LEVA PRA CASA


PERSONAGENS
Laércio, policial de uns cinquenta anos
Guilherme, jovem branco
Anderson, policial jovem branco
Jonatas, jovem negro

Uma casa simples, com janelas tampadas com madeira. Alguns livros em uma prateleira e uma televisão desligada. Na cozinha, um fogãozinho de duas bocas e uma mesa.

CENA 1

(Guilherme está algemado em um canto com um capuz na cabeça; Laércio anda de um lado pra outro cozinhando alguma coisa; Anderson está fumando como ouvinte)

GUILHERME
Acho que já dá pra tirar o capuz.

LAÉRCIO
Oi?

GUILHERME
Já dá pra tirar o capuz. Tá dando falta de ar aqui.

LAÉRCIO
Foi mal. Peraí.

(Laércio tira o capuz)

LAÉRCIO
Desculpa.

(silêncio; Laércio continua preparando a comida)

LAÉRCIO
Você gosta de strogonoff?

GUILHERME
Até que gosto.

LAÉRCIO
É super fácil de fazer. Eu sempre faço. É só colocar creme de leite.

(silêncio)

GUILHERME
Por um momento eu achei que o senhor estivesse me levando pra uma vala.

LAÉRCIO
É mesmo?

GUILHERME
É.

(silêncio)

GUILHERME
O que o senhor tá fazendo?

LAÉRCIO
Strogonoff.

GUILHERME
Sim, mas...

LAÉRCIO
Você gosta de champignon no strogonoff?

GUILHERME
Gosto...

LAÉRCIO
Eu comprei batata-palha também. Você gosta?

GUILHERME
Gosto sim, senhor.

LAÉRCIO
Ainda bem.

(silêncio)

GUILHERME
O que vai ser disso?

LAÉRCIO
(impaciente) A gente vai jantar e a gente vai ver. Tudo bem?

GUILHERME
Tudo bem.

LAÉRCIO
A molecada de hoje tá muito estranha. Eu fico um pouco impaciente com esse mundo. Você não fica não?

GUILHERME
Como assim?

LAÉRCIO
Impaciente com as coisas que a gente não consegue mudar com as próprias mãos, você entende? É ou não é, Anderson? Hein, Anderson?

(Anderson confirma com a cabeça)

LAÉRCIO
Viu? O Anderson é um rapaz esperto. Ele consegue entender as coisas. É ou não é, Anderson?

(silêncio)

GUILHERME
Eu juro que é pra uso próprio, senhor.

LAÉRCIO
Tá bom.

GUILHERME
É sim. Eu juro.

LAÉRCIO
Não importa.

(silêncio)

GUILHERME
O que o senhor tá pensando em fazer?

LAÉRCIO
Strogonoff. Janta. Comida boa. Você bebe vinho seco?

GUILHERME
Bebo.

LAÉRCIO
Ainda bem.

GUILHERME
Prefiro o doce, mas tudo bem...

LAÉRCIO
O Anderson também gostava do doce, né, Anderson? Agora ele gosta do seco.

GUILHERME
Por que você me trouxeram pra cá? Vocês vão me matar?

LAÉRCIO
Você já tava morto. Você tava na lista negra. Né, Anderson? Considere-se com sorte.

GUILHERME
Isso não tá certo não, cara. Eu quero que vocês me levem pra uma delegacia. Eu conheço os meus direitos.

(Anderson ri)

LAÉRCIO
Igualzinho, né, Anderson? Vocês são todos parecidos. É um barato.

(silêncio)

LAÉRCIO
Tá quase pronto já. Separa os pratos pra gente, Anderson.

(Anderson obedece)

LAÉRCIO
Prefere garfo?

GUILHERME
Sim.

LAÉRCIO
O Anderson prefere garfo também. Eu gosto de comer de colher. Gosto é gosto.

(silêncio; eles preparam a mesa)

LAÉRCIO
Olha, eu vou dar sua primeira chance de confiança. Eu vou tirar a algema. Você pode tentar sair da casa ou tentar fazer alguma coisa. Mas antes disso eu dou um tiro em você. Beleza?

GUILHERME
Beleza.

LAÉRCIO
Se eu não der o tiro, o Anderson dá. E vice e versa. Combinado? Não vamos ter nenhuma gracinha?

GUILHERME
Beleza.

LAÉRCIO
Beleza?

GUILHERME
Beleza.

LAÉRCIO
Pode tirar a algema dele, Anderson.

(Anderson obedece)

LAÉRCIO
Ótimo. Vocês podem se servir.

(todos se servem em silêncio; eles se sentam na mesa)

LAÉRCIO
(canta em oração) Um pouco mais de respeito
Um pouco mais de compaixão
Um pouco de vida e de comunhão
Eu quero estar com você
Com todo o meu ser

LAÉRCIO e ANDERSON
Te respeito, meu irmão
Te respeito, meu irmão
Te respeito, meu irmão
Te respeito, meu irmão

LAÉRCIO
Te respeito porque estamos no mesmo mar
Estamos unidos no mesmo lugar
Te respeito
Iguais somos feitos
No meio e no leito
Te respeito...

ANDERSON
Amém.

LAÉRCIO
Bom, podem comer agora.

(eles comem por um tempo em silêncio)

LAÉRCIO
Você gosta de música?

GUILHERME
Eu gosto.

LAÉRCIO
Que tipo de música você gosta?

GUILHERME
Eu gosto de música internacional. Eu gosto de rock.

LAÉRCIO
Sei. (pausa) Tá bom?

GUILHERME
Tá sim, senhor.

LAÉRCIO
Podem comer mais. É pra repetir.

(silêncio)

LAÉRCIO
Você tá passando fome?

GUILHERME
Não.

LAÉRCIO
Fuma bastante?

GUILHERME
Pior que fumo. Foi cagada. Eu não costumo fazer isso, senhor...

LAÉRCIO
Sei. Tudo bem. E seus pais?

GUILHERME
Meu pai mora longe. Minha mãe tá bem.

LAÉRCIO
Ela sabe?

GUILHERME
Que eu tentei ser ladrão? Acho que não sabe.

LAÉRCIO
E você é ladrão? Bandido? Você se considera?

GUILHERME
Você me pegou roubando o posto, não foi?

LAÉRCIO
Acho que foi.

GUILHERME
Sei lá. Foi cagada...

LAÉRCIO
E seu amigo?

GUILHERME
O que tem?

LAÉRCIO
Ele faz isso com frequência?

GUILHERME
Eu respondo por mim.

LAÉRCIO
Você sabia que a corporação já tava de olho em vocês?

GUILHERME
Se eu soubesse eu teria dado um jeito, né?

LAÉRCIO
Não dava nem uma semana pra tu tá mortinho da silva num necrotério. Nem todo mundo é bom moço como eu, garoto.

(silêncio)

LAÉRCIO
O Anderson também tava pra ser morto, né, Anderson? Mas o Anderson se envolveu em vender droga, né, Anderson? Ia morrer na mão dos traficantes do bairro do lado.

GUILHERME
Você é tipo que faz justiça com as próprias mãos?

LAÉRCIO
Oi?

GUILHERME
O que você quer? Você quer que eu peça desculpas? Você vai me torturar?

LAÉRCIO
O strogonoff tá uma tortura assim?

(Guilherme bate na mesa; Anderson se assusta e levanta a arma)

LAÉRCIO
Calma, Anderson.

GUILHERME
O que a gente tá fazendo aqui, cara? O que você quer?

LAÉRCIO
Você deve uma coisa pra sociedade. Nós somos policiais e eu peguei você e seu amigo assaltando o posto de gasolina de um amigo meu. Você prefere que eu leve você pra delegacia? Pra você sujar seu nome, talvez apanhar, tomar gostoso no cu. Quer? Anderson pergunta pra ele se ele realmente quer que eu leve ele pra delegacia pra ele ser processado pelo estado e ir pra cadeia logo na manhã seguinte, pergunta. Você quer, garoto?

(silêncio)

LAÉRCIO
Foi o que eu pensei. (pausa) E a maconha?

GUILHERME
O que tem?

LAÉRCIO
É pra consumo próprio?

GUILHERME
É sim, senhor. Eu fumo com meu pai.

LAÉRCIO
Não, tudo bem. Se fosse tráfico também tudo bem. Olha o Anderson. Nem todo pai leva a vida como a gente quer levar, né? Eu fico me perguntando, cara, eu sou responsável por o quê nesse mundo? O que é de responsabilidade minha nesse tempo que passamos pelo planeta? Fazer justiça? Trabalhar? Ser uma pessoa honesta? Não é uma coisa de deixar a gente meio paranóico?

(silêncio)

GUILHERME
Qual a diferença do meu crime pro seu?

LAÉRCIO
Oi?

GUILHERME
Você está agindo fora da lei me trazendo aqui. Não é o certo. Ou é? Qual é a nossa diferença?

LAÉRCIO
É exatamente essa a questão, garoto. Nós não somos diferentes. É pra isso que estamos aqui hoje. Esse aqui é mais esperto que você, Anderson.

GUILHERME
Você é um fora da lei igual eu.

LAÉRCIO
Mas eu estou salvando você! Em menos de uma semana você ia pra vala, menino. Eu tô falando sério. O sistema não suporta esse tipo de pressão, você entende? Você estava interferindo no serviço de um monte de caras estressados, mal pagos, você consegue entender? Eu salvei você te trazendo aqui. (pausa) Foi você que matou aquela menina, não foi?

GUILHERME
O que?

LAÉRCIO
A menina que morreu por causa do celular. Ângela era o nome dela. Uma ruiva gordinha. Mataram ela faz duas semanas. Foi você e seu amigo, não foi? Semana retrasada.

GUILHERME
Lógico que não. Você viu que a gente usa arma de brinquedo, cara. Pelo amor de deus...

LAÉRCIO
A do seu amigo não é de verdade?

GUILHERME
Não. É de brinquedo também.

LAÉRCIO
Tem certeza?

GUILHERME
Juro por deus. Essa foi a segunda vez que eu fiz isso. A gente só pensou em pegar comércio de playboy. Ia dar duzentão e um pacote de cigarro pra cada um.

LAÉRCIO
Ah, você não é playboy?

GUILHERME
Sou nada.

LAÉRCIO
Você tem cara de playboy.

GUILHERME
E você tem cara de matador.

(silêncio)

LAÉRCIO
Surgiu a suspeita de que você e o seu amigo foram quem matou a menina. O povo quer justiça, Guilherme. Eu não consegui salvar o seu amigo. Como é mesmo o nome dele? O Renato. Mas eu salvei você.

(silêncio)

GUILHERME
A gente não matou a menina.

LAÉRCIO
Ninguém quer saber. Precisa saciar o sentimento, você entende? Eu entendo a sua condição, mas eu preciso que você comece a entender a condição de todo mundo.

GUILHERME
Como assim?

LAÉRCIO
Eu aceito a sua falha, cara. Eu te respeito como ser humano passível de falha. Quero que você aceite as falhas dos homens maus também.

(silêncio)

LAÉRCIO
É um processo bastante complicado. (pausa) Qual era a intenção nisso tudo?

GUILHERME
Como assim?

LAÉRCIO
O que vocês pretendiam? Montar um esquema de roubos?

GUILHERME
A gente tava dando um jeito.

LAÉRCIO
Dando um jeito?

GUILHERME
Tédio.

LAÉRCIO
Sei.

GUILHERME
A nossa vida não pode ter sido exatamente igual pra você entender.

LAÉRCIO
Eu não acho que você seja vagabundo. Eu entendo muito bem a culpa do molde.

GUILHERME
A culpa do molde...?

LAÉRCIO
Você é o que você come e onde você está inserido. Eu entendo muito bem.

GUILHERME
Sim.

LAÉRCIO
A culpa do molde.

GUILHERME
Entendi.

(silêncio)

LAÉRCIO
Sabe como os caras descobriram de vocês? Como a corporação achou você e seu amigo?

GUILHERME
Como?

LAÉRCIO
Rede social. Conseguiram sua página do Facebook.

GUILHERME
É mesmo?

LAÉRCIO
Sim. Sua namorada é bastante bonita, né? Bem bonitona, com todo o respeito. É ou não é, Anderson? Todo mundo comentou que ia ser triste ver a namorada loirinha chorando no velório do bandidinho maconheiro de classe média. Júlia? Ia ser uma pena.

GUILHERME
Vocês tem o costume de fazer isso, né?

LAÉRCIO
Do que?

GUILHERME
De matar a molecada por aí.

LAÉRCIO
(brincando) Pare, cara. Você tá vendo muito filme de ação. Imagina!

GUILHERME
Eu sei que vocês fazem.

LAÉRCIO
(se irrita) Lógico que fazem! É uma guerra, cumpadre! Tá morrendo todo mundo!

GUILHERME
Mas vocês deviam proteger a população e não...

LAÉRCIO
Vai tomar no seu cu! Com a bíblia? Com um conselho? Uma instrução psicológica? Nós somos os caras que usam as armas, que podem portar armas de fogo. Não fui eu que decidi isso. Foi você? Foi você, Anderson? Quem foi? O que você espera, cara? Eu já disse que eu consigo entender a sua condição e você tem que entender a condição dos outros também. Tá todo mundo no mesmo barco, meu querido! Humanos são falhos, do lado de cá ou do lado de lá. O que você espera?

GUILHERME
Ao menos que seguissem as ordens do serviço. A lei não manda atirar antes pra depois perguntar.

LAÉRCIO
Meu querido, as ações são feitas por ordem de serviço sim. Acredite. São ordens de serviço por escrito. Veja bem, eu estou longe de estar defendendo esse tipo de acontecimento. Você não entendeu o que a gente tá fazendo aqui, hoje, moleque? Eu tô salvando você. Você ia ser morto. Você tava na lista negra. Os caras tem certeza que foi você e o seu amiguinho que mataram a menina. Eu não posso sozinho contra eles, eu dou meus pulos. Quem é responsável por você no mundo, Guilherme?

GUILHERME
É você?

(silêncio)

LAÉRCIO
Veja, Anderson, a ingratidão é muito comum na juventude hoje em dia.

GUILHERME
O que é? Você quis pagar uma de bom moço e foi contra os seus colegas, é isso? Você vai fazer um tratamento psico-social, comigo, é isso? Vai me deixar desse jeito igual você deixou esse cara? Ele é polícia de verdade ou isso aqui é uma fantasia?

LAÉRCIO
A arma é de verdade. Um pai educa seu filho do jeito que sabe, do jeito que pode.

GUILHERME
Eu não sei. Eu não tive pai perto. Você tem sorte, Anderson.

(silêncio)

LAÉRCIO
Eu já disse que eu entendo a sua condição. Eu não sou o inimigo, cara. Eu juro que eu tô tentando ajudar. Você tava pra morrer. Desculpa ter te salvado.

(silêncio; Guilherme meio que desiste)

GUILHERME
Valeu.

(eles terminam de comer; todos repetem o prato em silêncio)

(black-out)


CENA 2

(ainda no escuro, a música começa; quando a luz acende Guilherme e Anderson estão vendo uma apresentação de Laércio)

LAÉRCIO
Se me vê agarrado com ela
Separa que é briga tá ligado!
Ela quer um carinho gostoso
Um bico dois soco e três cruzado!
Tá com pena leva ela pra casa
Porque nem de graça eu quero essa mulher!
Caçadores estão na pista pra dizer como ela é...

Tcha tchritcha tchritcha tchum, tchritcha tchritcha

(música Dona Gigi - Os caçadores; Anderson aplaude)

LAÉRCIO
Eu odeio essa música. O Anderson que gosta, né, Anderson?

GUILHERME
Você é gay?

LAÉRCIO
Não. Por que? Você tem alguma coisa contra se eu fosse? Tem dois caras lá na corporação que eles se pegam e eu dou super apoio. Mas por que pergunta?

GUILHERME
Talvez eu visse outra explicação pra tudo isso.

LAÉRCIO
Pra tudo isso o que?

GUILHERME
Pra você fazer o que tá fazendo.

LAÉRCIO
O que eu tô fazendo?

GUILHERME
Selecionando alguns casos que você considera salvável na sua fórmula cristã da sociedade.

LAÉRCIO
Ninguém falou em fórmula cristã.

GUILHERME
Você se considera o salvador dos meninos perdidos. Não é isso que tá parecendo, Anderson? Eu tô começando achar que é piada...

LAÉRCIO
Eu levo a minha vida muito à sério.

GUILHERME
Eu e o Anderson fomos os únicos? Nós somos os únicos nesse seu plano de Jesus?

(silêncio)

GUILHERME
Nós fomos os únicos, Anderson?

(Anderson não responde)

GUILHERME
Agora vai ser a minha vez de fazer um showzinho pros outros aplaudir?  O que vocês formam? Vocês dois trepam?

(Laércio mostra uma pasta com fotos pra ele)

LAÉRCIO
Não é fácil um salvamento. Fala pra ele, Anderson. Não tem Jesus envolvido nisso.

ANDERSON
A gente não trepa.

(silêncio)

GUILHERME
(virando as páginas) Você não pode ficar responsável por todas essas pessoas. Você não é pai de nenhuma dessas pessoas. Você não é meu pai pra decidir o que é melhor pra mim.

LAÉRCIO
Tá batendo a abstinência?

GUILHERME
A abstinência do que, cara?

LAÉRCIO
Do mundo, bonitão. Você precisa entender que alguém tem que fazer alguma coisa por vocês sim. Responda pra mim, se não fosse eu ia ter sido quem?

GUILHERME
Pois se o meu destino era morrer, que morra!

LAÉRCIO
Lá vem a ingratidão de novo, Anderson.

(silêncio)

GUILHERME
Eu tô cansado. Eu quero sair lá fora.

LAÉRCIO
Não haverá essa possibilidade.

GUILHERME
Eu tô ficando claustrofóbico aqui dentro.

LAÉRCIO
Achei que claustrofobia fosse coisa de playboy. Você quer fumar maconha, fumar cigarro, se matar...

GUILHERME
É isso mesmo que eu quero. Isso não te diz respeito! Se eu quiser me matar você não tem nada a ver com isso. Você não pode me deixar prisioneiro aqui dentro! Quanto tempo?

LAÉRCIO
Foi você quem decidiu as minhas responsabilidades nesse mundo, meu amigo?

GUILHERME
E é você quem decide a minha?

LAÉRCIO
Pior que é. Porque sou eu o cara que tá com a arma aqui. Eu sou o oficial da lei na minha casa.

(Guilherme cospe no chão em desrespeito; Laércio se irrita e o segura pelo pescoço)

LAÉRCIO
Eu gosto de respeito.

GUILHERME
Socorro!

LAÉRCIO
Cale a boca que ninguém vai te ouvir. Eu gosto de respeito aqui nessa casa.

GUILHERME
Vai se fuder! Isso aqui é um sequestro!

LAÉRCIO
Você ia morrer! Seu burro! Moleque burro! Você ia parar dentro de um buraco com um furo na testa, garoto! E ninguém ia buscar justiça pela sua dignidade não, seu burro! Ia ser esquecido, igual seu amigo que deve tá com formiga na boca nesse instante. Vala, moleque. Morte. Fim da jornada. (ele se levanta e abre a porta) Você quer sair? Saia. Pode ir. Vá fumar seu cigarro. Eu devolvo o seu baseado. (ele pega em uma sacola um cigarrinho) Toma. Vai fumar. Vai. Vai pedir proteção pra mamãe. Experimenta ligar no 190 pra pedir ajuda.

(Guilherme não se mexe; longo silêncio; Laércio fecha a porta)

GUILHERME
O que foi que aconteceu com os outros?

LAÉRCIO
Deixa eu ver... (mostrando na pasta) O Ronaldo tentou fugir, eu dei um tiro nele...

GUILHERME
Se eu saísse pela porta então você ia dar um tiro em mim.

LAÉRCIO
Ia.

(silêncio)

LAÉRCIO
O Ronaldo tentou fugir e eu dei um tiro nele. O André se suicidou ali no banheiro. O Alex morreu por conta de um câncer que ele teve na cabeça, sofreu pra caralho. O Cristian foi o único que conseguiu fugir de mim. Ele conseguiu me algemar e fugiu. Foi morto seis dias depois, ele tava devendo uma grana pra um vereador aí, eu bem que tentei ajudar... O Wesley, esse aqui foi duro, ficou bem um tempão comigo depois surtou, tá vendo essa cicatriz que eu tenho aqui? Ele. Enfiou uma caneta. Dei bobeira. Se matou também...

GUILHERME
Todos jovens...

LAÉRCIO
De vinte a vinte e cinco anos, mais ou menos.

GUILHERME
Todos brancos de classe média.

LAÉRCIO
Infratores como todo mundo. O Ronaldo era traficante igual o Anderson, o André estuprou uma garota num ponto de ônibus, o Alex tava roubando carro na zona sul...

GUILHERME
Por que você tem preferência em salvar só brancos?

LAÉRCIO
Oi?

GUILHERME
Você escolhe os que acredita que devem receber uma segunda chance, não é?

LAÉRCIO
Não.

GUILHERME
Só brancos merecem sua doce misericórdia?

(silêncio)

LAÉRCIO
Eu não sou racista.

GUILHERME
Todo racista fala que não é racismo. Porque que nenhum negro ao seu ver merecia uma segunda chance igual você tá fazendo comigo? Negro você mata na rua que nem seus amigos?

LAÉRCIO
Eu não tenho que explicar nada pra você.

GUILHERME
Porque é racista.

LAÉRCIO
Eu já falei que eu não sou racista. Isso não tem nada a ver com racismo!

GUILHERME
O Renato é mais moreno. Porque você salvou eu e não salvou ele?

LAÉRCIO
Eu não posso carregar todo o peso do mundo nas costas. Vamo mudar de assunto?

GUILHERME
Morre mais negro do que caras como eu, não morre? Eu sou classe média mesmo. Eu fiz o colegial no Objetivo. Eu já viajei pra Disney com uma tia. Talvez seja vagabundice o que eu e o Renato foi fazer no posto. Era pra comprar mais droga e uma pizza.

LAÉRCIO
Tô ligado.

GUILHERME
O negro e o pobre não se fode mais que o branco classe média na mão da polícia? Minha mãe podia muito bem conseguir um bom advogado...

LAÉRCIO
Não ia dar tempo, talvez.

GUILHERME
Então por que você nunca fez justiça com nenhum negro que tenha sido morto na mão dos seus colegas, cara? Eles precisam mais da sua ajuda, pensando na justiça divina. Eu sou privilegiado...

LAÉRCIO
Eu não sei o que você quer que eu fale...

GUILHERME
Talvez por eu ser branco eu tenho mais chance de uma re-socialização na sociedade, não é? No seu ponto de vista. Eu sou só um garoto precisando de apoio psicológico, não é mesmo? Os outros que se fodam.

LAÉRCIO
Não tem nada a ver com isso. Eu acho que todo mundo devia de ter esse direito de re-socialização.

GUILHERME
Então é por que?

LAÉRCIO
(silêncio) Por nada! Sei lá, cara! Chega. Deu.

(longo silêncio)

GUILHERME
Você só teve ele de filho? Você tem irmão, Anderson?

LAÉRCIO
Ele não é meu filho de verdade. Né, Anderson? É um igual você.

GUILHERME
Ah. Você salvou ele também. O que ele é? O que ele tem?

LAÉRCIO
Como assim?

GUILHERME
Ele é autista?

LAÉRCIO
Por que?

GUILHERME
Sei lá. Tô perguntando.

LAÉRCIO
Ele perguntou se você é autista, Anderson. Veja só. Não sei. Você é autista, Anderson?

(Anderson faz que não)

LAÉRCIO
Se ele tá falando que não é, quem sou eu, né? E se fosse?

GUILHERME
Nada.

(silêncio)

GUILHERME
Você pegou ele traficando?

LAÉRCIO
Aviãozinho. Coitado. Um tiro aqui na cabeça, olha. (mostra) Ficou alojado, a bala. Quase morreu. Viveu por milagre.

GUILHERME
Ah. (pausa) Nunca tinha visto um policial com pena de traficante.

LAÉRCIO
Eu tento entender as coisas. Não é uma questão de ter pena. É uma questão de querer pensar um pouco como que funciona a cabeça desses seres.

GUILHERME
Só dos seres brancos? Dos seus parecidos?

LAÉRCIO
Você de novo com esse papo!

GUILHERME
Eu fiquei muito curioso com essa sua seleção, cara. Não tô contestando ela. Eu tô perguntando porque isso é muito curioso. Tem uns vinte garotos aqui e todos eles possuem o meu perfil.

LAÉRCIO
Você quer passar uma rasteira em mim. Você quer me pegar numa hipocrisia pra jogar na minha cara. Você tem a sua história e eu tenho a minha.

(silêncio)

LAÉRCIO
Você gosta de jogar baralho? Eu e o Anderson, a gente é viciado em Buraco. Todo sábado e toda quinta a gente joga. Bora uma partidinha?

(Anderson se anima)

LAÉRCIO
Ah, vai, cara! Não tem nada pra fazer. A gente aqui em casa não mexe no computador. A gente joga baralho da vida real ainda.

ANDERSON
Eu vou ganhar desse filho da puta.

LAÉRCIO
Olha os modos, Anderson. Filho da puta é um xingamento machista. Por que só a puta, não é mesmo?

(Guilherme se senta pra jogar depois que os outros dois já estiverem acomodados e preparados)

(black-out)


CENA 3

(um foco em Guilherme)

GUILHERME
Tem alguém olhando você
Olha aqui, vem pra mim
Tem alguém seguindo os seus passos
Olha aqui, vem pra mim

Tem alguém que precisa de ti
O coração na sua mão
Olha aqui, vem pra mim
Entender, entender

Tem alguém que te protege
Olha aqui, vem pra mim
Tem alguém que ama guiar-te
Olha aqui, vem pra mim

I've waited, but i'll wait forever for you to come to me.
Look at someone (look at someone)
Who really loves you, yeah, really loves you.
Turn around, look at me
There is someone walking behind you,
Turn around, look at me.

(versão da música Turn around, look at me - The Vogues; Anderson e Laércio aplaudem eufóricos)

LAÉRCIO
Eu tô quase começando a gostar da parte internacional também. Né, Anderson? Olha o Anderson tá com os olhos marejados até. Muito bom.

GUILHERME
Valeu.

LAÉRCIO
Gostei mesmo. Toma.

(Laércio dá um cigarro pra Guilherme; Anderson acende)

GUILHERME
Putz. Valeu!

LAÉRCIO
A vida é feita de trocas, meu caro. Pra se conseguir manter-se em um vício, você precisa trabalhar pra isso. Juro que eu não te julgo, tô pouco me fudendo se você quer se matar fumando, mas faça isso dignamente. Você foi quase como um artista pedindo por alimento cantando. Parabéns.

GUILHERME
Que isso.

LAÉRCIO
Tá satisfeito, Anderson?

ANDERSON
Tá.

LAÉRCIO
Se o Anderson tá satisfeito eu também tô. Pra mim, até pareceu sinceridade. (pausa) Sua vez, Anderson. O Anderson não canta. Ele gosta de dançar. Vai lá, Anderson.

(Laércio liga uma música no rádio; Anderson dança um tanto canastrão; silêncio até o fim da apresentação; Laércio e Guilherme aplaudem por respeito; Laércio dá mais um cigarro pra Anderson)

GUILHERME
Você não se sente meio... bobo, às vezes?

LAÉRCIO
Na maior parte do tempo. Bobo sim, mas não mentiroso. Cada um aprendeu aquilo que deu. A gente precisa aprender a passar o tempo e afastar os pensamentos ruins. Todo mundo tem pensamento ruim. Voce sabia? Ninguém é cem por cento santo não. Todo mundo tem algum pensamento que pode ser ruim pra alguém. A gente precisa aprender a se ocupar. Ocupar a cachola. E sinceridade...

GUILHERME
Eu acho que me parece que enquanto esse tempo tá passando... parece que não faz diferença se eu tivesse sido morto.

(silêncio)

LAÉRCIO
Chega uma hora da abstinência que a filosofia fica barata. Esse é o momento perigoso, Guilherme. É nesse momento que os outros se mataram, que o Ronaldo tentou fugir. Força na moringa, garoto. Eu não tô te forçando a arrumar um emprego, eu tô te dando comida e roupa lavada, mesmo você não sendo um hóspede exemplar...

GUILHERME
A troco de quê?

LAÉRCIO
Satisfação profissional, pode-se dizer.

GUILHERME
Mas essa não é a sua profissão. É?

LAÉRCIO
Não foi você quem disse que a polícia tem que proteger a população?

GUILHERME
Mas é uma parcela mínima o que você tá fazendo, de um perfil já super protegido na sociedade...

LAÉRCIO
Eu não tenho como carregar o mundo na costa sozinho...

GUILHERME
Tem que ter outro jeito!

LAÉRCIO
Que jeito! Que jeito! Você quer que eu arrume briga com cachorro grande? Que eu vá lá na secretaria de segurança e sequestre o porra do secretário que manda a gente encobrir número, que manda a gente matar se for necessário? Tem gente nesse mundo que acredita em pena de morte, meu querido. E eles querem fazer isso em lei, se for possível. E tem gente que vai parar nessa lista, meu caro. Enquanto não conseguem fazer a justiça que acreditam em lei, fazem o que podem com o que acreditam, por fora. Quem julga? Você acha que há remorso? Não há. Não há porque existe esse sentimento de patriotismo seletivo no meio militar, meu querido. Não é culpa do indivíduo, como não é de total sua culpa ter virado um ladrão, por exemplo.

GUILHERME
Mas e se foi minha culpa? E se eu sou um folgado? E se o policial corrupto é só mais um filho da puta?

LAÉRCIO
É porque aprendeu ser! Eu vejo você como um bebezinho que não era nada e se tornou o que comeu, porra! Eu tô defendendo você, caralho! Eu tô aqui te defendendo, defendendo a falha do ser humano, defendendo todo mundo...

GUILHERME
O policial defendendo bandido. Eu nunca tinha visto...

LAÉRCIO
Perceba que eu não tô defendendo a bandidagem. O ato do bandido. É muito diferente. Eu tô defendendo vocês que respiram e possuem vida nessa cachola burra.

GUILHERME
Mas só os brancos.

LAÉRCIO
Porra, cara, mas que chato! Eu já falei que não tem nada a ver essa merda!

GUILHERME
Eu pensei que eu tivesse sendo obrigado a participar da merda. Só pensei que eu pudesse então participar da merda sabendo mais sobre a merda.

LAÉRCIO
A verdade não é democrática, meu querido. Você pode não gostar da lei da gravidade, mas se você pular de um prédio você vai morrer.

(silêncio)

GUILHERME
E o Ronaldo que você matou porque tentou fugir?

LAÉRCIO
O que tem?

GUILHERME
Você é assassino também!

LAÉRCIO
A sentença lá fora já estava dada, moleque. Acorda a cabeça um pouquinho! Eu dei dignidade porque foi sem tortura nenhuma com a barriga cheia e roupa limpa. Um tiro só. Bang.

GUILHERME
Pra mim, você é um criminoso igual.

(silêncio)

LAÉRCIO
Anderson, puta cara chato, hein. Esse é chato. Não consegue ficar de boa mesmo.

(silêncio)

GUILHERME
Eu tô com saudade da minha mãe, da Júlia...

LAÉRCIO
Tá querendo voltar pro mundo real?

(silêncio)

LAÉRCIO
Seu amigo foi achado com sete furos na cara. Caixão lacrado. Enfiaram um pau no cu dele.

GUILHERME
É sério?

(Laércio mostra uma foto; Guilherme se choca e quase vomita)

GUILHERME
Não precisava ter mostrado essa merda. Que merda! Que merda! Porra...

LAÉRCIO
Essa é a arma do seu amigo. (ele coloca a arma na mesa) Queria ver você dar um tiro de brincadeirinha na própria boca já que é uma arma de brinquedo.

(silêncio; Guilherme não se mexe)

LAÉRCIO
Foi o que eu pensei. Sinceridade.

GUILHERME
Não foi a gente que matou a menina.

LAÉRCIO
Fica difícil de acreditar em você agora. Quando a gente perde a confiança, custa pra conseguir conquistar de novo. Nem todo mundo é boa pessoa que consegue esquecer uma pisada na bola de uma cena pra outra. Não é, Anderson? O Anderson uma vez - logo no comecinho, né, Anderson? - uma vez ele deu pra dar o louco. Colocou fogo no meu antigo fogão, que eu tive que comprar outro. Demorou pra eu voltar a deixar ele andar com isqueiro no bolso. Né, Anderson?

GUILHERME
Você tem que entender a minha posição aqui. Você tirou a minha liberdade de qualquer forma. É como se eu tivesse na cadeia.

LAÉRCIO
Acredite. Não é como se você tivesse na cadeia não. Aqui ninguém come essa sua bunda branca. Considere-se com sorte.

GUILHERME
Uma hora você vai deixar eu me re-socializar na sociedade?

LAÉRCIO
O que você quer? Ir pra uma balada? Ir pra praia? A gente pode fazer isso. Eu já levei o Anderson no Hopi Hari, né, Anderson?

GUILHERME
Digo de liberdade. De eu fazer o que eu quiser sozinho.

LAÉRCIO
Quem sabe do futuro, não é mesmo?

GUILHERME
E quanto eu peguei dessa pena?

LAÉRCIO
Oi?

GUILHERME
Quanto tempo eu peguei nessa condenação? A gente podia levar isso aqui então com um pouco mais de formalidade.

LAÉRCIO
Não. De jeito nenhum. Eu odeio essa merda. Gosto das surpresas e gosto do desconhecido. Você quer ir pra praia? A gente pode ir em novembro. Eu tenho férias pra tirar mesmo.

GUILHERME
Eu não quero ir pra praia, eu quero ter uma perspectiva! Eu só sei que sábado a gente vai jogar Buraco de novo. Que eu tenho que preparar uma música pra semana que vem, que a gente vai ter strogonoff na janta.

LAÉRCIO
É tão ruim meu strogonoff, Anderson? Você nunca falou nada...

GUILHERME
Não é ruim, cara. Eu só queria... uma perspectiva.

LAÉRCIO
Você tá na abstinência da maconha? Você quer fumar um baseado na praia?

GUILHERME
Não, cara! Eu só quero sair!

LAÉRCIO
Mas sair pra onde? Onde você quer ir?

GUILHERME
Sei lá! Sair. Eu quero saber se vai ter um momento onde eu mande, você entendeu? Onde eu escolha de novo.

(silêncio)

LAÉRCIO
Hum. Interessante. Gostei, garoto. A gente pode fazer um dia da semana pra vocês serem os chefões.

GUILHERME
O que?

LAÉRCIO
Um dia da semana o Anderson, um dia da semana você. Vocês que mandam. Vocês que cozinham, vocês que ditam as regras. Eu juro que eu vou ser o máximo passivo possível. Aí nesse dia vocês podem dar ideias pra melhorar a nossa convivência em democracia. Obviamente que no dia seguinte qualquer ideia absurda pode ser revogada. Mas por durante todo um dia vocês terão o direito de comandarem a situação. O que achou, Anderson?

ANDERSON
O que achou!

(silêncio)

LAÉRCIO
Eu sou o tipo de pessoa que não guarda rancor. Gostou, Guilherme?

GUILHERME
Tem hora que eu fico me perguntando se você faz isso de propósito ou se é o seu jeito mesmo.

LAÉRCIO
Não entendi.

GUILHERME
Você se faz de desentendido pra desviar a conversa. Agora não sei se você faz isso com consciência ou se você é mais um louco.

LAÉRCIO
Tendo consciência ou não, seria um tipo de loucura dos dois jeitos, não?

GUILHERME
Seria.

LAÉRCIO
Estamos no mesmo barco, meu querido.

GUILHERME
Você é um lazarento.

LAÉRCIO
No seu dia de mandar, saia dar um rolê. Por que você não começa a pensar assim?

GUILHERME
E você não vai dar um tiro nas minhas costas a hora que eu passar pela porta?

LAÉRCIO
Dou minha palavra. Eu juro que não. Quero ver quanto você sobrevive lá fora. Só que se você não voltar eu não vou manter a língua quieta lá no trabalho de relembrá-los da sua existência, não posso prometer isso. "Nossa, galera, sabem quem eu vi hoje? O Guilherme que matou a menina lá. Onde? Tal lugar, tal lugar." Feito. Pode ser?

GUILHERME
E se eu der só uma volta e voltar?

LAÉRCIO
O que?

GUILHERME
E se eu voltar? Se for só uma caminhada?

LAÉRCIO
Não prometo segurança. Eu preciso mesmo de um dia de folga. Você tá livre pra fazer o que quiser no seu dia de mandar, senhor.

GUILHERME
Eu sei me cuidar.

(Laércio ri; Anderson ri também)

LAÉRCIO
Cara, eu sou um cara muito legal. Fala a verdade...

GUILHERME
E quando vai ser a primeira?

LAÉRCIO
Hum. Deixa eu pensar. Quinta e sábado é dia de Buraco. Domingo e quinta também é dia de karaokê. Segunda-feira!

GUILHERME
Combinado.

LAÉRCIO
E o Anderson fica com a terça. Beleza, Anderson? Agora fala se eu não sou um cara do bem! Fala!

GUILHERME
Valeu, cara. Obrigado por tudo.

LAÉRCIO
Eu sou ou não sou um cara do bem?

GUILHERME
É sim. Você é um cara do bem.

LAÉRCIO
Agora eu vou cantar a música que eu preparei. Vamo lá.

(black-out)


CENA 4

(a música começa no escuro; Guilherme canta enquanto Laércio traduz simultaneamente romântico e Anderson dança; tudo tosco)

GUILHERME
Imagine there's no heaven
It's easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people
Living for today

Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace

You may say
I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope some day
You'll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world

You may say
I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope some day
You'll join us
And the world will live as one

LAÉRCIO
Imagine que não há paraíso
É fácil se você tentar
Nenhum inferno abaixo de nós
Acima de nós apenas o céu
Imagine todas as pessoas
Vivendo para o hoje

Imagine não existir países
Não é difícil de fazer
Nada pelo que matar ou morrer
E nenhuma religião também
Imagine todas as pessoas
Vivendo a vida em paz

Você pode dizer
Que sou um sonhador
Mas não sou o único
Tenho a esperança de que um dia
Você se juntará a nós
E o mundo será como um só

Imagine não existir posses
Me pergunto se você consegue
Sem necessidade de ganância ou fome
Uma irmandade do Homem
Imagine todas as pessoas
Compartilhando todo o mundo

Você pode dizer
Que sou um sonhador
Mas não sou o único
Tenho a esperança de que um dia
Você se juntará a nós
E o mundo viverá como um só

LAÉRCIO
Cara, John Lennon era o cara! Quando a gente vê a tradução, é de se emocionar mesmo. Obrigado por isso, Guilherme. O Anderson até chorou, né, Anderson? Olha, chorão!

GUILHERME
Parece brisa de maconheiro.

LAÉRCIO
O que?

GUILHERME
Esse mundo perfeito do John.

LAÉRCIO
Você pode dizer que ele é um sonhador. Mas ele não é o único.

GUILHERME
Você é o bom policial. O cara bonzinho.

LAÉRCIO
Para.

GUILHERME
Que é fora da lei, mas fora da lei por fazer a coisa certa. Veja só.

LAÉRCIO
Obrigado, Guilherme. Mas chega. Agora eu tenho que ir, porque tá dando hora do trabalho. Eu vou deixar o feijão no fogo você desliga pra mim?

GUILHERME
Tá. Lá fora você faz o papel do policial bonzinho também?

LAÉRCIO
De que tipo?

GUILHERME
Bate em manifestante, em estudante, essas coisas?

LAÉRCIO
Eu recebo ordens de serviço do meu superior. O 'não' que eu falo pro sistema é você aqui.

GUILHERME
Pra quê?

LAÉRCIO
Pra quê o quê? (pausa) Pra quê o quê?

GUILHERME
Nada.

(silêncio; Laércio termina de se arrumar)

LAÉRCIO
Vou trazer sorvete hoje. Tá calor pra caralho nessa merda, não tá? Qual você quer, Anderson?

ANDERSON
Flocos!

LAÉRCIO
E você?

GUILHERME
Pode ser de flocos também.

ANDERSON
Flocos! Flocos!

LAÉRCIO
Só eu que gosto de morango nessa casa?

(silêncio)

LAÉRCIO
Bom. Tchau, gente. Não esqueça do fogo.

GUILHERME
Beleza.

(Laércio sai; ouvimos barulho de cadeado e correntes trancando a entrada; silêncio; por um tempo Anderson e Guilherme trocam alguns olhares desconfiados; eles continuam na rotina na casa)

GUILHERME
Pra quê será que a gente tem uma televisão se não pode ligar ela, né?

(Anderson mostra o cabo cortado)

GUILHERME
Eu sei. Não dá pra acreditar numa casa sem computador e celular hoje em dia. (ele vai até a prateleira de livros) "Eram os Deuses Astronautas". Ele é bem maluco mesmo. (continua aleatório) Livro de horóscopo. (ri) Ai, meu deus do céu. (outro) "Cinquenta Tons de Cinza"? Caralho, velho. Tá de zoeira. (encontra um álbum de fotos) Quem é esse aqui, Anderson? Você sabe?

ANDERSON
Flocos.

GUILHERME
Quem é esse menininho aqui na foto, Anderson? É você?

ANDERSON
Fi-lho-te.

GUILHERME
Filhote? Que filhote?

ANDERSON
Voou. Foi pro céu. Oito anos vai.

GUILHERME
Esse aqui é filho dele?

ANDERSON
Fica voando no céu. Vruuum...

GUILHERME
(vira a foto) Mil novecentos e noventa e sete. O menino era pra ter a nossa idade. Como ele morreu, Anderson?

ANDERSON
Fumá! (vai pra um canto fumar um cigarro começado)

(a panela está no auge da pressão; Guilherme tem uma descoberta em seus pensamentos)

GUILHERME
Não é por mim que ele tá fazendo isso. Não é por você, Anderson. Ele não tá salvando ninguém, Anderson. Bom policial é o meu caralho. É só mais um egoísta. E você bem que pensou que ele tinha boas intenções sociais, não pensou? Pensou. Pensou, caralho. Puta que o pariu. Agora faz sentido, cara. É lógico. Pra uma figura como aquela existir tem que ter uma profundidade por de trás, tinha que ter uma historinha, não podia de ser à toa essa merda toda. Lógico que não podia. Alguma coisa aconteceu com esse moleque. E ele vê em nós, Anderson, o seu filho que não está mais entre nós. Alguma culpa talvez. Ele se sentiu na obrigação de ocupar a sua cachola de um filho provavelmente morto precocemente nessa nossa discussão social de rapazes brancos e de classe média que ele gosta de salvar. É por ele! (pausa) Possivelmente o garoto tenha sido vítima de algo violento. Uma tentativa de assalto ou algo do tipo. Um acidente com uma arma...

ANDERSON
Vrummm...

GUILHERME
Um acidente de carro. E aí ele decide transformar eu e você nos novos filhotes contemplados, Anderson! (debocha) "Veja como você é um cara de sorte, seu menino, você estava pra morrer e eu na minha humilde e doce misericórdia de Jesus recolho-te desse mundo para te salvar dos algozes maus policiais do sistema". Mentiroso do caralho. Tinha que ter algo! É claro que tinha que ter algo! Ninguém faz nada por nada! Tudo o que as pessoas fazem elas fazem pra si mesmo, não existe esse negócio de compaixão. Compaixão é o meu cu. (pausa) Você sabe o que aconteceu com o menino, Anderson? Sabe?

(Anderson aponta pro céu)

GUILHERME
Morreu, não foi? Como que ele morreu?

ANDERSON
Deuses astronauta.

GUILHERME
Com certeza. Filho da puta. Quando a gente perde a confiança, Anderson, é duro de ganhar de novo. Já sei que música eu vou cantar pra ele no dia do karaoke.


CENA 5

(as luzes mostram que é outro dia de repente; Laércio e Anderson assistem Guilherme)

GUILHERME
(canta) Vai Tomar no cú
Vai Tomar no cú
Vai Tomar no cú
Bem no meio do seu cú
Vai Tomar no cú, vai, vai, vai, vai
Vai Tomar no cú, vai, vai, vai, vai
Vai Tomar no cú
Bem no meio do olho do seu cú

(Anderson aplaude; Laércio sorri amarelo)

LAÉRCIO
Eu não entendi o recado.

GUILHERME
Não entendeu? Será que eu preciso ser mais direto?

LAÉRCIO
Você tava me mandando tomar no cu?

GUILHERME
Não. Eu? Lógico que não.

LAÉRCIO
O que foi isso, então? Por que foi isso?

GUILHERME
Piada. Pra fazer piada.

LAÉRCIO
Por que que eu tenho que ir tomar no cu?

GUILHERME
Não foi pra você não, cara. Que mania de perseguição.

LAÉRCIO
(simpático) Tá escrito 'idiota' aqui na minha testa? Foi pra mim sim. Fala o que foi.

GUILHERME
(explode) Você é um hipócrita!

LAÉRCIO
Oi?

GUILHERME
É sim! É o que você é!

LAÉRCIO
Você sabe o que é hipócrita?

GUILHERME
Sei sim. É o que você é! Você nos prendeu aqui porque você sente falta do seu filho. É por você que a gente tá aqui não é por mim. O que aconteceu?

LAÉRCIO
E você tá bravinho porque queria que fosse tudo por você, pra você ser o egoísta e não eu?

GUILHERME
Não interessa! Você me enganou. Eu achei que a gente estivesse aqui fazendo um serviço social. Mas você é um hipócrita porque você misturou a sua vida pessoal nisso tudo. Você resgata os caras pra substituir a falta que seu filho faz. Não é isso?

LAÉRCIO
(ri) Realmente. Eu tenho bastante saudade do meu filho. E quem é que consegue separar a vida profissional do pessoal? Hein? Fala pra mim.

GUILHERME
Você é um coitado, um doente!

LAÉRCIO
E você não sabe o que significa a palavra 'hipócrita'.

GUILHERME
O que aconteceu com ele?

LAÉRCIO
Com quem?

GUILHERME
Com seu filho?

LAÉRCIO
Ele tá nessas horas bem lá no alto no céu.

GUILHERME
Eu tô falando sério! Tem como você levar a sério pelo menos uma vez?

LAÉRCIO
Para de parecer um menininho carente, Guilherme. Pelo amor de deus.

GUILHERME
O que aconteceu com ele?

LAÉRCIO
Não aconteceu nada com ele.

GUILHERME
Então como ele morreu?

LAÉRCIO
Meu filho não morreu não. Quem falou que ele morreu?

GUILHERME
Mentira. Eu sei que ele morreu.

LAÉRCIO
Tô falando. Ele vai demorar pra voltar porque ele está numa missão que vai demorar mais oito anos ainda.

GUILHERME
Mas...

LAÉRCIO
Meu filho estudou física. Virou astronauta. É o primeiro astronauta brasileiro que vai pisar em Marte. Um orgulho do pai. Fumou maconha também, o desgraçado, eu descobri. Mas a gente conversou e ele levou só como recreação. Eu sou um bom pai, Guilherme. Quando ele voltar já vai ser um homem. Puxa vida.

(silêncio)

LAÉRCIO
O que foi, Gui? Destruí a sua teoria?

ANDERSON
Durou pouco. (gargalha)

GUILHERME
Por que só rapazes brancos?

LAÉRCIO
E por que você acha que tem que ter um negro no meio da minha lista de bandidos?

GUILHERME
Porque... porque...

LAÉRCIO
Ah, há! Tinha que ter um cara negro pra representar um assaltante de posto de gasolina? Por que não pode ser um playboyzinho como você pra fazer o papel do bandido?

GUILHERME
Porque na realidade...

LAÉRCIO
O que? Tem mais negros no crime? Se é pra representar um bandido tem que ser um preto pra ser realista?

GUILHERME
Entre vinte rapazes da sua lista de salvação nenhum ser negro é estranho.

LAÉRCIO
Pois você fique sabendo, meu querido, que tem muito branco sendo do mal também.

GUILHERME
E você só tem dó dos brancos?

LAÉRCIO
Você acha que é dó o que eu sinto por você?

GUILHERME
Eu quero saber por que você só salva branco?

LAÉRCIO
(se irrita) Isso foi ao acaso, caralho! Eu já falei! Eu vou lá escolher quem eu vou salvar na hora do fogo? Podia ter sido você como podia ter sido seu amigo lá na hora, porra! Talvez essa nossa querida raça não esteja tão santa como você pensa e eu dei a terrível sorte de só sequestrar rapazes brancos!

GUILHERME
Impossível...

LAÉRCIO
Impossível por que? Você é racista? Tem que ter preto envolvido no crime?

GUILHERME
Impossível porque não é essa a realidade... na porcentagem...

LAÉRCIO
Quem disse? Você convive com todos os criminosos do mundo? Você sabe os segredos de todo mundo? Pode ser que a área que minha corporação é responsável tenha mais branco bandido do que negro bandido.

GUILHERME
Ou pode ser que você seja racista e acha que só branco merece uma segunda chance.

LAÉRCIO
Que puta segunda chance de merda que você teve, né, garoto? O que você faz? O que eu ofereço pra vocês? Não é você que fala? Nossa, agora a dondoca pode sair dar uma volta às terças-feiras. Uau, que demais! Que futuro promissor que você tá tendo na espectativa, Guilherme. Que mais que você vai poder fazer da sua vida agora? Que merda de segunda chance é essa, garoto? Se liga!

(silêncio)

GUILHERME
Você tá se contradizendo...

LAÉRCIO
Você tá se contradizendo! Chega! Deu.

(silêncio)

LAÉRCIO
Os motivos de uma boa ação não interessam, você entendeu? Se você quer morrer, pode ir embora. Vá embora. Faz uma mochila e pega um ônibus pro interior do país. Foge. (pausa) Não existe motivo pra você fazer a coisa certa, você entendeu? Enfia isso nessa sua cabeça. Não deu tempo de ficar vendo a cor do cara que eu ia salvar dessa vez, ou da outra vez. É racismo da minha parte não ter tido a oportunidade de salvar nenhum negro ainda, mas não é racismo da sua parte de esperar que tenha ao menos um negro na minha lista de bandidos?

GUILHERME
É o que é a realidade de hoje em dia...

LAÉRCIO
A realidade dá pra se basear nas estatísticas, mas tem uma hora que o universo manda a exceção. Você entendeu? Você entendeu o que eu acabei de falar? Lembre disso. Nem sempre acontece como acontece na regra.

GUILHERME
Não tem como a gente defender a exceção. Desculpe as minhas dúvidas.

LAÉRCIO
Tá desculpado.

(silêncio)

ANDERSON
O duro é uma peça com três atores brancos, com um dramaturgo branco, um diretor branco, um produtor branco, e ainda quererem discutir sobre racismo no meio desse drama policial existencial ficcional baseado numa história real e ilegal. Cadê o ator negro pra dizer o que ele acha de tudo isso? Branco só faz branquice mesmo. Será que eles não cansam de quererem sempre o foco só pra eles? O dramaturgo pede desculpas por alguma ignorância nessa luta que não lhe pertence o protagonismo, mas que também lhe tira o sono as injustiças.

(silêncio)

GUILHERME
Voltamos ao policial puritano. Não há motivos pra se fazer o bem. Esse é você. Eu invejo um pouco isso.

LAÉRCIO
Não que eu seja um cara perfeito, mas obrigado.

GUILHERME
Eu admiro essa sua forma de ajudar o mundo, cara. No fim das contas...

LAÉRCIO
Pode ser que exista um porquê. Assim como pra ser bom dá a impressão que parece que tem que ter um porquê que você é um cara decente, que deve ter tido boa educação, uma boa vivência no mundo, pra ser mal não é simplesmente vagabundagem e sem-vergonhice, é a mesma coisa. Todo mundo tem os seus motivos de serem o que são, não é não? Fica parecendo que a gente precisa saber se você matou ou não matou a menina pra gente sentir um pouco mais de compaixão por você, pelo ser humano que respira e é falho como todo mundo. Ou que uma boa ação precisa ter uma desculpa pra acontecer, que precise ter algo por trás da minha rebeldia social; ou uma plateia, um espectador pra me aplaudir no final desse drama policial existencial ficcional baseado numa história real e ilegal.

GUILHERME
Se eu tivesse matado a menina, você me trataria igual?

LAÉRCIO
Você matou a menina?

GUILHERME
Eu tô supondo. Tô fazendo uma suposição.

(silêncio)

LAÉRCIO
Eu não posso dizer sobre um sentimento que eu não tô sentindo. Não tem como eu ter o parâmetro, entendeu? Eu teria que sentir, pra pensar qual seria a minha reação.

GUILHERME
Hum.

LAÉRCIO
Mas concientemente, sem a adrenalina da hora da raiva, eu acho que te perdôo. Cinquenta por cento de chance de sim, cinquenta por cento de chance de não. Você matou?

GUILHERME
Não.

LAÉRCIO
Você jura?

GUILHERME
Juro.

LAÉRCIO
Vamos ter que crer nas suas palavras.

GUILHERME
Qual é a história por trás da sua história?

LAÉRCIO
Você não precisa saber.

GUILHERME
Estamos quites.

(silêncio)

GUILHERME
(pausa) Como é seu nome? Eu nunca perguntei. Que estranho não saber o seu nome.

LAÉRCIO
É Laércio. José Laércio. Não faz diferença. Vamo esquecer tudo isso e tomar sorvete?

ANDERSON
Flocos!

LAÉRCIO
Flocos!

GUILHERME
Flocos!

(eles se sentam tomar o sorvete)

ANDERSON
Um sorvete inteiro branco com gotinhas negras.

LAÉRCIO
Se fosse o contrário seria de prestígio. Chocolate com côco. Pode ser a próxima pedida, se vocês quiserem. Gosta de prestígio, Anderson? Só eu que gosto de morango mesmo.

(eles se servem)

GUILHERME
Pra que a televisão, Laércio?

LAÉRCIO
Não, não me chame de Laércio, me chame de cara, colega, amigo, mano.  Fica estranho me chamando de Laércio.

GUILHERME
Pra que a televisão se ela não liga, cara?

LAÉRCIO
Pra gente ter certeza de que essa merda existe e que a gente não precisa dela.

GUILHERME
Hum. Que bosta.

ANDERSON
Flo-cos.

(longo silêncio enquanto eles chupam o sorvete; black-out)


CENA 6

(antes de alguém aplaudir pensando que a peça acabou, as luzes retornam; Guilherme está cozinhando e Anderson está lendo um livro)

GUILHERME
Ele esqueceu de comprar champignon. Vai ser sem mesmo.

(Laércio entra com Jonatas encapuzado)

GUILHERME
Caralho! Eu pensei que você ia avisar quando a gente fosse ter mais hóspedes. É assim de repente, é?

LAÉRCIO
Eu falei que não é premeditado. E dessa vez é uma surpresa pra você!

GUILHERME
O que?

LAÉRCIO
Ele é negro! (tira o capuz) Tchan, tchan, tchan! O nome dele é Jonatas. Peguei batendo na namorada.

JONATAS
O que é isso? Eu conheço os meus direitos!

(Laércio e Guilherme riem; inesperadamente Anderson atira na cabeça de Jonatas que cai morto; Laércio e Guilherme param de rir em choque)

LAÉRCIO
A inclusão é foda de acontecer, porra.

GUILHERME
Anderson, seu filho da puta.

ANDERSON
Filho da puta é uma expressão machista.

(black-out)

FIM






SENHOR, CADÊ O MEU MILHÃO?

PERSONAGENS
Sr. Rubens
Dominique
Ludmila

CENÁRIO: UM ESCRITÓRIO. A SALA DO CHEFE AO FUNDO.

PRÓLOGO

(sons de digitações e de gente negociando pelo telefone; alguma gritaria sobre contas à pagar; um som de sexo se mistura ao dia de trabalho na empresa; um foco destaca os personagens)

LUDMILA
Eu não preciso dizer que eu sou quem faz o café e tira o pó da máquina de xerox.

DOMINIQUE
Eu nem preciso dizer que eu estou aqui por indicação hereditária. Tenho um sangue bem validado em DNA e de grande valor regional. Paitrocínio, dizem.

SR. RUBENS
Eu sou o chefe.

LUDMILA
Eu nem preciso dizer que eu sou uma das poucas que tem a obrigação de fazer hora extra. Obrigação é modo de dizer, mas é obrigação sim. E a única quem teve que envolver sexo com profissão. E eu não tenho vergonha em falar isso.

DOMINIQUE
Eu fico porque eu sei ser puxa-saco. Não foi fácil ser foda, não é fácil ser foda... Não é fácil quando você envolve todo esse lance de pai, de ajuda financeira, na profissão que você escolhe pro resto da sua vida. Não é fácil não. It's not easy, man.

SR. RUBENS
O lucro é meu. Eu só assino uns papéis. Eu fico porque eu como a secretária. Clássico. Aqui é como se fosse a minha segunda casa. E o café dela é delicioso. É uma vida arriscada e comum.

LUDMILA
Eu sou a secretária fodida.

DOMINIQUE
Eu sou o que sabe de toda merda que acontece, mas bico calado porque é o patrão na terra e deus no céu. Os vínculos são muito maiores do que a gente pensa, em todos os ramos.

SR. RUBENS
Eu salvo as pessoas de suas misérias! Eu invisto, eu crio emprego. Eu dou salário de engenheiro pra uma simples secretária entregar café na sala de reuniões. Esse sou eu. Filantrópico capitalista! Por isso é que eu preciso de mais liberdade! Eu sou um investidor da continuação!

LUDMILA
Um salário de engenheiro que alimenta três filhos. Dois que vieram de um cara que tá preso pro tráfico e destruição do patrimônio público que nunca pagou o INSS. Então não, eu não recebo auxílio-reclusão. Um molecão que eu gostei na adolescência. O terceiro eu recebo uma pensão de merda. Essa sou eu.

DOMINIQUE
Eu sou o que pede chantily nos coffe breaks. Se possível, café gelado e pão de queijo com recheio de cheddar. Mamãe fez bom trabalho na educação do meninão...

SR. RUBENS
Salvar mulheres abandonadas e carentes...

LUDMILA
Expulsa de casa grávida e com um bebê de colo. Pai preso. Sem piedade familiar... puta, disseram... pé na sua bunda, ordinária!

SR. RUBENS
Salvando de seus destinos femininos...

LUDMILA
Quem nunca pensou: "onde eu tava com a cabeça?"? Me envolvi com o primeiro empresário rico que apareceu na frente. Paguei uma faculdade barata de administração nesses quatro anos. Uma costela quebrada, um olho roxo, um filho branco e uma pensão de cento e oitenta reais foi o preço.

SR. RUBENS
Amor e carinho. E dinheiro... ah, o dinheiro é sempre muito importante!

LUDMILA
Mulher e independente com três filhos pra criar sozinha! Tudo isso antes dos trinta, veja bem!

DOMINIQUE
Inglês, natação, teatro, Anglo, cursinho, baladas, viagens à Barcelona visitar o tio Pedro, pensão de quinhentos reais por mês e mais o salário que mamãe recebia pra ficar calada e ela nunca quis me falar o quanto era.

SR. RUBENS
A esposa fica em casa, a secretária no trabalho, as antigas na memória, e as putas no puteiro da Zona Sul. A prima Angela faz tempo que a gente não se vê. Enfim...

LUDMILA
Aí você entra em um prédio. Chique. O primeiro emprego pós formada. Você arruma o cabelo. E vai com a sua melhor roupa e com o currículo recém atualizado. É um banco para pessoas jurídicas. Você não é burra. Você é uma mulher inteligente e pode ocupar um cargo bacana na empresa. Você sabe como demonstrar segurança e vontade de prestar serviço...

DOMINIQUE
Mamãe fez uma chantagem básica como sempre fazia e papai me arrumou o emprego desde que ela mantesse o combinado. Não é o melhor cargo, mas é bom pra quem ainda tem vinte e quatro anos e nem terminou a faculdade ainda. Só falta o TCC. E o salário... é, não é lá grandes coisas, mas dá pra curtir o Guarujá nos fins de semana se mamãe emprestar uma graninha.

SR. RUBENS
Investimentos em ações e em empresas fantasmas é um risco absurdo que eu corro todo dia. Obviamente que o lucro não se reparte por igual, porque sou eu quem assino essa porra toda. Mas convenhamos, se não é o meu start inicial, mão de obra nenhuma, e muito menos buceta assanhada poderia falar alguma coisa ou pagar algum almoço nessa vida.

LUDMILA
Se não é uma buceta assanhada homem nenhum tem pau pra esquentar a água do próprio café.

DOMINIQUE
Acho que eu tenho uma balada pra ir hoje.

(realismo)

SR. RUBENS
Preciso que vocês dois quebrem esse galho pra mim essa noite. Depois vocês retiram o cheque bônus da comissão desse último final de semana lá no Recursos Humanos. Acho que eu caprichei pra vocês dois.

DOMINIQUE
Eu não acho que eu mereço tanto.

LUDMILA
Vocês vão querer mais café?

(mecanicamente os três encaram o público)

TODOS
Nossa atualização de vírus foi atualizada. Nossos relacionamentos estão nessa pilha de papel e nesses computadores. Nós-somos-uma-família.

(black-out)


CENA 1

SR. RUBENS
Venha aqui
Vem sorrir
Nesse mundo de amor e paciência
Pode vir
Colorir
Econômica ciência

LUDMILA
Eu odeio quando ele canta.

DOMINIQUE
Fala baixo que ele pode ouvir.

SR. RUBENS
Se você quer ter um milhão
Basta trabalhar sorrindo
Nunca falte a um compromisso
Você quer um milhão?
Então
Me ajude a ter o meu

DOMINIQUE
Ele tá feliz assim porque comprou um carro novo. Você viu?

LUDMILA
Jura? Não vi. Mas de novo? Não faz nem um ano.

DOMINIQUE
Eu vou ser como ele um dia.

LUDMILA
Uau. Super legal.

DOMINIQUE
Tô falando em comprar tudo. Andar de helicóptero...

LUDMILA
Mas você já não tem carro?

DOMINIQUE
Aquele já tá velho, né? E eu ganhei ele usado. Ele já era. Eu queria poder pedir um novo pro meu pai, mas ele acha que eu tenho que fazer por merecer agora.

LUDMILA
Não foi ele quem te deu esse?

DOMINIQUE
Sim, só o primeiro, né? Você não quer que meu pai fique me sustentando a vida toda, né? Que absurdo.

LUDMILA
Super absurdo.

DOMINIQUE
Eu acho que a gente tem que sair de baixo das asas dos nossos pais, sabe? Agora eu tenho que ralar na vida. A gente vai ficar dependente dos nossos pais quanto tempo ainda, né?

LUDMILA
Eu sei lá. Meu pai me colocou pra fora de casa quando eu tinha dezesseis.

DOMINIQUE
Sério? Nossa.

LUDMILA
Pois é. Desde lá eu não vejo nem ele e nem minha mãe.

(silêncio)

DOMINIQUE
Onde você aprendeu a falar inglês?

LUDMILA
Vendendo cocada pra gringo durante a Copa.

DOMINIQUE
Sério?

LUDMILA
E assistindo filme.

DOMINIQUE
Você vendia cocada?

LUDMILA
E assistia bastante filme inglês. Até conhecer meu segundo marido. Meu segundo marido era gringo. Aí eu fui fazer faculdade e me tornei uma assalariada em CLT com salário maior do que de um engenheiro no começo da carreira. Chupa essa manga na revolta da garota.

DOMINIQUE
Hum. Interessante. (pausa) Será que seu salário é maior que o meu? Fala aí, quanto que você ganha?

LUDMILA
Essas coisas não se falam.

DOMINIQUE
Eu tô tranquilo com o que eu recebo.

LUDMILA
Eu ralo pra caralho pra receber o que eu recebo.

DOMINIQUE
Você faz o mesmo que eu. Nosso trampo é de boa, vai. É só fazer umas ligações, escrever uns bagulhos...

LUDMILA
Eu tenho que fazer café, você não.

DOMINIQUE
Ah, não foi ele quem te mandou fazer café. Você faz porque você quer ser prestativa.

LUDMILA
Ele disse pra eu fazer.

DOMINIQUE
Disse nada. Foi uma brincadeira porque você é mulher.

LUDMILA
Eu entendi como uma indireta.

DOMINIQUE
E aí você abaixou a cabeça e aceitou? Se você não queria fazer não fizesse, oras.

LUDMILA
Eu preciso muito trabalhar aqui. Ninguém pagou escola de inglês pra mim. Eu não vou conseguir arrumar outro emprego pra dar a vida que eu tô dando pros meus filhos trabalhando aqui. Eu não tinha danone em casa. Eles já acostumaram agora.

DOMINIQUE
Entendi. Eu aposto que eu ganho mais que você.

LUDMILA
Bacana sua aposta.

(silêncio)

DOMINIQUE
Quanto que você ganha, vai? Fala aí.

LUDMILA
Não vou falar. Quanto que você ganha?

DOMINIQUE
Não vou falar também.

LUDMILA
Quanto será que ele ganha?

DOMINIQUE
Bastante. Mas ele gasta pra caralho com um monte de imposto. Você sabe. E manter um funcionário não é barato... E não interessa, eu tô perguntando pra você.

LUDMILA
Mas sem um funcionário ele não tem mão pra fazer mais dinheiro, não é mesmo?

DOMINIQUE
O governo pega muito imposto dos empresários hoje em dia. É o cúmulo.

LUDMILA
É, coitado. Deve ser duro ver esse dinheiro investido em coisa pública, pra gente pobre.

DOMINIQUE
Lá vem.

LUDMILA
Tirando os impostos que ele dribla, né?

DOMINIQUE
O que?

LUDMILA
As empresas dele. Tudo furada. Sonegamento total.

DOMINIQUE
Chiu! Cala a boca! Você tá louca, menina?

LUDMILA
Você já sabia, não sabia?

DOMINIQUE
Lógico que eu sabia, mas cale a boca.

LUDMILA
Ah! Ninguém tá ouvindo.

DOMINIQUE
Eu sei, mas não fica dando bandeira com essas coisas. (pausa) E tirando o dinheiro que o governo rouba também. Se não fosse essa merda de imposto pra se abrir uma firma nosso salário poderia ser maior.

LUDMILA
Será que ia ser maior mesmo? Ou o helicóptero dele que ia ter mais luxo?

DOMINIQUE
Eu... ainda acredito na bondade humana.

LUDMILA
E duvida que é de igual pra igual o que se sonega no mundo empresarial pros roubos do governo? É tudo misturado, esse povo, queridão. O sujo reclamando do mal lavado. Você sabe que ele já foi prefeito, né?

DOMINIQUE
Eu sei. Faz tempo. Eu lembro. Eu era moleque. Não dá muito dinheiro ser prefeito...

LUDMILA
Ah, não! Não tinha onde cair morto. E agora...

DOMINIQUE
Mas suou, hein.

LUDMILA
Suou mesmo?

DOMINIQUE
Suou sim.

LUDMILA
Sozinho?

DOMINIQUE
Não. Não sozinho. Mas...

LUDMILA
Então... cadê o meu milhão? Eu tenho suado. Suado duro. Cadê-o-meu-milhão?

(silêncio)

DOMINIQUE
É. Tem razão. Cadê o meu milhão também?

SR. RUBENS
Pode vir
Colorir
Econômica ciência


CENA 2

(Sr. Rubens está no telefone)

SR. RUBENS
Um milhão e novecentos mil na reforma de um quarto de hóspedes, querida? Eu sei que é o quarto que sua mãe fica, meu amor, eu não tô querendo ser mesquinho. Eu só não entendo por quê o tapete tem que ser aquele usado pela Tarsila do Amaral na época que ela morou na França, meu amor. Qual é o valor sentimental dela pra com isso, coração? Ela nem sabe quem é a Tarsila do Amaral, ela ficou encafifada com essa história do Abapuru e agora tá parecendo uma fã adolescente que quer comprar qualquer merda no Mercado Livre que o ídolo tenha usado. Ela não é mais nenhuma adolescente, é? Nossos filhos já estão criados pra gente ter esse tipo de preocupação. (pausa) O que? Não. É que eu não tô concordando de a gente gastar tudo isso num quarto que vai ser usado por mais quatro ou cinco anos no máximo, entendeu, amor? (pausa) O que eu quis dizer com o que? Não, eu não quis dizer que ela vá morrer em quatro ou cinco anos, meu amor, eu só não acho uma boa gastar tudo isso com uma besteira. Não, amor, eu não acho que a sua mãe seja uma besteira, mas por que que você não pega esse dinheiro e leva ela conhecer o Egito, por exemplo. Vai viajar. Abre uma franquia fina em um shopping. Vai ocupar a cabeça dela. Fica um mês em um hotel por aí, faz compras. Agora uma reforma dessas, meu amor... vai dar um trabalho muito grande. (pausa) Faz a reforma no apê do Rio já que você tá com ânsia de reforma. Lá compensa. Lá a gente vai sempre, o bairro é valorizado. Todo mundo vai usufruir da reforma e eu acho mesmo que ele precisa ser repaginado, modernizado um pouco, não tem nem Wi-fi na televisão da sala ainda, o Adriano já reclamou disso também porque ele não consegue conectar o vídeo-game. Isso, isso. Muda os gessos, coloca quadros novos. Eu escolho a decoração do nosso cafofo e você fica com o resto, fechado? Acho perfeito uma jacuzzi no banheiro de baixo. Acho ótimo, amor. Fica a vontade, pode arregaçar, você é meu amorzinho de Jesus. Depois a gente conversa mais, tá bom? Ah, só uma coisinha. Fala pro Alberto evitar a marginal hoje. Tá cheio de pedinte e gente fazendo malabarismo nos semáforos, não quero você envolvida. Esse bando tá acabando com a cidade. Fica de olho, querida. Ok. Um beijo. Eu também te amo. Tchau, thau.

LUDMILA
Ele tava falando com a vagabunda?

DOMINIQUE
Nossa. Pra que falar assim da Dona Lúcia?

LUDMILA
Ela só tá com ele porque ele tem dinheiro. É uma coitada, na verdade. Eu falo vagabunda porque ela não faz nada da vida, não vagabunda de xingamento de puta. Coitada.

DOMINIQUE
Você tem ciúmes dela.

LUDMILA
Eu? Ciúmes? Deus me livre dessa misericórdia de homem.

DOMINIQUE
Sei. Ela nem precisa trabalhar pra ter tudo...

LUDMILA
Acredite, querido. Pra trepar com ele tem que ter pagamento sim.

DOMINIQUE
Ué. E como você sabe disso?

LUDMILA
Ah... você acha ele bonito?

DOMINIQUE
Não, credo...

LUDMILA
Então.

DOMINIQUE
Mas eu sou homem...

LUDMILA
Você se acha mais bonito que o Brad Pitt?

DOMINIQUE
Não.

LUDMILA
Então você se acha mais feio que o Brad Pitt?

DOMINIQUE
Ué... acho que sim...

LUDMILA
Se você não se acha mais bonito que o Brad Pitt é porque você se acha mais feio que ele, não é? Se você acha isso, você acha que o Brad Pitt é mais bonito que você. Simples.

DOMINIQUE
É o que todo mundo acha. O que as mulheres acham...

LUDMILA
Então você, homem, consegue saber quando outro homem é bonito e quando ele é feio.

DOMINIQUE
Tá, consigo...

LUDMILA
Acredite no que eu tô te falando.

DOMINIQUE
Tá. Eu entendi.

(silêncio)

LUDMILA
E você nunca reparou no bafo dele?

DOMINIQUE
De quem?

LUDMILA
De quem? Do Brad Pitt. Dele, caralho! Dá pra sentir de longe.

DOMINIQUE
Ah, já. É por causa do café e do cigarro. E ele é velho já, né?

LUDMILA
Nojento demais.

DOMINIQUE
Sei.

LUDMILA
Eu acho.

DOMINIQUE
Se ele te oferecesse uma grana você não beijaria ele?

LUDMILA
O que?

DOMINIQUE
Por grana? Por um milhão de reais? Um beijo por um milhão de reais.

LUDMILA
Você beijaria?

DOMINIQUE
Ah, eu sou homem...

LUDMILA
E por que eu sou mulher eu tenho a obrigação de ter uma opção nisso? Nem por um milhão você beijaria outro homem?

DOMINIQUE
Talvez se fosse o Brad Pitt...

LUDMILA
Viu só? Arrasou!

DOMINIQUE
Mas se ele te falasse hoje. Um milhão. Você beijaria ou não beijaria?

LUDMILA
O Brad Pitt até de graça.

DOMINIQUE
Não. Ele!

LUDMILA
Você beijaria se você fosse mulher?

DOMINIQUE
Ah, acho que por um milhão todo mundo beijaria...

LUDMILA
Eu de jeito nenhum. Eu tenho respeito por mim mesma.

DOMINIQUE
Hum.

LUDMILA
É verdade.

(silêncio)

DOMINIQUE
Fodida, hein?

LUDMILA
Não sei o que você quis dizer com isso.

SR. RUBENS
Ludmila, prepara o café pra gente, por favor.

LUDMILA
Sim, claro, Seu Rubens.

SR. RUBENS
Obrigado, querida.

(silêncio)

DOMINIQUE
"Sim, claro, Seu Rubens".

LUDMILA
Cala a boca, otário. Você também fica cheio de nhé-nhé-nhém quando tá perto dele.

DOMINIQUE
Fico nada. A gente conversa de igual pra igual.

LUDMILA
Que mentira! Para de ser mentiroso! Você é super puxa-saco.

DOMINIQUE
Não fui eu quem ficou com o cargo de fazer café porque quis puxar o saco depois de uma brincadeirinha boba.

LUDMILA
Ele deixou claro que essa era a minha função.

DOMINIQUE
Imagina! Vocês mulheres sempre exageram na hora de contar um acontecimento.

LUDMILA
Cale a boca.

DOMINIQUE
Vocês reclamam de serem abusadas, mas vocês abaixam a cabeça...

LUDMILA
Você não sabe do que você tá falando, Dominique.

DOMINIQUE
Exageradas!

LUDMILA
(se irrita seriamente) Exagerada é o meu caralho! Você não sabe um pingo do que é ser abusada, do que é ser enganada, do que é ser iludidada! Você-não-sabe!

(clima; silêncio)

SR. RUBENS
Tá tudo bem aí?

DOMINIQUE
Tá tudo ótimo. Melhor impossível.

LUDMILA
O café já vai ficar pronto.

SR. RUBENS
Preparem-se para a minha pausa.

LUDMILA E DOMINIQUE
Ok.

DOMINIQUE
Obrigado, seus lindos. Olha o milhão!

(silêncio)

LUDMILA
(mais calma) ...porque você é homem.

DOMINIQUE
Tá bom. Não vamos discutir. (pausa) A sua vida não é o centro do universo, moça.

LUDMILA
Você sempre vem com umas frases no meio da conversa que eu nunca entendo.

DOMINIQUE
Eu conheço a minha vida. Eu não conheço a sua.

LUDMILA
E eu conheço a minha. E não conheço a sua. Mas pelo que parece...

DOMINIQUE
Não! Você não conhece a minha...

LUDMILA
Filhinho de papai que teve aulinhas de teatro e natação e que já tinha um cargo garantido... coitadinho do pobre menininho que nunca precisou fazer malabarismo no trânsito pra poder comer o seu doce danoninho e ter as suas aulinhas de inglês garantidas para um bom futuro promissor talvez no empreendedorismo ou na política...

DOMINIQUE
Você falando assim até parece que foi fácil.

LUDMILA
Foi fácil!

DOMINIQUE
Você não sabe...

LUDMILA
(se irrita novamente) Foi fácil! Foi super fácil! Foi fácil pra caralho, seu moleque! No dia que meu pai me chutou pra fora de casa eu tive que dormir na rua com uma criança e uma barriga prenha. Eu fiquei por seis dias morando na rodoviária e pedindo esmola pra conseguir comida pra mim e pro menino e pra barriga. Foi fácil pra caralho! Minha salvação foi uma mulher dona de um empreendimento de venda de corpos de moças que ficou com pena de mim e da minha condição e que me colocou pra limpar o puteiro depois de usado em troca de abrigo. E eu não era puta não. A velha me poupou de ser puta, a lazarenta não queria, mesmo quando eu ofereci. Pois antes que fosse trepando do que limpando gozo dos outros! Mas a lazarenta olhou na minha cara e disse assim: "Isso aqui não é vida pra você. Dá seus pulos, garota. Vai embora!" Eu botei na cabeça que queria fazer faculdade a todo custo, com dois filhos pequenos e tudo o mais. E você pensa que eu tive papai pra bancar? Eu tive bosta! Eu arrumei um velho babão e rico e fiz ele pagar a minha faculdade mesmo. Ele pagava babá pra ficar com os meus filhos e tudo o mais. Eu tive que ralar muito dessa xota pra você falar que sua vida é difícil, garoto. Se enxerga!

(silêncio)

DOMINIQUE
Ninguém mandou abrir a perna.

LUDMILA
Seu...!

(Ludmila avança em Dominique, mas se segura quando Sr. Rubens avança pela sala entre eles)

SR. RUBENS
Minha pausa, meus amores. Vamos conversar sobre o mundo um pouquinho. Um cigarrinho, Dominique.

(Dominique entrega)

SR. RUBENS
Muito obrigado, Dominique. Um cafézinho, Lud-Lud.

(Ludmila serve)

SR. RUBENS
Obrigado, Lud-Lud. Vamos até ali.

(eles dançam ridiculamente até a área de fumantes)


CENA 3

(eles se agrupam em um cantinho)

DOMINIQUE
(baixo) Lud-Lud?

LUDMILA
Cale a boca.

SR. RUBENS
Bem, meus amados. Eu adoro esse momento nas nossas vidas. É o momento extra conjugal de um colaborador. É quando a família enfim conversa sobre o mundo, sobre a vida e sobre os crescimentos econômicos e a página de valores. Vocês, meras formiguinhas jamais entenderão o sentimento de alguém que coloca a lenha na fogueira, o sentimento do que é ser rainha e do que é ter a bunda maior do que as outras de sua espécie porque é dali que nascem os ovinhos. Imaginem essa bunda grande. Vocês não sabem. Vocês nunca saberão. Os ovinhos são vocês operárias sendo criadas e me trazendo alegria com esse acontecimento divino que é o nascimento de formiguinhas ordinárias. Não sei se vocês conseguem me entender, mas eu tenho muito o que passar para as gerações futuras, com o liberalismo econômico em ascendência, com a chuva do clamor popular por menos impostos e mais garantias para que nós empresários e empregadores possamos pagar um melhor champagne, um melhor quarto de hotel. Um formigueiro não se faz sem organização hierárquica, meus amores. E quem decide isso? Deus! Deus decide quem vai ficar no topo da tabela periódica e quem vai ficar na parte de baixo. Não sou eu quem disse. Eu não sou um gênio da computação, mas eu entendo muito bem que não podemos salvar todas as formiguinhas, não é mesmo? Algumas precisam ser pisoteadas para que outras aprendam que não se deve chegar perto dos humanos. É como num jogo de xadrez. Algumas peças precisam ser sacrificadas para manter a integridade do rei, seja ela uma torre ou um cavalo. E veja bem, no final das contas quem é o mais perseguido nessa história toda? O peão? Você? Você é o mais perseguido nessa história toda? Nada disso, meus amigos. O mais perseguido sou eu. Porque a inveja derruba qualquer um. A força da inveja que os malditos comunistas possuem da riqueza alheia tem a força de um tornado do outro lado do mundo. Guerras podem acontecer em nome da inveja. Algumas pessoas acreditam que é fácil, é só assinar algumas papeladas e beber. Não é como ir daqui até Campinas. Pra comprar um terno bom você precisa ir pra Miami. Cansa, sabe? Não é uma vida fácil. Não tem como a gente fazer isso se a máquina não estiver se sentindo satisfeita, se não houver um retorno por parte dos colaboradores. É uma combinação perfeita de satisfações. Vocês se contentam com a vida que possuem e nós nos contentamos com a vida que possuímos. Cabeças de bois não são cortadas simplesmente por um fazendeirinho de merda. Esse cara segura o boi. Você tem que ser um bom fazendeiro como eu pra ter cu! Que joga esterco na cabeça de índio pra mostrar quem manda nessa merda! Que mata cabra que invade o sítio nosso! Mato sim!Porque se você acha que deve protestar pelos direitos que acredita ter, quem sou eu pra te impedir? Mas faça-me o favor de não atrapalhar o trânsito. Já são helicópteros demais nessa cidade, e se todo mundo quiser ter um isso daqui vai virar um inferno! É bom que mantenhamos a civilidade e a balança para que o mundo gire melhor, sem guerras em nome do patrimônio alheio. Vocês jovens são gananciosos demais, essa é uma geração bastante perigosa que você não pode nem fazer piada contra preto ou contra viado. Onde nós vamos parar, não é mesmo? Está escrito no Apocalipse sobre esse nosso tempo. Tem gente querendo roubar o danoninho da nossa geladeira, meus queridos. O pior cego é aquele que não quer ver. Abram os olhos.

(silêncio; eles apagam o cigarro e tomam o último gole do café sincronizados)

SR. RUBENS
Obrigado, meus amores, por esse momento maravilhoso em comunhão e confraternização da nossa linda e magnífica família! Mas lembrem-se sempre: vocês são só mais uma parte dela. Assim como eu. Obrigado pelo cigarro, Adriano, obrigado pelo café, Lud-Lud. Agora voltem aos papéis. O porteiro tem que ir embora às dez. Se a apressem pra fazer mais milhão.

(todos eles encaram a plateia mecanicamente)

TODOS
Agora voltem aos papéis
O porteiro tem que ir embora às dez
Se apressem pra fazer mais milhão

Cadê o meu milhão? Senhor, cadê o meu?
Se esse é seu, cadê o meu? Meu deus, perdeu o meu
Cadê o meu, Senhor? Milhão, cadê o meu?
Apresse o seu, apresse o meu, o meu parece que perdeu
Senhor, onde é que está?

(Sr. Rubens retorna à sua mesa)

DOMINIQUE
Ele me chamou de Adriano.

LUDMILA
São muitos funcionários pra ele lembrar do nome de todo mundo.

DOMINIQUE
Ele sabe o meu nome.

LUDMILA
Ele já tá velho, deve ter confundido... (pausa) Tem algum Adriano que trabalha aqui?

DOMINIQUE
Não tem não.

LUDMILA
Tá caduco já. Você consegue acompanhar o raciocínio dele? Eu não consigo. Eu fico tremendo na base. Como ele consegue, né? Ser tão pequenininho e tão imponente. Acho que deve ser o tamanho da cabeça que faz isso com a gente. Eu meio que fico sem reação perto dele. É quase como um medo. Parece que se ele ficar bravo é capaz de matar só com o olhar. Deve ser por conta de ele ser muito educado, no fim das contas. É uma ilusão.

DOMINIQUE
Eu converso de igual pra igual.

LUDMILA
Eu vi como você falou pra caralho.

(silêncio)

DOMINIQUE
Fiquei chateado.

LUDMILA
Ele estava viajando na onda do cigarro. Não dê bola pra isso.

DOMINIQUE
Você não entende. Ele não podia ter esquecido do meu nome.

LUDMILA
Até pai às vezes confunde o nome do próprio filho. O que você queria?

DOMINIQUE
Eu não queria nada. Você acha que a minha vida foi fácil, mas você não viveu ela.

LUDMILA
Meu querido, depressão é coisa de gente rica. Aqui do meu lado, se você não correr atrás você morre.

DOMINIQUE
Eu não vou discutir com você.

LUDMILA
Não tem o que discutir.

DOMINIQUE
Você conhece o seu lado e eu conheço o meu.

LUDMILA
Eu falo sobre o meu lado e você fala sobre o seu.

DOMINIQUE
Exatamente. Eu falo sobre mim e você fala sobre você.

LUDMILA
Exatamente.

SR. RUBENS
(interrompe) Meus amores, o que dói mais: Eu furar o meu dedo com esse alfinete ou eu arrancar um braço de vocês com uma motosserra?

LUDMILA
Ah... eu...

DOMINIQUE
Você arrancar um braço nosso com uma motosserra?

SR. RUBENS
Errado. Em mim, dói mais o alfinete no meu dedo. Obviamente que em vocês a motosserra deve doer pra cacete, mas a minha perspectiva do caso é reclamar da dor da alfinetada. Essa é a minha dor. Eu não estarei conseguindo sentir a dor de um braço decepado por uma motosserra, porque não sou eu. Vocês conseguem entender a analogia?

DOMINIQUE
Sim, senhor. Foi muito perfeita.

LUDMILA
Perfeitíssima.

SR. RUBENS
Obrigado. Podem voltar ao trabalho.

DOMINIQUE
Obrigado, senhor.

(silêncio)

DOMINIQUE
Eu fiquei bastante chateado.

LUDMILA
Deixa de ser besta. Você não pode confundir o lado sentimental e pessoal com o profissional, meu querido. Nunca te disseram isso antes?

DOMINIQUE
Disseram sim. (pausa) Você consegue?

LUDMILA
O que?

DOMINIQUE
Separar o sentimento da razão?

LUDMILA
Nossa, que frase bonita. "Separar o sentimento da razão".

DOMINIQUE
É.

LUDMILA
Acho que tem horas que eu não tenho escolha.

DOMINIQUE
Hum.

(silêncio)

DOMINIQUE
Mas se as coisas dependem da gente, então elas dependem das nossas escolhas, não?

LUDMILA
A maioria dos momentos são bifurcações que nem sempre tem dois lados, entende? Tem hora na vida que a vida te enfia uma continuação goela abaixo mesmo sem você querer.

DOMINIQUE
Sei.

LUDMILA
Fique tranquilo, cara. Você é bonito. Tem chance ainda.

DOMINIQUE
Chance do quê?

LUDMILA
De conseguir ganhar um milhão. Eu já passei dos trinta, tenho três filhos pra criar ainda... ixi, é complicado.

DOMINIQUE
Ganhando o que eu ganho vai demorar.

LUDMILA
Acredite. Você está acima da média desde que nasceu. Você é um garoto de sorte.

DOMINIQUE
Você não sabe da minha vida.

LUDMILA
Tá bom.

(silêncio)

DOMINIQUE
Talvez seria mais rápido se eu fosse pelo caminho da herança.

LUDMILA
O que?

DOMINIQUE
Nada. (pausa) Quanto que você ganha por mês, hein?

LUDMILA
Por que você quer saber?

DOMINIQUE
A gente começou a trabalhar aqui quase juntos. Eu queria saber se recebemos proporcionalmente pelo serviço.

LUDMILA
E essa dúvida tá te incomodando por qual motivo?

DOMINIQUE
Sei lá. A gente passa tanto tempo junto que eu acho que esse tipo de intimidade é válido de alguma forma.

LUDMILA
Você tem medo de receber menos que eu porque eu sou mulher.

DOMINIQUE
Não é nada disso. Mas eu não acharia justo.

LUDMILA
E por que não? Eu poderia muito bem receber mais do que você.

DOMINIQUE
Não seria justo porque a maioria das transações e novas apostas contempladas sou eu quem faço. Você até que é boa no que faz, mas todo mundo aqui sabe que eu sou o melhor nessa parada. Nós temos aqui no nosso ranking quem bate a meta primeiro todo mês. E quem é? Sou eu. Cafézinho nenhum chega aos pés disso.

LUDMILA
Digamos que o Sr. Rubens tenha se comovido com a minha história de vida e que porque eu tenho três filhos pra criar e sou uma mãe solteira ele tenha decidido me dar um bônus como forma de incentivo.

DOMINIQUE
Pff... Imagina.

LUDMILA
Isso seria doloroso pra você?

DOMINIQUE
Ele nunca faria isso.

LUDMILA
Como você sabe?

DOMINIQUE
Ele odeia esse papinho socialista. Não faria isso sem algo em troca.

LUDMILA
Ouvi dizer que ele é cristão. Que ele costuma ir na igreja com a Dona Lúcia de vez enquando. Quem sabe se ele não tenha tido um pouco de compaixão na hora que me contratou?

DOMINIQUE
Você realmente acha que um empresário querendo contratar mão de obra qualificada o mais barato possível faria isso por uma desconhecida?

LUDMILA
Não é você que ainda acredita na bondade das pessoas?

DOMINIQUE
Não desse tipo. Não sem te conhecer antes. Se ele é pão duro até comigo duvido muito que ele faria isso sem você dar algo em troca pra ele. A não ser que você dê algo em troca pra ele.

LUDMILA
Eu não sei o que você está querendo insinuar com isso.

DOMINIQUE
Não sabe, é?

LUDMILA
Seria clichê demais. O chefe e a secretária. Seja mais original.

DOMINIQUE
Aham.

LUDMILA
E como assim 'até comigo'? Você é mais especial que eu porque bate a meta primeiro? Eu nunca deixei de bater a meta.

DOMINIQUE
Porque... por nada.

LUDMILA
Ele nunca esquece do meu nome.

DOMINIQUE
Cala a boca.

LUDMILA
Eu acho que eu recebo mais do que você.

DOMINIQUE
Eu acho que não. O Sr. Rubens é das antigas. Ele não iria deixar que uma mulher recebesse mais pelo mesmo serviço.

LUDMILA
Eu já disse. Eu não sou uma qualquer, eu faço o cafézinho.

DOMINIQUE
Eu acho que eu tiro uns trezentos, quatrocentos pila a mais que você aqui.

LUDMILA
(ri) Eu acho que eu recebo mil reais a mais que você.

DOMINIQUE
Fala sério. Eu tô falando do salário. Fora a comissão.

LUDMILA
Fora a comissão mesmo.

DOMINIQUE
Eu tenho certeza que eu tiro mais.

LUDMILA
Bom, se você falar quanto que você ganha dele eu falo.

DOMINIQUE
Não, você vai mentir.

LUDMILA
Não vou. Eu prometo falar a verdade.

DOMINIQUE
Eu não vou falar.

LUDMILA
Então eu também não vou falar.

SR. RUBENS
(interrompe) Lud-lud, prepara para a nossa pausa no arquivo-morto.

LUDMILA
Ok, Seu Rubens.

(silêncio)

DOMINIQUE
O que tanto vocês vão fazer lá no arquivo-morto toda vez, hein?

LUDMILA
Eu já te disse. Ele quer ficar falando sobre o universo, sobre o que ele acha sobre política e tudo o mais.

DOMINIQUE
Sei.

LUDMILA
É sério. Ele sempre separa algumas transações de cinco anos atrás pra ficar remexendo nas lembranças dos milhões que ele já gastou. É um saco.

DOMINIQUE
Deve de ser. E ele nunca deu em cima de você? Já que vocês ficam sozinhos tanto tempo.

LUDMILA
Imagina. E eu nem dou oportunidade pra isso. Se ele faz uma coisa dessa eu meto processo na empresa. E funcionária agredida sexualmente é o maior escândalo possível.

DOMINIQUE
Sei.

SR. RUBENS
(entra) Vamos lá, meu amor?

LUDMILA
Vamos, Seu Rubens.

SR. RUBENS
Já trago sua amiga de volta, Dominique.

DOMINIQUE
Não tem pressa, senhor. Fiquem à vontade.

(eles saem)

DOMINIQUE
Demorem o quanto quiserem.

(Dominique vai até a mesa de Ludmila e vasculha nas gavetas)

DOMINIQUE
Um holerite... só unzinho... ahá! (ele encontra um papel) Filha da puta. Só porque ela é puta! Não é justo ela ganhar mais do que eu que sou filho do lazarento. Ela ganha mais mesmo contando com a pensão. Lazarenta! Ela... é... só uma mulher... só porque tá abrindo as pernas... filha de uma puta!

(Dominique se interessa pela mesa do Sr. Rubens, mas fica com receio de se aproximar; se certifica de que ninguém está olhando e corre mexer nas gavetas; ele encontra um papel e abre a boca de susto quando descobre os números)

DOMINIQUE
Puta-que-o-pariu!

(black-out)


CENA 4

(um foco em cada mesa)

DOMINIQUE
Senhor, me compre um carro do ano
Meus amigos já andam, eu preciso ser humano
Trabalhando a vida toda, sem ajuda de ninguém
Senhor, me compre uma Mercedes Benz

LUDMILA
Senhor, me compre uma TV 3 Digital
Me inscrevi no Sílvio Santos, por favor seja legal
Prove que me ama e me arrume um milhão
Senhor, não quero uma TV da promoção

SR. RUBENS
Senhor, me compre uma noitada na cidade
Me apego no senho, eu trabalho de verdade
Eu espero pela entrega, eu conto até três
Senhor, me compre, agora é minha vez

TODOS
Senhor, me compre um carro do ano
Meus amigos já andam, eu preciso ser humano
Trabalhando a vida toda, sem ajuda de ninguém
Senhor, me compre uma Mercedes Benz

DOMINIQUE
Eu sou daquele tipo renegado. Que teve que viver na surdina. Que não pegou o sobrenome do pai em nome de um acordo verbal. Um filhote fora do casamento sustentado às migalhas.

LUDMILA
Eu sou uma mulher independente que fez o caminho da minha vida com o que apareceu pela frente. Eu não tenho vergonha. Não acho que eu deva ter vergonha de nada. Tudo o que eu fiz foi porque eu sempre fui sozinha. E acredite, meu colega: tá todo mundo bem sozinho.

SR. RUBENS
Eu quem penetro... digo, invisto. (arrota)

DOMINIQUE
Essas empresas costumam ser um banco de fachada. É como se fosse um banco de pessoa jurídica, mas por de trás existe uma máfia nas apostas de ações de diversos ramos. Até no ramo artístico, ora vejam! E nesse caminho fantasma, meus queridos, é como a Deep Web da Internet. Rola de tudo. É uma quantia de dinheiro que até agora a pouco eu não poderia imaginar.

LUDMILA
Você acha que você venceu na vida porque ganha cinco mil reais? Você não tem noção do que os ricos realmente estão fazendo com a real riqueza monetária. Eles estão enfiando nos cus.

SR. RUBENS
Vocês, formigas, representam os noventa e nove por cento. Se aglomerem e se salvem, seus lindos! Vivam juntos em paz e harmonia! Trabalhem e conquistem! Quem sou eu pra impedir a felicidade do povão, não é mesmo?

DOMINIQUE
Quando você achava que falavam de milhões de reais e daí você descobre que esses milhões são bilhões de reais anuais, nesse dia você fica puto com a parte que você recebe do montante. Não porque você seja um cara mesquinho, é que você começa a questionar o valor do seu suor nessa merda.

LUDMILA
Suor? (gargalha) Noventa e nove por cento de mixaria, mas aquele um por cento, ah, aquele um por cento tem tudo o que quiser na vida.

SR. RUBENS
Próxima parada. Lua! Já começaram as viagens espaciais e eu serei um dos primeiros bilionários a passar as férias em outro planeta. Diz que fizeram um campo de golfe em uma cratera.

DOMINIQUE
Papai ganha bilhões de reais por ano pra não fazer nada sentado na porra de uma cadeira, comendo a coitada da secretária, e eu nem posso chamá-lo de pai, ou nem posso abraçar os meus irmãos, ou mesmo me gabar que eu sou filho dele, e nem pensar numa possível herança porque eu sou o filho escondido, o estorvo da camisinha estourada, o filho bastardo que foi comprado num acordo financeiro que vai ficar de lado nessa coisa que se chama família e nessa coisa que se chama amor de pai, porra! Amor de pai... carinho de pai...  "Ah, você teve de tudo. Papai te deu tudo." Foi. (pausa) Mas ele não me deu nem um por cento do que ele ganha.

(o realismo retorna bruscamente; barulho de um dia agitado em escritório; Ludmila trabalha em alguns papéis e Sr. Rubens em sua sala; Dominique está visivelmente perturbado)

LUDMILA
Nossa. O que aconteceu com você hoje? Você foi assaltado ou algo do tipo?

DOMINIQUE
Algo do tipo.

LUDMILA
Você tá com uma cara...

DOMINIQUE
Foi boa a trepada de ontem?

LUDMILA
O que?

DOMINIQUE
Vamo ser direto nessa porra. Eu sei o que vocês vão fazer no arquivo-morto.

LUDMILA
Você tá louco. Eu já falei o que eu...

DOMINIQUE
Para de mentir. Pode parar. Eu sei.

LUDMILA
Você não sabe de nada. Você tá viajando...

DOMINIQUE
Você gosta dele? Você gosta de dar pra ele?

LUDMILA
Você me respeita, seu moleque. Eu não faço esse tipo de coisa.

DOMINIQUE
(quase grita) Para de mentir! Não precisa mentir pra mim. Eu sei que você trepa com ele, caralho. Eu já vi você trepando com ele. Um dia inocentemente eu estava passando lá pelo arquivo-morto e eu vi. Agora chega dessa cena. (pausa) Você gosta dele? Você tem algum carinho por ele?

LUDMILA
Eu tenho três filhos pra criar...

DOMINIQUE
Não foi isso que eu perguntei.

(silêncio)

LUDMILA
Não. Eu tenho asco. Mas eu não posso me dar esse luxo. Não agora. Me julgue.

DOMINIQUE
Eu não vou te julgar.

LUDMILA
O que você quer? O que você tem hoje?

(silêncio)

DOMINIQUE
Você realmente recebe mais do que eu. Mas perto do que ele tira com o nosso trabalho também não chega a nem um por cento.

(silêncio)

LUDMILA
O que você quer?

DOMINIQUE
Ele é meu pai. Parece novela mexicana, mas ele é meu pai. Ele fez um acordo com a minha mãe pra me dar uma vida digna, mas que ele não ia me assumir, que era pra gente ficar em silêncio sobre a paternidade e que ele me daria todos os meios cabíveis de sucesso e conforto. Eu achava que estava tudo bem até que eu vi que papai não é só milionário. Papai é trilionário. Papai faz milhão por semana. E ele me paga quinhentos reais de pensão.

(silêncio)

LUDMILA
Tá. E o que tem?

DOMINIQUE
Eu estive pensando... um teste de DNA facilmente comprova que eu sou filho dele. E mesmo depois de morto é possível fazer esse tipo de teste e aí eu entraria na lista de herdeiros. Eu nunca tive amor nenhum por ele mesmo. (pausa) Eu te dou um milhão se você me ajudar.

LUDMILA
Ajudar? Mas ajudar em quê?

(black-out rápido)

(um tiro)

(quando as luzes retornam, Sr. Rubens está caído baleado e Dominique com uma arma na mão)

LUDMILA
Cadê o meu milhão?

DOMINIQUE
Agora é a hora de você fazer a cena.

(Ludmila se destaca em um foco, instantaneamente aos prantos)

LUDMILA
Eu não aguentava mais! Eu pedia pra ele parar, eu pedia pra ele me demitir. Ele dizia que se eu fugisse dele ele ia me encontrar e ele ia me matar... Ele falou que ia fazer mal pros meus filhos se eu contasse pra alguém... Eu estava com medo... eu... (chora) Eu não aguentava mais essa humilhação... foi aí que eu peguei a arma que ele guarda na gaveta e atirei.

DOMINIQUE
Esse homem iludiu a minha mãe, estuprou ela, bateu nela, teve um filho com ela e pagou o silêncio, pagou pra ela calar a boca. Ele me manteve na surdina por vergonha e por medo que a família soubesse do filho fora do matrimônio. Eu estou disposto a fazer o exame de DNA pra comprovar isso.

(Sr. Rubens se levanta naturalmente)

SR. RUBENS
Realmente, você não leva nada com você depois que você morre. (sai em silêncio)

LUDMILA
Cadê o meu milhão, Dominique?

DOMINIQUE
Calma, querida. Você já se livrou da acusação. Você matou ele por legítima defesa.

LUDMILA
Eu quero saber do dinheiro.

DOMINIQUE
Você já matou alguém antes? Eu nunca tinha matado ninguém antes. Eu até que tô me sentindo bem.

(Ludmila aperta play em um gravador)

VOZ DE DOMINIQUE
Você já matou alguém antes? Eu nunca tinha matado ninguém antes. Eu até que tô me sentindo bem.

DOMINIQUE
O que é isso?

LUDMILA
Toda a nossa conversa está sendo enviado pro meu e-mail. Se você pular fora do nosso trato eu conto tudo.

DOMINIQUE
Calma, Lud-Lud. Eu vou cumprir com o nosso trato. O pessoal só tá esperando sair o resultado do exame pra gente começar a conversar sobre quem vai ficar com o quê. Eu tô pensando em abrir uma ONG pra ajudar pessoas carentes.

LUDMILA
Jura que agora você é desse tipo socialista?

DOMINIQUE
Dizem que dá pra ganhar uma bolada com essas ONGs, tudo sem pagar imposto. (pausa) O que? Eu tenho que investir o meu dinheiro, né? Ou eu poderia abrir uma igreja.

LUDMILA
Eu só quero saber do meu milhão.

DOMINIQUE
A carta com o resultado do exame está pra chegar. Acalme-se, querida.

LUDMILA
Há chances de esse exame dar negativo, Dominique?

DOMINIQUE
De jeito nenhum. Ele mesmo sabia que ele era meu pai.

LUDMILA
Ou ele não queria fazer nenhum escândalo por causa de quinhentos reais e aulinhas de inglês.

DOMINIQUE
Minha mãe não é desse tipo, tá bom?

LUDMILA
Qual tipo? Que gosta de sexo?

DOMINIQUE
Que não teria certeza de quem é meu pai.

LUDMILA
Veja lá, hein.

(uma campainha)

DOMINIQUE
Deve ser o resultado. Pegue o telefone e ligue pro Jorge. Só apertar o último discado.

LUDMILA
Quem é Jorge?

DOMINIQUE
O meu advogado.

(Dominique sai e retorna com um envelope; um foco destaca Sr. Rubens)

SR. RUBENS
Pior do que você chegar no fim da vida sem ter conseguido fazer tudo o que você queria fazer, é você não saber o resultado final de um exame de DNA. Nem todo mundo vai conseguir juntar um milhão de reais nessa vida, meus amores. Aceita que dói menos.

LUDMILA
E aí? Deu negativo ou deu positivo?

DOMINIQUE
Vamos ver...

(black-out)


CENA 5

(um foco celestial em Sr. Rubens)

SR. RUBENS
Venha aqui
Vem sorrir
Nesse mundo de amor e paciência
Pode vir
Colorir
Natureza e ciência

Se você ainda tem um coração
Se é amor que está sentindo
Vamos sermos mais amigos
E ter compaixão?
Então
Te ajudo

(sereno e falso) Redenção. É bosta, é brega, mas existe. Se por um acaso existir essa pós-morte na vida real como é na ficção, poderíamos ouvir os arrependimentos de quem se foi. Daria tempo de a gente saber o que foi aprendido com a dor de fim da vida. Se morreu injustiçado ou se morreu fazendo justiça. Todos nós somos seres complicados e merecemos atenção especial na individualidade de cada ser. É natural que tenhamos medo, que planejemos assassinatos por dinheiro. Eu paguei com a morte tudo o que eu deveria ter feito em nome da continuação da nossa evolução como sociedade, mas que eu preferi viver na ambição e no egoísmo financeiro de uma vontade de gozar mais uma vez com uma punheta banhada de ouro dentro de uma jacuzzi feita com o marfim que algum filho da puta arrancou de um elefante! (pausa) De repente a gente pode passar pelo milagre de pensar melhor no que a gente quer. De pensar melhor no que é melhor pra todo mundo, pro planeta inteiro, e não só pra um por cento, só pro seu país, só pra quem tá dentro da sua casa, pra quem tem o seu nome. São noventa e nove por cento de coisas que respiram e que querem existir, você consegue me entender? Que é melhor morrer do que matar. Que é melhor e muito mais gostoso andar de descalço do que viver a vida comprando sapato novo, sapato caro. E pulando as porras das formiguinhas, pra que matar as formiguinhas? O que você tem contra as formiguinhas? (pausa) Você vai ficando retardado quando você começar a olhar a vida depois da morte, ninguém sabe realmente o que é isso. Você fica mais próximo de um grupo de carbono e da transformação do oxigênio, quando seu DNA se recicla no universo; e aí a viagem é bastante quântica. Não existe dinheiro nessa viagem, não tem essas merdas de troca, é tudo uma conexão eletrônica só. E esse resto de fio de memória do que eu existia vai se perguntar quando ele se lembrar da humanidade que ele teve um dia: valeu a pena ter morrido em nome de dígitos no banco e por luxos ridículos e infantis? Valeu a pena? Será que valeu a pena? (pausa) Será que realmente valeu, cara?

(a luz cai em resistência)

(black-out)


FIM