MISTER EPITÁFIO

MISTER EPITÁFIO

PERSONAGENS
Epitáfio

PRÓLOGO

(enquanto o público entra, Epitáfio fuma um cigarro e termina uma garrafa de whisky; uma corda balança ao centro)

EPITÁFIO
Devia ter fumado menos
Complicado menos
Devia ter apertado o foda-se
Devia ter trabalhado mais
Nas coisas que a gente faz paz
Ter feito muito mais sexo

Devia ter exercitado
A vida é como ela é
Eu poderia ter me livrado
Das pessoas de má fé

(ele abre um vidro com algumas pílulas e enfia tudo goela abaixo)

EPITÁFIO
Uma última brisa. (pausa) Não é todo dia que a gente vê um suicídio ao vivo, então preparem-se as bundas e a adrenalina dos vossos corações. Não repitam isso em casa.

(ele sobe em um banquinho e enrola a corda no pescoço)

EPITÁFIO
Calma. Relaxa. Não sintam pena. Não é fraqueza. É força. Eu me considero mais forte, mais corajoso, mais sensível. (gargalha louco) Só não tenho mais propósitos. Sabe os propósitos? Eu não tenho mais. Peço para que os meus amigos não me enfiem na eternidade dentro de uma caixa lacrada. Eu quero ser enterrado direto na terra, pra eu poder continuar, pra eu poder virar flor depois, comida de minhoca, que seja. Lacrado não.

(o banquinho balança)

EPITÁFIO
Opa! Calma! Tudo tem seu tempo, tempo. Muita calma nessa hora. (ele vira o último gole do whisky) Preparados? Eu sei como é difícil, mas não tenham pena desse meu segundo de desespero artístico. Não é desespero nenhum. E nem artístico. Faz parte da vida, morrer. Eu não tô triste, não tô com medo, não tô com conta nenhuma pra pagar. Eu só sou do tipo precoce, ansioso. Sempre fui. Nada melhor do que fazer isso com publico, pra fazer história, pra ficar na memoria. Cansei de esperar pra descobrir o sentido da vida. Sim, meu queridos, a vida só tem sentido porque ela acaba.

(ele pula do banquinho; black-out)

CENA 1

(ainda no escuro, Epitáfio canta o inicio da música “In the Jungle The Lion Sleeps Tonight”; quando as luzes se acendem, Epitáfio está com um capacete de operário e uma pilha de tijolos; ele constrói uma lápide)

EPITÁFIO
Ele trabalhou pouco. Morreu novo. Quantos anos ele tinha? Vinte e cinco, coitado. Dizem que era um depressivo. Artista, né? Ele não queria se envolver com a realidade. Não conseguia ficar nem dois meses em um emprego comum. Ninguém enche a barriga com poesia. Ele era escritor? Diz que gostava de escrever. E de atuar. Não é fácil. Família boa? Família boa. Tinha uma parte que até tinha dinheiro, diz. Mas eles não estavam nem aí, queriam que ele se virasse e com razão. A parte mais próxima da família fez o que pode, mas não existe almoço de graça, não é mesmo? Não existe almoço de graça. Horas e horas de madrugadas perdidas na frente do computador. E pra quê? Alguém lê? Agora é comida de minhoca. Ele não queria ser enterrado num caixão. Mas é proibido ser enterrado direto na terra, não é? A família fez o que pode. Ele tinha filhos? Não, era viado. Coitado. Tinha irmãos. Tadinhos. O mais novo desmaiou no velório. Coitado. Ele só pensava nele. Foi muito egoísmo da parte dele, ele não pensou na dor dos outros. Depressão é um bagulho sério, não dá pra saber o que passava na cabeça do coitado. Dizem que foi por causa das drogas. Ele fumava maconha, não fumava? Isso foi falta de deus. Quando ele era menino ele era tão certinho, ninguém podia imaginar um troço desses. Tão querido, tão inteligente. Faltou foco, faltou apoio. É por que ele era gay, não é? Diz que a família não aceitava isso direito. Não, ele estava de acordo com essa situação, não sofria com isso. Por que será então? Falta de amor. Diz que ele estava devendo horrores, uma grana alta. Diz que ele estava doente, que já estava morrendo. Foi falta de ocupar a cabeça. Acordava meio dia e ia dormir quatro, cinco da manhã. Você já leu alguma coisa que ele escrevia? Era só putaria e crise existencial. Era claro que ele iria querer chamar a atenção desse jeito e fazer aquilo em cena. Ele queria público, um egocêntrico.

(ele sobe em um púlpito)

EPITÁFIO
Morrer
Pra não ter mais que ouvir
Pra não ter mais que exceder
As expectativas panacas do diabo
Morrer
Pra poder enfim dormir
E não ter que enfrentar os condenados
Os fofoqueiros e as madames
E os outros viados
Partir
Para outra experiência e outro fim
E não ter mais que escolher o não ou o sim
E enfim poder não se importar mais

EPITÁFIO
Fraco. Bicha. Vitimista. Vagabundo. Interesseiro. Doente. Puto. Egoísta. Porco. Bobo. E agora, morto.

(em vídeo vemos imagens de trabalhos do ator; fotos e vídeos de espetáculos e/ou filmes)

EPITÁFIO
(com um papel em mãos, ele faz um discurso no velório) Bem, eu queria prestar as minhas homenagens a esse cara maravilhoso que ele era. Prestar as minhas condolências à família. Eu escrevi um texto aqui pra eu poder ler, mas eu acho que nada que eu diga vai ser suficiente pra expressar o que ele merece. (pausa) Bem, o que eu posso dizer? Eu tive uma fase boa ao lado dele, que não durou muito, como todo mundo aqui presente deve ter tido também, a gente sabe como ele não era muito de criar raiz, mas enfim. Eu me lembro das brisas que ele tinha. Das coisas que falava sobre o universo, sobre as suas teorias. Eu gostava da risada dele, era uma coisa marcante. (pausa) Enfim, quando a pessoa morre todo mundo quer lembrar das coisas boas, não é mesmo? Todo mundo era digno, todo mundo pensa na pena que é ter perdido a chance de mais uma proza. Eu acho que... cada um tem aquilo que merece nessa vida. Ele fez coisa pra caralho nesses vinte e cinco anos, fez mais do que achavam que ele ia fazer. Mas enquanto é vivo, enquanto existe a certeza de que amanhã ainda vai dar pra dar um abraço na pessoa, essas coisas são meio que ignoradas. Ontem ninguém nem queria saber como ele estava se sentindo. Hoje todo mundo quer expor sua dor e seu luto no Facebook. Eu poderia vir aqui dizer que ele iria querer que ninguém ficasse triste, que ninguém se lamentasse por essa perda, mas eu duvido muito disso. Pelo pouco que eu conhecia, a coisa que ele mais ia querer nesse momento é que ninguém se esqueça dele e que vocês sofram sim. Que vocês chorem, que vocês chorem pra caralho pelo menos por umas duas semanas seguidas, aí depois vocês se recuperam. (pausa) No fundo, eu creio que tudo isso tenha sido bem planejado, sabe? Não foi um momento de loucura da parte dele, foi um momento de pura lucidez. Ele quer ser lembrado pelo que fez e pelo que escreveu. A morte nos dá uma sensação de lenda. Essa foi a tentativa dele. Obrigado.

EPITÁFIO
(fúnebre) Glória, glória, aleluia
Glória, glória, aleluia
Glória, glória, aleluia
Louvemos ao senhor!

EPITÁFIO
(como um religioso no velório) Deus amou o pecador, mas repudia o pecado. As práticas terrenas são abominadas pelo nosso senhor, e todos nós pagaremos pelas nossas escolhas. Uma alma perdida nos ensina que somos nós quem ainda temos tempo de escolher o melhor caminho. Uma alma perdida não merece os nossos lamentos, uma alma perdida já não há mais salvação, principalmente quando vem do suicídio homossexual das práticas dos espíritas drogados. Mas somos nós, os vivos, quem aprendemos com essa lição. O coitado aqui presente, pensando somente no próprio rabo, fez o que fez e agora olhem o estado dessa avó. Olhem como chora essa família à morte desse rapaz. Era isso que o diabo queria, meus amados! É isso o que o diabo quer fazer com as famílias. Trazer angústia e discórdia, e por fim o suicídio. Segundo a palavra do senhor, não existe salvação para a alma, e muito menos para a moral, para aquele que se suicida. Tudo o que podemos fazer agora é pedir conforto a essa família, a mais essa família que teve a vida despedaçada pela obra do anjo caído. Fiquem longe das drogas e do teatro, meus jovens. A eternidade é a dor lacrada.

(as luzes piscam em balada; ouvimos um funk)

EPITÁFIO
Dor? Dor é o caralho! O inferno é quente, molecada!

EPITÁFIO
(funk) Glória, glória, aleluia
Glória, glória, aleluia
Glória, glória, aleluia
Louvemos ao senhor!

EPITÁFIO
Eu fiz tudo o que eu quis! Chupei pau, chupei buceta, dei o cu! Comi homem, comi mulher, comi camelo! Dei pra homem, dei pra mulher, dei pra camelo! Fiz teatro, fiz cinema, escrevi merdas ruins, escrevi merdas boas. Fiz amigos, inimigos, indiferentes! Criei teorias, espalhei ideologias, briguei por política e trepei pra caralho nesse mundão porra louca! Se é o diabo quem vai vir me abraçar no fim das contas, vou contente, com o peito erguido e orgulhoso. Não tenho vergonha nenhuma das coisas que fiz, e eu não mudaria um palito da minha existência enquanto vivo.

EPITÁFIO
Mas se a vida era tão boa assim, por que você sucumbiu? Por que você decidiu desistir? Por que você não aguentou?

(silêncio)

EPITÁFIO
Eu tenho uma teoria. O cérebro tem uma capacidade limitada de armazenamento. Igual um computador. Um ser humano comum, aquele do tipo normal que se casa e arruma um emprego comum, vive em média setenta, oitenta anos. Um ser humano artista, drogado, sexualmente ativo, vagabundo e depressivo, faz a mesma quantidade de dúvidas existenciais e memórias só que em muito menos tempo. O cérebro carne pede um back-up, nesses casos. Pede um desligamento precoce, porque não tem mais pra onde ir, não tem mais sonho que sonhar, e nem mais desafios pra se conquistar.

EPITÁFIO
Você conquistou tudo o que queria?

EPITÁFIO
Não. Eu tinha outros sonhos. Tinha mais coisa que eu gostaria de ter feito. É só uma teoria. O duro é saber que quando você chega lá, quando você conquista alguma coisa que você tinha sonhado, a vida continua igual. No dia seguinte você acorda, você come, você caga e depois você dorme. A felicidade completa não existe, o que existe são momentos felizes. E isso já não estava mais me satisfazendo. Eu tinha certeza que tudo o que eu quisesse conquistar eu ia conseguir, que qualquer coisa que eu sonhasse eu poderia ter; mas isso já não estava me fazendo bem, eu não estava mais vendo um propósito nisso. Eu queria voltar ao pó, somente. Voltar a ser poeira.

(em vídeo vemos imagens de constelações e estrelas)

EPITÁFIO
Eu queria perder a consciência. A busca nas drogas tinha essa razão. Perder por alguns segundos a lucidez, a visão humana da vida. Ver e julgar as coisas assim como o sol nos julga. Sem os preconceitos de sociedade moderna, sem a visão de homem cisgênero, sem instinto de animal. O tudo pelo nada, e o nada pelo tudo.

EPITÁFIO
Partir
Para outra experiência e outro fim
E não ter mais que escolher o não ou o sim
E enfim poder não se importar mais

(ele acende um cigarro, bebe um gole de whisky e retira um revolver de algum lugar)

EPITÁFIO
Vou terminar esse cigarro e depois vou dar um tiro na minha cabeça aqui em cena. A cena agora é essa. Tenham paciência, isso daqui é uma mistura de prazeres egocêntricos.

(ele fuma o cigarro inteiro em silêncio; calmamente, ele apaga a bituca e toma um último gole)

EPITÁFIO
Não é todo dia que a gente vê um suicídio ao vivo, então preparem-se as bundas e a adrenalina dos vossos corações. Não repitam isso em casa.

(ele enfia o cano da arma na boca e atira; black-out)


CENA 2

(quando as luzes se acendem, Epitáfio está com uma pá tapando um buraco com terra)

EPITÁFIO
Mister
Qual é o epitáfio que você quer deixar?
Mostre
Qual é a sua obra que vai continuar?

Mister
Qual é o epitáfio que você quer escrever?
Morte
Nessa vida fácil eles vão te esquecer

(no fim da terra, ele planta uma flor)

EPITÁFIO
Ele trabalhou pouco. Morreu novo. Quantos anos ele tinha? Vinte e cinco, coitado. Dizem que era um depressivo. Artista, né? Ele não queria se envolver com a realidade. Não conseguia ficar nem dois meses em um emprego comum. Ninguém enche a barriga com poesia. Ele era escritor? Diz que gostava de escrever. E de atuar. Diz que deu um tiro na própria boca em cena. Trágico, não? Tragicômico e clichê. O que ele espera com esse epitáfio de merda? Você leu essa porcaria? Dizem que ele só queria não ser enterrado no caixão lacrado, mas é proibido, não é? Sim, é proibido. Coitado. Daqui a pouco as pessoas esquecem e a vida continua. Logo ele que achava ter importância na existência da história humana. Todos acham isso, meu caro. Todos se acham importantes na existência. Mas já faz tempo que a ciência descobriu que não são as coisas que giram em torno de nós. Muito pelo contrário.

(ele surge com uma pilha de livros e discos)

EPITÁFIO
Os mortos eternizados. Longe de mim querer me comparar, mas isso é magia reencarnada para sempre:

(ele lê)

EPITÁFIO
“Tentou ser, não conseguiu; tentou ter, não possuiu; tentou continuar, não prosseguiu; e nessa vida de expectativas frustradas tentou até amar… Pois bem, não conseguiu, e aqui está.” Dom Casmurro.

EPITÁFIO
“Morta... serei árvore,
serei tronco, serei fronde
e minhas raízes
enlaçadas às pedras de meu berço
são as cordas que brotam de uma lira.

Enfeitei de folhas verdes
a pedra de meu túmulo
num simbolismo
de vida vegetal.

Não morre aquele
que deixou na terra
a melodia de seu cântico
na música de seus versos.” Cora Coralina

EPITÁFIO
"Estou pronto para encontrar com o meu Criador. Se meu Criador está preparado para o grande teste de me encontrar é outra questão”. Winston Churchill.

EPITÁFIO
"Não invejar a paz dos mortos”. Nostradamus.

EPITÁFIO
"Meu epitáfio será: Nunca foi um bom exemplo, mas era gente fina". Rita Lee.

(ele surge com várias placas/epitáfios e as lê tentando escolher a melhor)

EPITÁFIO
- “E aqui jaz
O que não foi
E poderia ter sido...”
- “Tropeçou tanto no caminho que acabou criando um novo jeito de andar.”
- “Me tirem daqui! Eu estava brincando!”
- “Nada espero, nada temo, sou livre.”
- “Só me defina depois que eu morrer. Os epitáfios ficam por sua conta. Enquanto eu respirar, eu sou eu, ok?”
- “Os vermes não pensarão por mim. Por isso, obrigado por sua derradeira atenção.”
- “Isso é tudo, pessoal."
- “É mais digno dos homens aprender a morrer do que matar.”
- “Não foi eu quem morreu, pois existo em tudo que restou de mim, e tu me percebes, mas, foi sim, tu que morreste para mim, pois não posso mais te perceber.”

(silêncio)

EPITÁFIO
“Não foi eu quem morreu, pois existo em tudo que restou de mim, e tu me percebes, mas, foi sim, tu que morreste para mim, pois não posso mais te perceber”. É esse.

(ele arruma a placa ao lado da flor e acende um cigarro orgulhoso; ele inicia uma crise de tosse doída; chega a cuspir sangue e sofre dificuldades em respirar; ele se contorce no chão com dor no peito)

EPITÁFIO
Jovem suicida
De gordura e transgênicos
Comida inimiga
E vício anti-higiênico

Jovem suicida
Quem se mata vai pro inferno
Com sangue e labaredas
O capeta mora perto
De você
Ele quer você
Ele ama você
O capeta mora perto
De você
Ele quer você
Ele ama você

(ele tosse algumas últimas vezes e morre sem ar; black-out)


CENA 3

(Epitáfio entra vestindo um lençol branco como um fantasma clássico)

EPITÁFIO
Vamos fazer uma sessão de mesa branca.

(ele se senta)

EPITÁFIO
Eu morri. Me matei. Suicídio. Fraco. Bicha. Vitimista. Vagabundo. Interesseiro. Doente. Puto. Egoísta. Porco. Bobo. E agora, morto. Ele trabalhou pouco. Morreu novo. Quantos anos ele tinha? Vinte e cinco, coitado. Dizem que era um depressivo. Artista, né? Calma. Relaxa. Não sintam pena. Não é fraqueza. É força. Eu me considero mais forte, mais corajoso, mais sensível. (gargalha louco) Que vocês chorem, que vocês chorem pra caralho pelo menos por umas duas semanas seguidas, aí depois vocês se recuperam. Eu fiz tudo o que eu quis! Chupei pau, chupei buceta, dei o cu! Comi homem, comi mulher, comi camelo! O inferno é quente, molecada! O inferno é quente pra caralho! Glória, glória, aleluia!

(ele joga várias folhas de papel para o alto)

EPITÁFIO
Eu deixei esse monte de merda aqui! Essa é minha herança para essa história. É só isso que eu soube fazer nessa vida. Eu não soube ser mais útil que isso, e peço desculpas então. Quando eu nasci ninguém me deu uma bula de como gastar essa vida direito. Foi só isso que eu soube fazer. Só esse monte de madrugadas na frente do computador. Desculpa. Foi mal, família. Perdão, amigos. Eu tentei.

(ele retira a roupa de fantasma e acende várias velas por todo o espaço em silêncio)

EPITÁFIO
Luto enquanto vivo
Luto para os mortos
Luto pros que ainda estão em gestação
Luto pela vida
Luto no Facebook
Luto pros que ainda não tem coração

Lutou depois morreu
Achou que era importante na sua luta em solidão
Escreveu e depois lutou
Achou que era luta
Mas não era luta não

EPITÁFIO
Fiquem longe das drogas e do teatro, meus jovens. A eternidade é a dor lacrada.


FIM




Nenhum comentário:

Postar um comentário