PHILO E SOPHIA

PHILO E SOPHIA

PERSONAGENS
Philo
Sophia

PRÓLOGO

(um jarro tampado em um foco; enquanto a plateia entra Philo anda de um lado para o outro tentando decifrar algum cálculo matemático em uma lousa grande; Sophia está pensativa olhando para o nada; quando a plateia se acomodar os dois se interessam pelos presentes espectadores; eles caminham pelo espaço observando os detalhes das roupas e os cortes de cabelos)

OS DOIS
Nós vimos que você queria se parecer com alguém
Ouvimos que alguém queria se parecer com outro alguém também
Queríamos que o bem faria se não tentasse ser ninguém
O julgo vem da pensaria que não se parecesse com meu bem

SOPHIA
Se é medo ou esperança
Eu não quero limitar

PHILO
Nós mesmos, desde criança
Nos fazemos duvidar

SOPHIA
Um mais um é dois

PHILO
Dois mais dois é dezesseis

SOPHIA
Só o tempo faz dizer que um cálculo é real

PHILO
A física me faz dor quando um cálculo é renal

OS DOIS
Mas nada é completamente certo
Pode ser que dois, pode ser que três
Pode ser que eu já nem sei
O que você está fazendo aqui, afinal?
A resposta é:
Quarenta e dois!

(black-out)



CENA 1

(Sophia está interessada pelo jarro tampado enquanto Philo calcula na lousa; ela tenta abrir o jarro sem sucesso)

SOPHIA
Você tem a chave disso daqui, Philo?

PHILO
Não tem fechadura.

SOPHIA
Faz tempo que eu tô querendo abrir essa porcaria. Eu não queria ter que quebrar. Você vai ficar bravo se eu quebrar só a boca? Eu quero saber o que tem aqui dentro.

PHILO
Você está me atrapalhando, Sophia. Deixe eu me concentrar aqui.

SOPHIA
Desculpe.

(silêncio; ela tenta abrir o jarro)

SOPHIA
Que droga. Alguém colou isso daqui com a vida. Deve ter alguma coisa de muito importante aqui dentro pra terem fechado desse jeito. (pausa) Olha, tamparam com cola. Cola das boas.

PHILO
Sophia, deixe eu pensar aqui.

SOPHIA
Desculpe. É que eu estou meio entediada.

PHILO
Vá fazer alguma coisa pra gente comer.

SOPHIA
Eu não. Vá você. Folgado.

PHILO
Eu tô ocupado. Tô tentando ocupar a minha cabeça aqui. Quem tá entediada é você.

SOPHIA
E quem tá com fome é você. Onde já se viu?

(silêncio)

SOPHIA
Eu vou quebrar essa merda.

PHILO
É a única cenografia de valor que a gente tem. (pausa) Faça o que você quiser.

(silêncio)

SOPHIA
Depois você me ajuda a tentar abrir? Tem um cheiro aqui dentro. Deve ter alguma coisa de muito importante aqui dentro. Acho que você ia gostar. Você me ajuda depois que você terminar?

PHILO
Depois a gente vê isso, Sophia.

SOPHIA
Promete?

PHILO
Depois a gente vê isso, Sophia! Você está me desconcentrando.

SOPHIA
Mas o que tem de tão importante nessa porcaria que você tá contando aí? Eu só vejo rabiscos e mais rabiscos. Olha, isso daqui não significa nada pra mim. Isso daqui não significa nada também. São só números e quadradinhos. Isso aqui não tem sentido nenhum. Isso é um peixe?

PHILO
Só por que você não entende as minhas anotações, Sophia, isso não quer dizer que elas não façam sentido. Pra mim, isso daqui tem total sentido. O que não tem sentido pra mim, é tentar abrir essa porcaria nesse momento. Isso que não tem sentido nenhum.

SOPHIA
Mas, Philo! Veja se você não sente esse cheiro.

PHILO
Eu não quero saber de cheiro nenhum, Sophia! Dá licença, por favor!

SOPHIA
Também não precisa ser grosso. Seu grosso. Seu grosseiro.

PHILO
Desculpe, Sophia. Me desculpe. Quebre o jarro, se você quiser. Mas me deixa quieto por alguns minutos, por favor.

SOPHIA
Tudo bem.

(silêncio)

SOPHIA
Eu não vou quebrar ele. A gente não vai conseguir arrumar outro a tempo pra próxima sessão.

(silêncio)

SOPHIA
Mas que é uma duvida que tá me matando, isso eu não posso negar. Depois você me ajuda a abrir? Depois que você terminar?

(silêncio; Philo continua em seus cálculos freneticamente; Sophia se senta entediada; eles ficam por um silêncio estranho por alguns segundos)

SOPHIA
Vou fazer as unhas. Tô muito entediada. Isso daqui tá um tédio sem tamanho. Ô, vida.

(ela sai e volta com uma maleta; ela se arruma pra começar a pintar as unhas; de repente, Sophia percebe que existem espectadores; ela não acredita no que está vendo e disfarça o susto; ela tenta cair na realidade e finge não acreditar que aquilo está sendo assistido por uma plateia)

SOPHIA
Philo.

(silêncio)

SOPHIA
Philo!

PHILO
O que é?

SOPHIA
Você caiu na real do que tá acontecendo aqui?

PHILO
O que?

SOPHIA
Philo. Preste atenção. Você fica preso nessas suas porcarias aí e nem percebeu o que está acontecendo aqui. Não se mexa. (sussurra) Tá cheio de gente olhando pra gente, nesse instante.

PHILO
O que é isso, Sophia?

SOPHIA
Chiu! Não se mexa. Tudo o que você fizer será julgado, está sendo julgado, eles estão olhando. Não se mexa.

PHILO
Tomara que ninguém entenda realmente de matemática.

SOPHIA
Eles estão nos olhando.

(silêncio; Sophia está um pouco paranoica)

SOPHIA
Philo.

PHILO
O que foi, Sophia?

SOPHIA
O que tá acontecendo aqui? Me desculpe. Eu fiquei um pouco confusa agora. Eu fico com medo ou não? Eu tô tremendo de nervosa.

PHILO
Pare de ser idiota, Sophia. Siga o roteiro.

SOPHIA
Eu não vejo mais sentido em fazer a unha. Já não faz mais sentido deixar a unha bonita nesse momento. Não com isso que eu tô vendo. Você tá vendo isso também?

PHILO
O que, Sophia? Vendo o que?

SOPHIA
(misteriosa) Essas pessoas, Philo. Essas pessoas. Faz parte? Isso faz parte?

PHILO
Pare de zoeira. Faça as unhas.

SOPHIA
(sussurra) O que eles querem? O que será que eles querem?

(silêncio; Sophia não se conforma que isso seja uma apresentação teatral; Philo continua em seus cálculos)

SOPHIA
A gente tem que fazer alguma coisa, é isso? Acho que eles estão esperando que a gente faça alguma coisa, Philo. Eles esperam que a gente fale alguma coisa. Talvez eles esperem que eu abra e descubra logo o que tem dentro do jarro. Ou esperam que você termine logo a sua conta. Ou esperam que isso termine logo. Ou eles não esperam nada. Ou... ou nada. Ou eu devo ficar quietinha e esperar também. (pausa) Philo! Dá pra você me ajudar aqui? Eu estou em uma crise existencial ferrenha!

PHILO
Terminei!

SOPHIA
Finalmente! E aí?

PHILO
E aí que eu vou precisar de mais tempo. E mais lousa.

SOPHIA
Talvez você devesse tentar um computador.

PHILO
Um computador daria uma resposta muito técnica. Minhas dúvidas são mais extremas, entende?

SOPHIA
Não. Ninguém entendeu. Alguém entendeu? Não, ninguém entendeu.

PHILO
Deixe eu me sentar um pouco. Preciso de um cigarro.

SOPHIA
E desde quando você fuma?

PHILO
Desde sempre, Sophia. Faz tempo que eu fumo. Você sabe disso.

SOPHIA
Sei.

(Philo acende o cigarro)

SOPHIA
Acho que eu sou uma pessoa muito entediada, Philo. Eu não consigo me conformar com essas situações da vida, entende? Quando a gente saiu lá de casa hoje eu esperava que isso daqui fosse ser outra coisa. Muita gente deve tá pensando como eu agora. Você acha que eu sou muito paranoica, Philo? Você acha que eu sou muito paranoica?

PHILO
Acho que você se preocupa demais.

SOPHIA
Mas tudo isso aqui não é motivo pra uma boa preocupação, Philo? Como você consegue ficar tão calmo e tão seguro de si? As pessoas pagam pra entrar, elas criam uma expectativa no que a gente vai fazer ou deixar de fazer, no que a gente vai falar ou deixar de falar, e esse é nosso produto bruto, que a gente tá vendendo pra essas pessoas. Você não fica preocupado?

PHILO
Com os gostos?

SOPHIA
Com os julgamentos. Eu sou uma pessoa super pra frente e super liberta da opinião alheia, mas artisticamente não consigo me livrar dessa pressão.

PHILO
Alguém já foi embora?

SOPHIA
Oi?

PHILO
Alguém levantou a bunda e foi embora?

SOPHIA
Acho que não. Ainda não, por enquanto.

PHILO
Então, relaxe. Fume um cigarrinho e relaxe.

SOPHIA
Você sabe que eu não fumo. Eu sinto que a gente não pode deixar toda essa gente pagando a nossa pizza por motivo nenhum.

PHILO
Mas os motivos estão nas entrelinhas.

SOPHIA
Ora, cale essa boca!

PHILO
Não me mande calar a boca.

SOPHIA
Cale a boca, cale a boca, cale a boca!

PHILO
Nossa, que maturidade!

SOPHIA
Eu sinto que a gente tá brincando de novela. Isso não me agrada. Isso não me agrada nenhum pouco. Isso me entedia. Isso me entedia e muito. Eu sinto que o ar do tédio circula sobre esse teatro, sobre as nossas cabeças. E não tem mais nada o que eu possa fazer com isso. E agora?

PHILO
Sophia, quando as pessoas viram o nome do espetáculo, não sobrou dúvidas sobre o que iria acontecer aqui. Isso tudo é uma grande brincadeira. Relaxe e goze.

SOPHIA
Mas me incomoda. Se não te incomoda é porque você é um burro acomodado. Eu sinto que a gente tem que fazer alguma coisa. Você não sente que a gente tem que fazer alguma coisa?

PHILO
Pare de fazer cena, Sophia, e deixe a coisa acontecer naturalmente.

SOPHIA
Não existe isso. Como é que você pode me pedir pra parar de fazer cena, Philo? Isso é cena. Isso é a cena. Tudo é cena, caramba. Não é? Como é que você pode me pedir pra parar de fazer cena, Philo? Você quer que eu saia daqui? Eu vou ficar bastante chateada se você me pedir pra sair, Philo. Onde já se viu isso?

PHILO
Vamos seguir o que está no roteiro e esse é o momento que você se acalma e cala essa boquinha linda. Combinado? Deixe eu fumar meu cigarro em paz. Eles já pagaram e pronto. Fim.

(silêncio; Sophia se senta convencida)

SOPHIA
Você sabe mesmo ser um grande de um estúpido.

(os dois permanecem em silêncio; Sophia incomodada por não ter o que fazer e Philo fumando lindamente o seu cigarro)

SOPHIA
Tá chato. Se isso daqui não melhorar eu mesma vou embora. Você vai ver.

PHILO
Fique a vontade. Você saindo eu arranco a minha roupa e ganho essa plateia com a minha nudez. Eu sei que você não gosta quando eu mostro o pinto no teatro.

SOPHIA
Não é isso, imbecil. Eu só não acho que caiba esse tipo de coisa em todos os assuntos. Gosto do seu estilo, mas prefiro não fazer parte desse tipo de coisa.

PHILO
Então vamos relaxar e ver no que isso vai dar. Vamos relaxar. Respira, vai.

SOPHIA
E eu prometo que eu não vou falar nenhum palavrão até o fim desse espetáculo. Eu sei que você gosta de baixaria, de putaria. Mas da minha boca nada disso vai sair. Acho que você apela demais nas suas coisas. Você é um menino tão inteligente, não precisa disso.

PHILO
Fique tranquila. Não terás nenhum palavrão.

SOPHIA
E se tiver eu mudo. Pronto!

PHILO
Combinadíssimo.

(silêncio)

SOPHIA
Te desafio, para a próxima vez, deixar as pessoalidades de lado. Relaxar, fala sério.

PHILO
Te desafio, para a próxima vez, arrancar a roupa em cena. Ficar peladona!

SOPHIA
Se eu visse motivos, eu não teria problemas. Não gosto de nada que seja gratuito, entende?

PHILO
Sei.

SOPHIA
É sério. Eu sou atriz. Tenho meus pudores, mas por escolha pessoal.

PHILO
Pudor não é escolha pessoal.

SOPHIA
Mas é claro que é! Pudor é escolha pessoal sim!

PHILO
Mas é claro que não é! Pudor não é escolha pessoal não.

SOPHIA
Se eu tô falando que é, é porque é! Meu pudor é por escolha pessoal e fim desse assunto! Artisticamente falando, eu escolho o que eu quero fazer em cena.

PHILO
Aí você se limita.

SOPHIA
Não é limite, é escolha do que eu quero fazer e do que eu não vejo necessidade em fazer. Igual isso daqui. A gente teve uma porrada de escolhas de coisas pra se discutir, mas a gente decidiu discutir isso que a gente tá discutindo. Entende? E é isso o que mais me preocupa.

PHILO
O que?

SOPHIA
Essa falta de assunto.

PHILO
Philo, Sophia.

SOPHIA
Exatamente. Abrange tanta coisa que a gente nem teve a capacidade de começar por um assunto direito. A gente generalizou demais. Nada muito generalizado tem um valor concreto.

PHILO
Bem, vejamos, começamos com uma analogia à caixa de Pandora. Foi uma boa referência, vai. E eles já pagaram, foda-se.

SOPHIA
Oi? O que tem o negócio do jarro?

PHILO
Seu jarro. Foi uma breve referência à caixa de Pandora. Lá no fim do espetáculo, quando você conseguir abrir – e você vai abrir porque a gente já sabe o que vai acontecer no fim do espetáculo – todos finalmente entenderemos a grande questão da vida.

SOPHIA
Não estrague a surpresa! Ah, já estragou a surpresa, Philo! Essas coisas não se contam!

PHILO
Já foi. E esse meu cálculo lá no fim – porque ambos sabemos que eu teremos uma conclusão –  vai nos dar o resultado que todos nós já sabemos de cor.

SOPHIA
Sei. E o resultado será resultado para qual questão que ninguém entendeu ainda?

PHILO
Para a pergunta fundamental.

SOPHIA
Para qual pergunta fundamental?

PHILO
A grande questão da vida, o sentido da nossa existência. E o resultado vai ser 42. Isso eu posso dizer com clareza porque a gente já tá com o texto todo decorado e a gente já sabe como vai ser o fim.

SOPHIA
42? Como assim 42? Por que 42? Não vá começar com suas nerdices, Philo.

PHILO
O número 42 é a resposta para a pergunta fundamental sobre a vida, o universo e tudo mais, de acordo com a famosa série de livros O Guia do Mochileiro das Galáxias, que também virou filme em 2005, do autor Douglas Adams. Se você colocar na calculadora do Google em Inglês "the answer to life, the universe, and everything", você receberá como resposta 42. É sério. Se você colocar na calculadora do Google em português também "a resposta para a vida o universo e tudo mais" você novamente receberá o número 42. Um dos números misteriosos da famosa série Lost também é 42. Em Arquivo-X, o número do apartamento de Mulder, personagem interpretado pelo ator David Duchovny, é 42. E o número de leis do críquete, desenvolvidas pelo Marylebone Cricket Club em discussões com os países praticantes do jogo, por incrível que pareça, adivinha? Também 42. Steve Jobs faleceu 42 dias depois de sua saída da Apple. 42 é o número total de volumes do mangá Dragon Ball, famoso entre os nerds, você já deve ter ouvido falar. Em Alice no País das Maravilhas, a regra 42 estabelece que "todas as pessoas maiores que uma milha - 1600m - devem deixar a corte". Na série House, 42 é o número favorito do personagem principal, Gregory House, interpretado pelo ator Hugh Laurie . Elvis Presley faleceu aos 42 anos. Ayrton Senna faleceu quando ia obter a quadragésima segunda vitória, e o número de seu kart, nos primórdios de sua carreira automobilística, também era 42. Segundo o artigo 42 da constituição brasileira, um vice-presidente que ocupe o cargo por renuncia do presidente eleito antes de 2 anos no governo deverá convocar uma nova eleição. O segundo presidente brasileiro, Floriano Peixoto, não cumpriu essa regra, o que serviu como justificativa para a Revolta da Armada. O jogador português Eusébio nasceu em 1942. O 42º dia de 2009 foi uma QUARTA (4ª) feira do 2º mês do ano (2º) = 42. É o número de edições regulares da série de HQS Holy Avenger. É o nome de uma música da banda britânica Coldplay, presente no album Viva la Vida or Death and All His Friends. O nome de Buda na vida era Sidarta, se transformarmos as letras em números (a=1, b=2, c=3, etc), a soma de todos será 42. O molibdênio é o único metal da segunda série de transição que é essencial para a vida, seu número atómico é 42. A primeira calculadora foi inventada em 1642. Segundo o novo testamento, 42 é o numero de gerações de Abraão até Jesus Cristo.

(silêncio)

SOPHIA
Ou seja...?

PHILO
(faz um barulho de nada)

(silêncio)

SOPHIA
Caramba.

PHILO
Pois é. Caramba mesmo.

SOPHIA
Isso tudo é uma grande bosta.

PHILO
Uma grande e desnecessária bosta.

SOPHIA
E a gente faz isso todo dia, né?

PHILO
Todo santo dia.

(eles ficam em silêncio enquanto a luz cai em resistência, lentamente)

(black-out)


CENA 2

(quando as luzes se acendem, Philo está jogando um vídeo game e Sophia lendo um livro)

OS DOIS
(cantam) “Por quantos caminhos o homem andou?
Antes de se autonominar?
Quantos ramalhetes a pomba buscou?
Antes da arca atracar?
E quantas pessoas vão ter que explodir
Até que paremos de odiar?

A resposta está, no vento pra lá e pra cá
A resposta está no vento pra lá e pra cá

Por quantos milênios uma montanha vai existir?
Antes que o mar a quebre em dois
E por quantos anos alguém pode usufruir?
Da vida sendo livre só depois
E por quantas vezes podemos ainda mentir?
E fingir que a verdade nunca foi

A resposta está, no vento pra lá e pra cá
A resposta está no vento pra lá e pra cá
Em quantos momentos teremos que ver
Pra olhar o céu direito sem duvidar?
E quantas pessoas terão que sofrer
Antes que compadeçam em ajudar?
E quantas mais pessoas terão que morrer
Pra gente a morte enfim contabilizar?

A resposta está, no vento pra lá e pra cá
A resposta está no vento pra lá e pra cá”

(Versão livre da música “Blowing in the Wind” de Bob Dylan)

SOPHIA
Importante pra mim nesse momento é descobrir como alimentar o meu porquinho da índia, meu novo bichinho de estimação que eu acabei de adquirir. Esse é um tipo de filosofia prática, do cotidiano. Coisas que pensamos e buscamos respostas para o momento agora, sobre coisas concretas e palpáveis.

PHILO
Importante pra mim nesse momento é descobrir como um governo deveria fazer os cálculos para segurar a inflação e a economia. Esse é um tipo de filosofia técnica, que necessita de especialistas e matemática, e não depende da minha boa vontade utópica de jovem sonhador.

SOPHIA
Importante pra mim também é descobrir que horas são nesse momento. Isso daqui tem que terminar antes das dez, se não as pessoas começam a reclamar. Porque a gente inventou um calendário e uma ordem cronológica para as coisas, e todo mundo tem sua agenda das coisas que tem pra fazer.

PHILO
E mais do que saber as horas, eu me pergunto o que diabos eu estarei fazendo nesse mesmo horário e nessa mesma data do ano que vem? Isso é um tipo de filosofia que abrange um pouco da imaginação e do sonho humano, que busca uma resposta intangível e demais generalizada na viagem do nosso cérebro.

SOPHIA
Por que conseguimos lembrar do passado, mas não conseguimos termos a mesma sensação de lembrança do futuro, já que o tempo e o espaço estão em choque o tempo todo?

PHILO
Porque o futuro ainda não aconteceu.

SOPHIA
Na verdade, em teoria, está tudo acontecendo ao mesmo tempo.

PHILO
É como uma estrada escura, e a gente tá dentro desse carro enxergando só até onde o farol alcança.

SOPHIA
Importante pra mim agora é pensar no por que que existem poucos com tanto dinheiro, e tantos com pouca comida.

PHILO
Importante também é pensar no pra que diabos eu acordo amanhã cedo pra sair pra trabalhar sendo que eu odeio fazer o que eu faço?

SOPHIA
Ninguém pode se alimentar de sonhos. Somente alguns conseguem se alimentar dos sonhos dos outros. Os grandes se alimentam em ter o poder, enquanto nós, os fudidos, trabalhamos pelo bem deles.

PHILO
Na maior parte do tempo enchemos nossas cabeças com filosofias do cotidiano. Como querer saber as horas, como alimentar seu bichinho novo, quanto vai custar aquele vestido, com quantos paus se faz uma canoa.

SOPHIA
E falta espaço pras perguntas mais difíceis e abrangentes. Por que estamos aqui? Estamos realmente sozinhos? Devo acreditar piamente no deus que me disseram ser o verdadeiro? Devo duvidar da existência como algo biologicamente calculável?

PHILO
É muito difícil e dá muita dor de cabeça pensar. 42? Puxa vida!

SOPHIA
Pensar é cansativo. Tive noites que eu pude jurar ter ouvido o barulho do meu cérebro martelando na minha cabeça.

PHILO
Pude jurar também sentir os pelos das minhas pernas se mexendo. Eu achei que estivesse ficando paranoico porque sempre achava que tinha formigas na minha cama.

SOPHIA
Esses dias eu tive a impressão que eu ia ser abduzida. Sério. Não foi sonho. Eu tive a séria impressão de que alguém me observava dentro do meu quarto. Alguém grande. E eu tinha aceitado essa condição. Eu tinha aceitado ser levada.

PHILO
Por muitos momentos eu pedi pra deus me ajudar a parar de pensar. Sabe quando você cansa de tantos pensamentos macabros que dava uma impressão que o fim daquilo só podia ser uma explosão neural?

SOPHIA
E antes? E antes de antes? E antes de antes de antes?

PHILO
E depois? E depois do depois? E depois do depois do depois?

OS DOIS
(seguram as cabeças) Caramba! Essa existência é tão difícil!

PHILO
Pensar dói.
SOPHIA
Pensar dói demais.

PHILO
E aí, por causa disso, a gente esquece e volta a dormir. Quem quer perder as estribeiras nessa vida?

SOPHIA
Deixe pra depois. Todo mundo vai morrer mesmo. Tem coisa que não dá pra ficar pensando se não você fica louco.

(em vídeo vemos um céu estrelado; os dois abandonam o que faziam e olham para cima maravilhados)

PHILO
Nossa.

SOPHIA
Nossa.

PHILO
É incrível, não é?

SOPHIA
Se é.

PHILO
Já pensou?

SOPHIA
Já pensei.

PHILO
Eu arrepio com essa merda.

SOPHIA
Eu também.

(silêncio)

OS DOIS
E serve pra quê? (pausa) Pra olhar. (pausa) Mas pra olhar pra fazer o quê? (pausa) Pra gente se contestar. (pausa) Mas pra gente se contestar em quê? (pausa) Pra gente se contestar do pra que serve.

(silêncio)

SOPHIA
O mais lindo disso tudo, e mais estranho também, foi esse bagulho de o planeta Terra ter explodido em vidas que se contestam a própria existência. O jacaré, a baleia, a formiguinha, meu porquinho da índia, eles apenas comem e se procriam.

PHILO
E nós contestamos essa merda toda. Nós somos a Terra perguntando sobre nós mesmos. O próprio universo se perguntando sobre a própria existência. Não é louco isso?

SOPHIA
É louco demais. A gente tá parecendo dois idiotas aqui.

PHILO
Eu fico assim quando eu olho pra cima.

SOPHIA
Atordoado, né?

PHILO
Me sentindo parte, e ao mesmo tempo solitário.

(silêncio)

SOPHIA
Nós não estamos sozinhos. Só idiota pensa isso.

PHILO
Mesmo que tenha alguém lá fora, o que é óbvio, a solidão ainda é a coisa que mais me atinge.

SOPHIA
Eu estou aqui com você, Philo.

PHILO
Estamos sozinhos juntos. Por isso muitos buscam um conforto em um pai salvador. Porque não vai existir um conforto além da morte.

(silêncio)

PHILO
Você tem medo de morrer, Sophia?

SOPHIA
Eu tinha. Quando eu acreditava em deus eu tinha.

PHILO
Agora não mais?

SOPHIA
Eu tenho medo de sentir dor. Mas acho que morrer deve ser uma viagem muito louca.

PHILO
(ri) Eu também penso assim. Acho que a nossa consciência humana se perde, nossa lembrança de quem a gente é e tudo o mais. Mas alguma brisa deve ter, alguma viagem quântica nessa volta ao pó.

SOPHIA
Acredito fielmente nisso. Nosso cérebro de humano consciente se desliga, mas o carbono e a carne de que somos feito volta pra terra, e é aí que deve estar o barato.

PHILO
É aí que está o barato.

SOPHIA
Deve ser um barato do caralh... do caramba.

PHILO
(ri) Quase.

SOPHIA
Quase.

(silêncio; eles observam as estrelas por mais algum tempo)

PHILO
Vamo lá cozinhar alguma coisa pra gente comer. Ninguém enche a barriga de filosofia.

SOPHIA
Você cozinha.

PHILO
Você lava a louça.

SOPHIA
Agora me deu uma fominha desgraçada.

PHILO
Eu também. Tem guaraná?

SOPHIA
Tem. Vou ter que fazer a unha antes do espetáculo acabar, hein.

PHILO
Relaxe, menina.

(eles saem de cena; as estrelas se tornam átomos, e depois bactérias e depois seres multicelulares; por fim aves e mamíferos; vemos o planeta Terra respirando e explodindo em vida)

(black-out)


CENA 3

(ouvimos a discussão começar antes das luzes se acenderem)

SOPHIA
Essa merda! É só essa merda! Todo dia é essa mesma merda, Philo! Eu tô de saco cheio.

PHILO
Ah, meu, vá ver se eu tô na esquina, Sophia. Eu que tô de saco cheio das suas paranoias.

SOPHIA
Tá de saco cheio é só você pegar as suas coisas e se mandar, meu querido. Ninguém tá obrigando você ficar aqui.

PHILO
Você não imagina como é difícil conviver com você, cara. Uma hora você tá de boa, outra hora você fica me cobrando tudo.

SOPHIA
Pega as suas coisas e vaza.

PHILO
Você pensa que isso daqui é que nem novela. Muito drama, Sophia, muito drama.

SOPHIA
Pega as suas coisas e vaza, Philo. Ninguém tá te segurando.

PHILO
Eu tô no mesmo direito de estar aqui que você, minha querida. No mesmo direito.

SOPHIA
Só que você tem que entender que pra gente conviver você também tem que abrir mão de algumas coisas.

PHILO
E você também.

SOPHIA
Eu abro mão de um monte de coisas. Eu já abri mão de um monte de coisas.

PHILO
Do que você já abriu mão, Sophia? Do que? Eu que abro mão de tudo nessa merda! Você nunca dá o braço a torcer.

SOPHIA
Mas da sua imutável verdade você não abre mão, né? Quando você tá certo, ninguém pode falar nada.

PHILO
O mesmo eu digo pra você. Quando você tá certa eu não posso nem expor a minha opinião.

SOPHIA
Quando eu sei que eu tô certa, eu sei.

PHILO
Eu também. Quando eu sei que eu tô certo, eu também sei.

SOPHIA
Pois e agora?

PHILO
E agora que fodeu.

SOPHIA
E agora que fodeu mesmo. Eu tô muito cansada das nossas cenas cotidianas.

PHILO
E eu também. Eu também tô muito cansado dessas ceninhas que a gente tem que fazer. Parece que nunca dá pra conviver com ninguém de boa.

SOPHIA
E você quer que eu faça o que? Que eu aceite tudo o que você fala e abaixe a cabeça? Eu também sou um ser humano me achando no centro do universo.

PHILO
E eu também. E agora?

SOPHIA
Agora que fodeu.

PHILO
Realmente. Agora que fodeu.

(silêncio)

SOPHIA
Eu não vou abrir mão da minha opinião.

PHILO
E nem eu.

SOPHIA
Então é guerra?

PHILO
Se você está dizendo...

SOPHIA
Será que não dá pra gente dividir esse planeta em paz, meu?

PHILO
Não quando só você acha que tá certa.

SOPHIA
Nem quando só você acha que tá certo.

PHILO
E agora?

SOPHIA
E agora que eu não sei!

PHILO
Pois eu também não sei.

(silêncio)

SOPHIA
Talvez seja um bom momento pra gente terminar, pra cada um ir pra sua casa.

PHILO
A gente mora juntos, esqueceu? É o mesmo planeta. Não tem pra onde a gente fugir.

SOPHIA
Mas eu tô cansada de você!

PHILO
Eu também tô cansado de você.

SOPHIA
E agora?

PHILO
E agora?

(silêncio; longo silêncio; os dois, de repente, reparam que estão sendo assistidos; eles se envergonham da discussão e tentam disfarçar)

SOPHIA
Vá fazer seus cálculos que eu vou fazer a minha unha. Tô cansada de ter que fingir que isso daqui é pra ser um bagulho sério. É só mais uma moldura, galera. Uma moldura do cotidiano, que nem uma novela! Não tem complicação e não tem desenlace, como a grande maioria das coisas da vida: ordinário.

PHILO
A resposta é 42. E não faz sentido nenhum.

SOPHIA
Nada faz. Acostume-se.

(ela se senta pra fazer a unha)

SOPHIA
Agora vocês vão assistir a incrível cena de uma mulher fazendo a sua unha, no estilo mais chulo e na estética realista mais tosca possível. Já pagaram mesmo, e que se foda.

PHILO
Desculpem, estamos sendo humanos. Todos temos as nossas crises, até artistas cagam.

SOPHIA
Que inutilidade de merda. Antes que tivéssemos ensaiado alguma coreografia. Todo mundo gosta de coreografia.

PHILO
Ela deve tá de TPM.

SOPHIA
Cale essa boca, Philo! Não fale do que você não sabe!

PHILO
Pare de gritar comigo, caramba!

SOPHIA
Cale essa boca, cale essa boca, cale essa boca! Babaca.

PHILO
Nossa, mas como você é madura.

SOPHIA
Não encha o meu saco. Vá ocupar sua cabeça, vá.

PHILO
Cadê o jarro? Vou tentar abrir aquela merda agora.

SOPHIA
Não vai abrir porcaria nenhuma.  Vá calcular a vida, vá.

PHILO
Pegue o jarro que eu vou abrir.

SOPHIA
Não tem mais jarro! Eu quebrei! Não tem mais jarro nenhum! Não tem referência de caixa de Pandora nenhuma mais! Você entendeu? Já temos duvidas e problemas existenciais demais! Eu tô cansada, Philo. Meu cérebro parece que vai explodir. Vamos ser normais pelo menos um pouco nessa vida. Chega de Philo e chega e de Sophia por hoje.

PHILO
O meu cérebro também parece que vai explodir. Talvez seja o único caminho, no fim.

SOPHIA
Se você quer se matar, fique a vontade. Eu quero parar de pensar um pouco. Pelo menos um pouquinho.

PHILO
Eu entendo.

(silêncio; Sophia continua pintando as suas unhas em silêncio; Philo observa o horizonte desanimado; de repente, Philo é acometido por uma dor terrível na barriga)

PHILO
Ai, ai!

SOPHIA
O que foi agora?

PHILO
Acho que é meu cálculo. Minha pedra se mexeu.

SOPHIA
Vá fazer um chá.

(Philo cai no chão de tanta dor)

SOPHIA
Philo!

PHILO
Ai! Ai, caralho!

SOPHIA
Pelo amor de deus, Philo!

PHILO
Isso é muito realista. Tá doendo pra caralho.

SOPHIA
Calma. Respira. A dor é uma sensação. Ela não é real. Respira. É uma questão de percepção.

PHILO
Ai, ai!

SOPHIA
Me ajuda, Philo! Me ajuda! Use o cérebro, Philo! Use o cérebro!

PHILO
Ai! Acho que eu quero morrer. Que dor!

SOPHIA
Não! Cale essa boca! Eu vou buscar ajuda.

PHILO
Não, não me deixe aqui sozinho!

SOPHIA
Eu preciso chamar alguém!

PHILO
Espere! Ai! Fique aqui.

SOPHIA
Respira, Philo. Respira. Não vá desmaiar! Pelo amor de deus, não vá desmaiar!

PHILO
Uma merda de uma poeirinha faz esse estrago dentro da gente. Caralho, que dor infernal.

SOPHIA
Respira. Fique calmo.

(Philo vai se acalmando devagar; Sophia está ajoelhada do seu lado, apreensiva)

SOPHIA
Tá passando?

PHILO
Tá. Um pouco. Ai. Como pode um bagulho desse tamanho fazer tudo isso dentro da gente?

SOPHIA
A nossa sensação de espaço é totalmente distorcida.

PHILO
A gente não sabe de nada dessa vida. De uma hora pra outra, as coisas explodem.

SOPHIA
Tá passando? Tá melhorando?

PHILO
Tá.

(silêncio; Philo pratica a respiração)

SOPHIA
Que susto, hein? Você me assustou.

PHILO
Eu ainda tô assustado. A gente é cheio de fazer cena dramática, né?

SOPHIA
Vou buscar um copo de água.

(ela sai; Philo se levanta completamente saudável e sem dor, malicioso)

PHILO
Pra conviver, o bicho humano precisa de um pouco de teatrão. Desde os primórdios, desde sempre e para sempre.

(Sophia volta com um copo; Philo volta sentir um pouco de dor)

SOPHIA
Tá melhorando?

PHILO
Tá sim.

SOPHIA
Ainda bem,

PHILO
Já imaginou se eu morro aqui?

SOPHIA
Pare de besteira.

PHILO
O que seria de você sem mim, hein, Sophia?

SOPHIA
E o que seria de você sem mim também, né, Philo?

PHILO
É. Companhia de filosofia. É o que temos pra fazer por hora.

SOPHIA
É o que dá pra se fazer por hora.

(eles encaram mecanicamente a plateia, largando o realismo brutamente)

OS DOIS
Um mais um é dois
Dois mais dois é dezesseis
Só o tempo faz dizer que um cálculo é real
A física me faz dor quando um cálculo é renal
Mas nada é completamente certo
Pode ser que dois, pode ser que três
Pode ser que eu já nem sei
O que você está fazendo aqui, afinal?
A resposta para a pergunta fundamental é:

(silêncio; eles pensam na resposta)

(black-out)

FIM





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