico que não.

SOLANGE
E ela não imagina de onde vem todo esse dinheiro?

BOY
Ela não me questiona. Na verdade, ela nunca teve tanta obrigação comigo.

SOLANGE
Por que?

(silêncio)

BOY
Na real, preferiria que a gente tivesse pelados nessa cama.

SOLANGE
Sua especialidade, né?

BOY
É. Eu sou taludo, deus me deu um presentão.

SOLANGE
Não fale essas coisas. Não precisa disso.

BOY
Você é do tipo puritana, é? Você quer que eu seja mais carinhoso, mais romântico? Eu sei fazer esse tipo de coisa também.

SOLANGE
Você não vai precisar ativar os seus dotes.

BOY
Eu fico meio atado assim. Conversar é muito chato. Vamo brincar um pouquinho.

SOLANGE
Eu quero saber mais de você.

(silêncio)

BOY
Por que isso?

SOLANGE
Porque sim. Porque eu vou pagar.

(silêncio)

SOLANGE
A sua infância. Como foi? Você viveu bem? Sua mãe cuidou bem de você?

(Boy veste a calça um pouco incomodado com o assunto)

BOY
Eu preferiria estar fazendo você gozar.

SOLANGE
Pare de falar essas coisas.

BOY
Eu sou um garoto de programa, você quer que eu fale de deus?

(silêncio)

SOLANGE
Vamos direto ao ponto, então.

BOY
Vamos. Vamos direto ao ponto. Você quer companhia pra trocar uma ideia. Eu não sou expert nisso, mas enfim.

SOLANGE
Eu quero te ajudar a sair dessa vida.

(silêncio)

BOY
O que? E você se importa, por quê?

SOLANGE
Me afeiçoei por você.

BOY
(ri) Olha, dona, eu não preciso que sintam pena de mim. Minha vida é boa. Minha vida é uma delícia, na verdade. Eu só tô usando o dom que deus me deu. Essa é minha profissão.

SOLANGE
Você não pode ser feliz fazendo isso.

BOY
Eu sou muito feliz.

SOLANGE
Você poderia ter tido outro destino, se eu não tivesse... (pausa) Você já foi uma criança, e se tivesse tido outras oportunidades nessa vida não iria precisar vender o corpo.

BOY
Qualquer profissão é uma venda do corpo, dona. Eu só não nasci pra ganhar mil reais, mil e quinhentos no mês pra ralar que nem um camelo. Eu venho, gozo e tiro mil reais na noite. Agora eu não me vendo pra um patrão cuzão achar que é dono de mim por um mês inteiro.

(silêncio)

SOLANGE
Se você é tão feliz assim, pra que você precisa usar droga?

BOY
Oi?

SOLANGE
Pra que você precisa de droga se você se diz tão feliz?

BOY
Maconha não é droga. Eu não uso outro tipo de coisa, nem cigarro e pouquíssimo álcool.

SOLANGE
Maconha é droga sim.

BOY
É só pra relaxar.

SOLANGE
Pra relaxa de algum estresse. De algum problema que você deve ter.

BOY
Lógico que eu tenho problemas. Quem não tem problemas? Mas minha profissão é o menor dos meus problemas.

SOLANGE
Eu quero ajudar você. Você merece mais do que isso.

BOY
Se você quiser me dar dinheiro pra ser seu cachorrinho companheiro de noites, aqui estou eu. Mas não vou abandonar meus outros clientes. Alguns deles precisam de mim pra continuar a vida.

(silêncio)

SOLANGE
Eu queria poder te falar...

BOY
Me falar o que?

SOLANGE
É complicado.

(Boy devolve cinquenta reais pra Solange; eles riem da brincadeira)

BOY
Pode me falar.

(silêncio)

SOLANGE
Você canta, não canta?

BOY
(estranha) Como você sabe disso?

SOLANGE
Supus. Eu sou uma velha mística.

BOY
Canto sim. Eu gosto de cantar. Eu costumo dizer que só largaria dessa profissão se eu encontrasse futuro em cantar.

SOLANGE
Cante uma música pra mim.

(silêncio)

BOY
Eu gozo e faço alguém gozar por quinhentos reais. Mas pra cantar quinhentos reais é muito pouco.

SOLANGE
Você disse que tira mil reais na noite.

BOY
Faço duas ou três sessões.

(silêncio; Solange entrega um bolo de dinheiro pra ele)

BOY
Eu vou ficar um pouco tímido agora.

SOLANGE
Relaxa. Cante pra mim.

BOY
Fazer um strip-tease é tão mais fácil.

SOLANGE
Só canta.

(silêncio; Boy se ajeita timidamente em um microfone)

BOY
“Foi você o sonho bonito que eu sonhei
Foi você eu lembro tão bem você na linda visão
E me fez sentir que o meu amor nasceu então
E aqui está você, somente você a mesma visão
Aquela do sonho que eu sonhei...
La la la la la la la la la... e aqui está você somente você a
Mesma visão...”

(Solange se emociona com a música)

BOY
Gostou? Você tá chorando?

SOLANGE
É engraçado. Eu cantava essa música pros meus filhos quando eles eram bebês.

BOY
Eu tenho lembranças boas com essa música. Lembranças que eu nem sei se existiram.

(Solange se aproxima de Boy e o acaricia no rosto novamente)

SOLANGE
Acredite. Os motivos existem. As lembranças existem.

(Boy estranha a reação de Solange)

BOY
Eu ainda preferiria que estivéssemos trepando.

SOLANGE
Para de falar isso. Eu já pedi pra você parar.

BOY
Nem minha mãe consegue me segurar na minha putaria de vida, nas minhas palavras. Tomei muito tapa na boca por causa da minha boca suja e ainda sim virei um puto.

SOLANGE
Faltou alguma coisa?

BOY
Amor não. Faltou dinheiro.

SOLANGE
Eu quero te ajudar.

BOY
Eu não gosto de esmolas. Eu preciso trabalhar pra ter dinheiro.

SOLANGE
Eu quero que você largue essa vida. Vá seguir seu sonho de ser cantor.

BOY
Você quer ser minha empresária, é isso? Eu não tenho futuro. Deus deu meu tom na cueca. Vinte e três centímetros duro e grosso.

SOLANGE
(se irrita) Para! Para com isso!

BOY
O que é bonito e gostoso tem que ser falado e mostrado.

SOLANGE
Não hoje, por favor.

BOY
Deus sabia o porquê eu nasci.

SOLANGE
Deus não tem nada a ver com isso. Eu sinto que... Eu posso mudar isso ainda.

BOY
Para de se preocupar, dona. Minha vida é boa.

SOLANGE
Mas poderia ser diferente se eu...

(silêncio)

SOLANGE
Me desculpe. Eu não devia estar fazendo isso.

(ela retira todo um envelope da bolsa e entrega pra ele)

BOY
O que é isso?

SOLANGE
Um presente. Uma desculpa.

BOY
Quanto tem aqui?

SOLANGE
O suficiente.

BOY
Quanto?

SOLANGE
Vinte mil. Pra você dar um jeito nessa vida.

(ela vai sair, ele a segura)

BOY
O que é isso, dona? O que tá acontecendo? Você passa a vida ajudando as pessoas por nada, é isso?

SOLANGE
A gente é cheio de merda nessa vida, garoto. Alguns erros não dá pra mudar. É difícil pra mim, foi difícil pra mim, e eu sei como é difícil pra você. Você pode até dizer que a sua vida é boa, que você é feliz, mas eu sei que você tem que se esconder. Você tem que se esconder das pessoas, porque o dinheiro que você ganha é impuro na visão das pessoas de bem. Eu sei das hipocrisias dessas tais pessoas de bem, mas é fácil falar, difícil é viver. Eu sou uma velha mística e eu vejo nos seus olhos que você também tem seus problemas, suas amarguras. Uma mulher que é mãe sabe olhar nos olhos de um rapaz e ver as coisas. (pausa) Me desculpe.

(antes de sair, ele a segura pelo braço de novo)

BOY
Espera. Só me deixe agradecer do jeito que eu sei, então.

(ele a beija carinhosamente; um selinho romântico; Solange quase chora)

SOLANGE
Me desculpa.

(Solange sai)

BOY
Que velha, maluca. (ele gargalha cheirando as notas de dentro do envelope) Caralho, vinte e mil reais, porra! Adoro pirações de coroas mal amadas. Coitado desse marido. (de dentro do envelope ele encontra uma foto; ele observa a foto sem entender até que algo o faz se assustar)

SOLANGE
(canta em off) “Foi você o sonho bonito que eu sonhei
Foi você eu lembro tão bem você na linda visão”

(Boy pega as suas coisas e sai correndo de cena)

(black-out)

(quando as luzes se acendem, Solange está de costas, com roupas mais simples e jovem, segurando um bebê; ela continua cantando enquanto sua voz narra ao fundo)

SOLANGE
“E me fez sentir que o meu amor nasceu então
E aqui está você, somente você a mesma visão
Aquela do sonho que eu sonhei...”

GRAVAÇÃO
Eu tive três filhos. Um menino e duas meninas. O menino foi fruto de um amor interrompido por forças naturais. As meninas eu pude ver crescer, pude dar carinho e comida na mesa. O passado fica na memória, e as coisas às vezes ficam erradas para sempre. Eu era uma tapada quando jovem, com medo dos meus pais, com medo da hipocrisia das pessoas de bem, de uma mãe solteira que não tinha onde cair morta, de um amor impossível interrompido por um casamento de fachada, por dinheiro. Abortar, naquela época, não era uma opção, eu nunca quis. Então eu tive aquele garotinho. (pausa) Mas eu o dei pro mundo.

(ela coloca o bebê em uma cesta e sai de cena enquanto ouvimos apenas o choro da criança)

FIM





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