SENHOR, CADÊ O MEU MILHÃO?

PERSONAGENS
Sr. Rubens
Dominique
Ludmila

CENÁRIO: UM ESCRITÓRIO. A SALA DO CHEFE AO FUNDO.

PRÓLOGO

(sons de digitações e de gente negociando pelo telefone; alguma gritaria sobre contas à pagar; um som de sexo se mistura ao dia de trabalho na empresa; um foco destaca os personagens)

LUDMILA
Eu não preciso dizer que eu sou quem faz o café e tira o pó da máquina de xerox.

DOMINIQUE
Eu nem preciso dizer que eu estou aqui por indicação hereditária. Tenho um sangue bem validado em DNA e de grande valor regional. Paitrocínio, dizem.

SR. RUBENS
Eu sou o chefe.

LUDMILA
Eu nem preciso dizer que eu sou uma das poucas que tem a obrigação de fazer hora extra. Obrigação é modo de dizer, mas é obrigação sim. E a única quem teve que envolver sexo com profissão. E eu não tenho vergonha em falar isso.

DOMINIQUE
Eu fico porque eu sei ser puxa-saco. Não foi fácil ser foda, não é fácil ser foda... Não é fácil quando você envolve todo esse lance de pai, de ajuda financeira, na profissão que você escolhe pro resto da sua vida. Não é fácil não. It's not easy, man.

SR. RUBENS
O lucro é meu. Eu só assino uns papéis. Eu fico porque eu como a secretária. Clássico. Aqui é como se fosse a minha segunda casa. E o café dela é delicioso. É uma vida arriscada e comum.

LUDMILA
Eu sou a secretária fodida.

DOMINIQUE
Eu sou o que sabe de toda merda que acontece, mas bico calado porque é o patrão na terra e deus no céu. Os vínculos são muito maiores do que a gente pensa, em todos os ramos.

SR. RUBENS
Eu salvo as pessoas de suas misérias! Eu invisto, eu crio emprego. Eu dou salário de engenheiro pra uma simples secretária entregar café na sala de reuniões. Esse sou eu. Filantrópico capitalista! Por isso é que eu preciso de mais liberdade! Eu sou um investidor da continuação!

LUDMILA
Um salário de engenheiro que alimenta três filhos. Dois que vieram de um cara que tá preso pro tráfico e destruição do patrimônio público que nunca pagou o INSS. Então não, eu não recebo auxílio-reclusão. Um molecão que eu gostei na adolescência. O terceiro eu recebo uma pensão de merda. Essa sou eu.

DOMINIQUE
Eu sou o que pede chantily nos coffe breaks. Se possível, café gelado e pão de queijo com recheio de cheddar. Mamãe fez bom trabalho na educação do meninão...

SR. RUBENS
Salvar mulheres abandonadas e carentes...

LUDMILA
Expulsa de casa grávida e com um bebê de colo. Pai preso. Sem piedade familiar... puta, disseram... pé na sua bunda, ordinária!

SR. RUBENS
Salvando de seus destinos femininos...

LUDMILA
Quem nunca pensou: "onde eu tava com a cabeça?"? Me envolvi com o primeiro empresário rico que apareceu na frente. Paguei uma faculdade barata de administração nesses quatro anos. Uma costela quebrada, um olho roxo, um filho branco e uma pensão de cento e oitenta reais foi o preço.

SR. RUBENS
Amor e carinho. E dinheiro... ah, o dinheiro é sempre muito importante!

LUDMILA
Mulher e independente com três filhos pra criar sozinha! Tudo isso antes dos trinta, veja bem!

DOMINIQUE
Inglês, natação, teatro, Anglo, cursinho, baladas, viagens à Barcelona visitar o tio Pedro, pensão de quinhentos reais por mês e mais o salário que mamãe recebia pra ficar calada e ela nunca quis me falar o quanto era.

SR. RUBENS
A esposa fica em casa, a secretária no trabalho, as antigas na memória, e as putas no puteiro da Zona Sul. A prima Angela faz tempo que a gente não se vê. Enfim...

LUDMILA
Aí você entra em um prédio. Chique. O primeiro emprego pós formada. Você arruma o cabelo. E vai com a sua melhor roupa e com o currículo recém atualizado. É um banco para pessoas jurídicas. Você não é burra. Você é uma mulher inteligente e pode ocupar um cargo bacana na empresa. Você sabe como demonstrar segurança e vontade de prestar serviço...

DOMINIQUE
Mamãe fez uma chantagem básica como sempre fazia e papai me arrumou o emprego desde que ela mantesse o combinado. Não é o melhor cargo, mas é bom pra quem ainda tem vinte e quatro anos e nem terminou a faculdade ainda. Só falta o TCC. E o salário... é, não é lá grandes coisas, mas dá pra curtir o Guarujá nos fins de semana se mamãe emprestar uma graninha.

SR. RUBENS
Investimentos em ações e em empresas fantasmas é um risco absurdo que eu corro todo dia. Obviamente que o lucro não se reparte por igual, porque sou eu quem assino essa porra toda. Mas convenhamos, se não é o meu start inicial, mão de obra nenhuma, e muito menos buceta assanhada poderia falar alguma coisa ou pagar algum almoço nessa vida.

LUDMILA
Se não é uma buceta assanhada homem nenhum tem pau pra esquentar a água do próprio café.

DOMINIQUE
Acho que eu tenho uma balada pra ir hoje.

(realismo)

SR. RUBENS
Preciso que vocês dois quebrem esse galho pra mim essa noite. Depois vocês retiram o cheque bônus da comissão desse último final de semana lá no Recursos Humanos. Acho que eu caprichei pra vocês dois.

DOMINIQUE
Eu não acho que eu mereço tanto.

LUDMILA
Vocês vão querer mais café?

(mecanicamente os três encaram o público)

TODOS
Nossa atualização de vírus foi atualizada. Nossos relacionamentos estão nessa pilha de papel e nesses computadores. Nós-somos-uma-família.

(black-out)


CENA 1

SR. RUBENS
Venha aqui
Vem sorrir
Nesse mundo de amor e paciência
Pode vir
Colorir
Econômica ciência

LUDMILA
Eu odeio quando ele canta.

DOMINIQUE
Fala baixo que ele pode ouvir.

SR. RUBENS
Se você quer ter um milhão
Basta trabalhar sorrindo
Nunca falte a um compromisso
Você quer um milhão?
Então
Me ajude a ter o meu

DOMINIQUE
Ele tá feliz assim porque comprou um carro novo. Você viu?

LUDMILA
Jura? Não vi. Mas de novo? Não faz nem um ano.

DOMINIQUE
Eu vou ser como ele um dia.

LUDMILA
Uau. Super legal.

DOMINIQUE
Tô falando em comprar tudo. Andar de helicóptero...

LUDMILA
Mas você já não tem carro?

DOMINIQUE
Aquele já tá velho, né? E eu ganhei ele usado. Ele já era. Eu queria poder pedir um novo pro meu pai, mas ele acha que eu tenho que fazer por merecer agora.

LUDMILA
Não foi ele quem te deu esse?

DOMINIQUE
Sim, só o primeiro, né? Você não quer que meu pai fique me sustentando a vida toda, né? Que absurdo.

LUDMILA
Super absurdo.

DOMINIQUE
Eu acho que a gente tem que sair de baixo das asas dos nossos pais, sabe? Agora eu tenho que ralar na vida. A gente vai ficar dependente dos nossos pais quanto tempo ainda, né?

LUDMILA
Eu sei lá. Meu pai me colocou pra fora de casa quando eu tinha dezesseis.

DOMINIQUE
Sério? Nossa.

LUDMILA
Pois é. Desde lá eu não vejo nem ele e nem minha mãe.

(silêncio)

DOMINIQUE
Onde você aprendeu a falar inglês?

LUDMILA
Vendendo cocada pra gringo durante a Copa.

DOMINIQUE
Sério?

LUDMILA
E assistindo filme.

DOMINIQUE
Você vendia cocada?

LUDMILA
E assistia bastante filme inglês. Até conhecer meu segundo marido. Meu segundo marido era gringo. Aí eu fui fazer faculdade e me tornei uma assalariada em CLT com salário maior do que de um engenheiro no começo da carreira. Chupa essa manga na revolta da garota.

DOMINIQUE
Hum. Interessante. (pausa) Será que seu salário é maior que o meu? Fala aí, quanto que você ganha?

LUDMILA
Essas coisas não se falam.

DOMINIQUE
Eu tô tranquilo com o que eu recebo.

LUDMILA
Eu ralo pra caralho pra receber o que eu recebo.

DOMINIQUE
Você faz o mesmo que eu. Nosso trampo é de boa, vai. É só fazer umas ligações, escrever uns bagulhos...

LUDMILA
Eu tenho que fazer café, você não.

DOMINIQUE
Ah, não foi ele quem te mandou fazer café. Você faz porque você quer ser prestativa.

LUDMILA
Ele disse pra eu fazer.

DOMINIQUE
Disse nada. Foi uma brincadeira porque você é mulher.

LUDMILA
Eu entendi como uma indireta.

DOMINIQUE
E aí você abaixou a cabeça e aceitou? Se você não queria fazer não fizesse, oras.

LUDMILA
Eu preciso muito trabalhar aqui. Ninguém pagou escola de inglês pra mim. Eu não vou conseguir arrumar outro emprego pra dar a vida que eu tô dando pros meus filhos trabalhando aqui. Eu não tinha danone em casa. Eles já acostumaram agora.

DOMINIQUE
Entendi. Eu aposto que eu ganho mais que você.

LUDMILA
Bacana sua aposta.

(silêncio)

DOMINIQUE
Quanto que você ganha, vai? Fala aí.

LUDMILA
Não vou falar. Quanto que você ganha?

DOMINIQUE
Não vou falar também.

LUDMILA
Quanto será que ele ganha?

DOMINIQUE
Bastante. Mas ele gasta pra caralho com um monte de imposto. Você sabe. E manter um funcionário não é barato... E não interessa, eu tô perguntando pra você.

LUDMILA
Mas sem um funcionário ele não tem mão pra fazer mais dinheiro, não é mesmo?

DOMINIQUE
O governo pega muito imposto dos empresários hoje em dia. É o cúmulo.

LUDMILA
É, coitado. Deve ser duro ver esse dinheiro investido em coisa pública, pra gente pobre.

DOMINIQUE
Lá vem.

LUDMILA
Tirando os impostos que ele dribla, né?

DOMINIQUE
O que?

LUDMILA
As empresas dele. Tudo furada. Sonegamento total.

DOMINIQUE
Chiu! Cala a boca! Você tá louca, menina?

LUDMILA
Você já sabia, não sabia?

DOMINIQUE
Lógico que eu sabia, mas cale a boca.

LUDMILA
Ah! Ninguém tá ouvindo.

DOMINIQUE
Eu sei, mas não fica dando bandeira com essas coisas. (pausa) E tirando o dinheiro que o governo rouba também. Se não fosse essa merda de imposto pra se abrir uma firma nosso salário poderia ser maior.

LUDMILA
Será que ia ser maior mesmo? Ou o helicóptero dele que ia ter mais luxo?

DOMINIQUE
Eu... ainda acredito na bondade humana.

LUDMILA
E duvida que é de igual pra igual o que se sonega no mundo empresarial pros roubos do governo? É tudo misturado, esse povo, queridão. O sujo reclamando do mal lavado. Você sabe que ele já foi prefeito, né?

DOMINIQUE
Eu sei. Faz tempo. Eu lembro. Eu era moleque. Não dá muito dinheiro ser prefeito...

LUDMILA
Ah, não! Não tinha onde cair morto. E agora...

DOMINIQUE
Mas suou, hein.

LUDMILA
Suou mesmo?

DOMINIQUE
Suou sim.

LUDMILA
Sozinho?

DOMINIQUE
Não. Não sozinho. Mas...

LUDMILA
Então... cadê o meu milhão? Eu tenho suado. Suado duro. Cadê-o-meu-milhão?

(silêncio)

DOMINIQUE
É. Tem razão. Cadê o meu milhão também?

SR. RUBENS
Pode vir
Colorir
Econômica ciência


CENA 2

(Sr. Rubens está no telefone)

SR. RUBENS
Um milhão e novecentos mil na reforma de um quarto de hóspedes, querida? Eu sei que é o quarto que sua mãe fica, meu amor, eu não tô querendo ser mesquinho. Eu só não entendo por quê o tapete tem que ser aquele usado pela Tarsila do Amaral na época que ela morou na França, meu amor. Qual é o valor sentimental dela pra com isso, coração? Ela nem sabe quem é a Tarsila do Amaral, ela ficou encafifada com essa história do Abapuru e agora tá parecendo uma fã adolescente que quer comprar qualquer merda no Mercado Livre que o ídolo tenha usado. Ela não é mais nenhuma adolescente, é? Nossos filhos já estão criados pra gente ter esse tipo de preocupação. (pausa) O que? Não. É que eu não tô concordando de a gente gastar tudo isso num quarto que vai ser usado por mais quatro ou cinco anos no máximo, entendeu, amor? (pausa) O que eu quis dizer com o que? Não, eu não quis dizer que ela vá morrer em quatro ou cinco anos, meu amor, eu só não acho uma boa gastar tudo isso com uma besteira. Não, amor, eu não acho que a sua mãe seja uma besteira, mas por que que você não pega esse dinheiro e leva ela conhecer o Egito, por exemplo. Vai viajar. Abre uma franquia fina em um shopping. Vai ocupar a cabeça dela. Fica um mês em um hotel por aí, faz compras. Agora uma reforma dessas, meu amor... vai dar um trabalho muito grande. (pausa) Faz a reforma no apê do Rio já que você tá com ânsia de reforma. Lá compensa. Lá a gente vai sempre, o bairro é valorizado. Todo mundo vai usufruir da reforma e eu acho mesmo que ele precisa ser repaginado, modernizado um pouco, não tem nem Wi-fi na televisão da sala ainda, o Adriano já reclamou disso também porque ele não consegue conectar o vídeo-game. Isso, isso. Muda os gessos, coloca quadros novos. Eu escolho a decoração do nosso cafofo e você fica com o resto, fechado? Acho perfeito uma jacuzzi no banheiro de baixo. Acho ótimo, amor. Fica a vontade, pode arregaçar, você é meu amorzinho de Jesus. Depois a gente conversa mais, tá bom? Ah, só uma coisinha. Fala pro Alberto evitar a marginal hoje. Tá cheio de pedinte e gente fazendo malabarismo nos semáforos, não quero você envolvida. Esse bando tá acabando com a cidade. Fica de olho, querida. Ok. Um beijo. Eu também te amo. Tchau, thau.

LUDMILA
Ele tava falando com a vagabunda?

DOMINIQUE
Nossa. Pra que falar assim da Dona Lúcia?

LUDMILA
Ela só tá com ele porque ele tem dinheiro. É uma coitada, na verdade. Eu falo vagabunda porque ela não faz nada da vida, não vagabunda de xingamento de puta. Coitada.

DOMINIQUE
Você tem ciúmes dela.

LUDMILA
Eu? Ciúmes? Deus me livre dessa misericórdia de homem.

DOMINIQUE
Sei. Ela nem precisa trabalhar pra ter tudo...

LUDMILA
Acredite, querido. Pra trepar com ele tem que ter pagamento sim.

DOMINIQUE
Ué. E como você sabe disso?

LUDMILA
Ah... você acha ele bonito?

DOMINIQUE
Não, credo...

LUDMILA
Então.

DOMINIQUE
Mas eu sou homem...

LUDMILA
Você se acha mais bonito que o Brad Pitt?

DOMINIQUE
Não.

LUDMILA
Então você se acha mais feio que o Brad Pitt?

DOMINIQUE
Ué... acho que sim...

LUDMILA
Se você não se acha mais bonito que o Brad Pitt é porque você se acha mais feio que ele, não é? Se você acha isso, você acha que o Brad Pitt é mais bonito que você. Simples.

DOMINIQUE
É o que todo mundo acha. O que as mulheres acham...

LUDMILA
Então você, homem, consegue saber quando outro homem é bonito e quando ele é feio.

DOMINIQUE
Tá, consigo...

LUDMILA
Acredite no que eu tô te falando.

DOMINIQUE
Tá. Eu entendi.

(silêncio)

LUDMILA
E você nunca reparou no bafo dele?

DOMINIQUE
De quem?

LUDMILA
De quem? Do Brad Pitt. Dele, caralho! Dá pra sentir de longe.

DOMINIQUE
Ah, já. É por causa do café e do cigarro. E ele é velho já, né?

LUDMILA
Nojento demais.

DOMINIQUE
Sei.

LUDMILA
Eu acho.

DOMINIQUE
Se ele te oferecesse uma grana você não beijaria ele?

LUDMILA
O que?

DOMINIQUE
Por grana? Por um milhão de reais? Um beijo por um milhão de reais.

LUDMILA
Você beijaria?

DOMINIQUE
Ah, eu sou homem...

LUDMILA
E por que eu sou mulher eu tenho a obrigação de ter uma opção nisso? Nem por um milhão você beijaria outro homem?

DOMINIQUE
Talvez se fosse o Brad Pitt...

LUDMILA
Viu só? Arrasou!

DOMINIQUE
Mas se ele te falasse hoje. Um milhão. Você beijaria ou não beijaria?

LUDMILA
O Brad Pitt até de graça.

DOMINIQUE
Não. Ele!

LUDMILA
Você beijaria se você fosse mulher?

DOMINIQUE
Ah, acho que por um milhão todo mundo beijaria...

LUDMILA
Eu de jeito nenhum. Eu tenho respeito por mim mesma.

DOMINIQUE
Hum.

LUDMILA
É verdade.

(silêncio)

DOMINIQUE
Fodida, hein?

LUDMILA
Não sei o que você quis dizer com isso.

SR. RUBENS
Ludmila, prepara o café pra gente, por favor.

LUDMILA
Sim, claro, Seu Rubens.

SR. RUBENS
Obrigado, querida.

(silêncio)

DOMINIQUE
"Sim, claro, Seu Rubens".

LUDMILA
Cala a boca, otário. Você também fica cheio de nhé-nhé-nhém quando tá perto dele.

DOMINIQUE
Fico nada. A gente conversa de igual pra igual.

LUDMILA
Que mentira! Para de ser mentiroso! Você é super puxa-saco.

DOMINIQUE
Não fui eu quem ficou com o cargo de fazer café porque quis puxar o saco depois de uma brincadeirinha boba.

LUDMILA
Ele deixou claro que essa era a minha função.

DOMINIQUE
Imagina! Vocês mulheres sempre exageram na hora de contar um acontecimento.

LUDMILA
Cale a boca.

DOMINIQUE
Vocês reclamam de serem abusadas, mas vocês abaixam a cabeça...

LUDMILA
Você não sabe do que você tá falando, Dominique.

DOMINIQUE
Exageradas!

LUDMILA
(se irrita seriamente) Exagerada é o meu caralho! Você não sabe um pingo do que é ser abusada, do que é ser enganada, do que é ser iludidada! Você-não-sabe!

(clima; silêncio)

SR. RUBENS
Tá tudo bem aí?

DOMINIQUE
Tá tudo ótimo. Melhor impossível.

LUDMILA
O café já vai ficar pronto.

SR. RUBENS
Preparem-se para a minha pausa.

LUDMILA E DOMINIQUE
Ok.

DOMINIQUE
Obrigado, seus lindos. Olha o milhão!

(silêncio)

LUDMILA
(mais calma) ...porque você é homem.

DOMINIQUE
Tá bom. Não vamos discutir. (pausa) A sua vida não é o centro do universo, moça.

LUDMILA
Você sempre vem com umas frases no meio da conversa que eu nunca entendo.

DOMINIQUE
Eu conheço a minha vida. Eu não conheço a sua.

LUDMILA
E eu conheço a minha. E não conheço a sua. Mas pelo que parece...

DOMINIQUE
Não! Você não conhece a minha...

LUDMILA
Filhinho de papai que teve aulinhas de teatro e natação e que já tinha um cargo garantido... coitadinho do pobre menininho que nunca precisou fazer malabarismo no trânsito pra poder comer o seu doce danoninho e ter as suas aulinhas de inglês garantidas para um bom futuro promissor talvez no empreendedorismo ou na política...

DOMINIQUE
Você falando assim até parece que foi fácil.

LUDMILA
Foi fácil!

DOMINIQUE
Você não sabe...

LUDMILA
(se irrita novamente) Foi fácil! Foi super fácil! Foi fácil pra caralho, seu moleque! No dia que meu pai me chutou pra fora de casa eu tive que dormir na rua com uma criança e uma barriga prenha. Eu fiquei por seis dias morando na rodoviária e pedindo esmola pra conseguir comida pra mim e pro menino e pra barriga. Foi fácil pra caralho! Minha salvação foi uma mulher dona de um empreendimento de venda de corpos de moças que ficou com pena de mim e da minha condição e que me colocou pra limpar o puteiro depois de usado em troca de abrigo. E eu não era puta não. A velha me poupou de ser puta, a lazarenta não queria, mesmo quando eu ofereci. Pois antes que fosse trepando do que limpando gozo dos outros! Mas a lazarenta olhou na minha cara e disse assim: "Isso aqui não é vida pra você. Dá seus pulos, garota. Vai embora!" Eu botei na cabeça que queria fazer faculdade a todo custo, com dois filhos pequenos e tudo o mais. E você pensa que eu tive papai pra bancar? Eu tive bosta! Eu arrumei um velho babão e rico e fiz ele pagar a minha faculdade mesmo. Ele pagava babá pra ficar com os meus filhos e tudo o mais. Eu tive que ralar muito dessa xota pra você falar que sua vida é difícil, garoto. Se enxerga!

(silêncio)

DOMINIQUE
Ninguém mandou abrir a perna.

LUDMILA
Seu...!

(Ludmila avança em Dominique, mas se segura quando Sr. Rubens avança pela sala entre eles)

SR. RUBENS
Minha pausa, meus amores. Vamos conversar sobre o mundo um pouquinho. Um cigarrinho, Dominique.

(Dominique entrega)

SR. RUBENS
Muito obrigado, Dominique. Um cafézinho, Lud-Lud.

(Ludmila serve)

SR. RUBENS
Obrigado, Lud-Lud. Vamos até ali.

(eles dançam ridiculamente até a área de fumantes)


CENA 3

(eles se agrupam em um cantinho)

DOMINIQUE
(baixo) Lud-Lud?

LUDMILA
Cale a boca.

SR. RUBENS
Bem, meus amados. Eu adoro esse momento nas nossas vidas. É o momento extra conjugal de um colaborador. É quando a família enfim conversa sobre o mundo, sobre a vida e sobre os crescimentos econômicos e a página de valores. Vocês, meras formiguinhas jamais entenderão o sentimento de alguém que coloca a lenha na fogueira, o sentimento do que é ser rainha e do que é ter a bunda maior do que as outras de sua espécie porque é dali que nascem os ovinhos. Imaginem essa bunda grande. Vocês não sabem. Vocês nunca saberão. Os ovinhos são vocês operárias sendo criadas e me trazendo alegria com esse acontecimento divino que é o nascimento de formiguinhas ordinárias. Não sei se vocês conseguem me entender, mas eu tenho muito o que passar para as gerações futuras, com o liberalismo econômico em ascendência, com a chuva do clamor popular por menos impostos e mais garantias para que nós empresários e empregadores possamos pagar um melhor champagne, um melhor quarto de hotel. Um formigueiro não se faz sem organização hierárquica, meus amores. E quem decide isso? Deus! Deus decide quem vai ficar no topo da tabela periódica e quem vai ficar na parte de baixo. Não sou eu quem disse. Eu não sou um gênio da computação, mas eu entendo muito bem que não podemos salvar todas as formiguinhas, não é mesmo? Algumas precisam ser pisoteadas para que outras aprendam que não se deve chegar perto dos humanos. É como num jogo de xadrez. Algumas peças precisam ser sacrificadas para manter a integridade do rei, seja ela uma torre ou um cavalo. E veja bem, no final das contas quem é o mais perseguido nessa história toda? O peão? Você? Você é o mais perseguido nessa história toda? Nada disso, meus amigos. O mais perseguido sou eu. Porque a inveja derruba qualquer um. A força da inveja que os malditos comunistas possuem da riqueza alheia tem a força de um tornado do outro lado do mundo. Guerras podem acontecer em nome da inveja. Algumas pessoas acreditam que é fácil, é só assinar algumas papeladas e beber. Não é como ir daqui até Campinas. Pra comprar um terno bom você precisa ir pra Miami. Cansa, sabe? Não é uma vida fácil. Não tem como a gente fazer isso se a máquina não estiver se sentindo satisfeita, se não houver um retorno por parte dos colaboradores. É uma combinação perfeita de satisfações. Vocês se contentam com a vida que possuem e nós nos contentamos com a vida que possuímos. Cabeças de bois não são cortadas simplesmente por um fazendeirinho de merda. Esse cara segura o boi. Você tem que ser um bom fazendeiro como eu pra ter cu! Que joga esterco na cabeça de índio pra mostrar quem manda nessa merda! Que mata cabra que invade o sítio nosso! Mato sim!Porque se você acha que deve protestar pelos direitos que acredita ter, quem sou eu pra te impedir? Mas faça-me o favor de não atrapalhar o trânsito. Já são helicópteros demais nessa cidade, e se todo mundo quiser ter um isso daqui vai virar um inferno! É bom que mantenhamos a civilidade e a balança para que o mundo gire melhor, sem guerras em nome do patrimônio alheio. Vocês jovens são gananciosos demais, essa é uma geração bastante perigosa que você não pode nem fazer piada contra preto ou contra viado. Onde nós vamos parar, não é mesmo? Está escrito no Apocalipse sobre esse nosso tempo. Tem gente querendo roubar o danoninho da nossa geladeira, meus queridos. O pior cego é aquele que não quer ver. Abram os olhos.

(silêncio; eles apagam o cigarro e tomam o último gole do café sincronizados)

SR. RUBENS
Obrigado, meus amores, por esse momento maravilhoso em comunhão e confraternização da nossa linda e magnífica família! Mas lembrem-se sempre: vocês são só mais uma parte dela. Assim como eu. Obrigado pelo cigarro, Adriano, obrigado pelo café, Lud-Lud. Agora voltem aos papéis. O porteiro tem que ir embora às dez. Se a apressem pra fazer mais milhão.

(todos eles encaram a plateia mecanicamente)

TODOS
Agora voltem aos papéis
O porteiro tem que ir embora às dez
Se apressem pra fazer mais milhão

Cadê o meu milhão? Senhor, cadê o meu?
Se esse é seu, cadê o meu? Meu deus, perdeu o meu
Cadê o meu, Senhor? Milhão, cadê o meu?
Apresse o seu, apresse o meu, o meu parece que perdeu
Senhor, onde é que está?

(Sr. Rubens retorna à sua mesa)

DOMINIQUE
Ele me chamou de Adriano.

LUDMILA
São muitos funcionários pra ele lembrar do nome de todo mundo.

DOMINIQUE
Ele sabe o meu nome.

LUDMILA
Ele já tá velho, deve ter confundido... (pausa) Tem algum Adriano que trabalha aqui?

DOMINIQUE
Não tem não.

LUDMILA
Tá caduco já. Você consegue acompanhar o raciocínio dele? Eu não consigo. Eu fico tremendo na base. Como ele consegue, né? Ser tão pequenininho e tão imponente. Acho que deve ser o tamanho da cabeça que faz isso com a gente. Eu meio que fico sem reação perto dele. É quase como um medo. Parece que se ele ficar bravo é capaz de matar só com o olhar. Deve ser por conta de ele ser muito educado, no fim das contas. É uma ilusão.

DOMINIQUE
Eu converso de igual pra igual.

LUDMILA
Eu vi como você falou pra caralho.

(silêncio)

DOMINIQUE
Fiquei chateado.

LUDMILA
Ele estava viajando na onda do cigarro. Não dê bola pra isso.

DOMINIQUE
Você não entende. Ele não podia ter esquecido do meu nome.

LUDMILA
Até pai às vezes confunde o nome do próprio filho. O que você queria?

DOMINIQUE
Eu não queria nada. Você acha que a minha vida foi fácil, mas você não viveu ela.

LUDMILA
Meu querido, depressão é coisa de gente rica. Aqui do meu lado, se você não correr atrás você morre.

DOMINIQUE
Eu não vou discutir com você.

LUDMILA
Não tem o que discutir.

DOMINIQUE
Você conhece o seu lado e eu conheço o meu.

LUDMILA
Eu falo sobre o meu lado e você fala sobre o seu.

DOMINIQUE
Exatamente. Eu falo sobre mim e você fala sobre você.

LUDMILA
Exatamente.

SR. RUBENS
(interrompe) Meus amores, o que dói mais: Eu furar o meu dedo com esse alfinete ou eu arrancar um braço de vocês com uma motosserra?

LUDMILA
Ah... eu...

DOMINIQUE
Você arrancar um braço nosso com uma motosserra?

SR. RUBENS
Errado. Em mim, dói mais o alfinete no meu dedo. Obviamente que em vocês a motosserra deve doer pra cacete, mas a minha perspectiva do caso é reclamar da dor da alfinetada. Essa é a minha dor. Eu não estarei conseguindo sentir a dor de um braço decepado por uma motosserra, porque não sou eu. Vocês conseguem entender a analogia?

DOMINIQUE
Sim, senhor. Foi muito perfeita.

LUDMILA
Perfeitíssima.

SR. RUBENS
Obrigado. Podem voltar ao trabalho.

DOMINIQUE
Obrigado, senhor.

(silêncio)

DOMINIQUE
Eu fiquei bastante chateado.

LUDMILA
Deixa de ser besta. Você não pode confundir o lado sentimental e pessoal com o profissional, meu querido. Nunca te disseram isso antes?

DOMINIQUE
Disseram sim. (pausa) Você consegue?

LUDMILA
O que?

DOMINIQUE
Separar o sentimento da razão?

LUDMILA
Nossa, que frase bonita. "Separar o sentimento da razão".

DOMINIQUE
É.

LUDMILA
Acho que tem horas que eu não tenho escolha.

DOMINIQUE
Hum.

(silêncio)

DOMINIQUE
Mas se as coisas dependem da gente, então elas dependem das nossas escolhas, não?

LUDMILA
A maioria dos momentos são bifurcações que nem sempre tem dois lados, entende? Tem hora na vida que a vida te enfia uma continuação goela abaixo mesmo sem você querer.

DOMINIQUE
Sei.

LUDMILA
Fique tranquilo, cara. Você é bonito. Tem chance ainda.

DOMINIQUE
Chance do quê?

LUDMILA
De conseguir ganhar um milhão. Eu já passei dos trinta, tenho três filhos pra criar ainda... ixi, é complicado.

DOMINIQUE
Ganhando o que eu ganho vai demorar.

LUDMILA
Acredite. Você está acima da média desde que nasceu. Você é um garoto de sorte.

DOMINIQUE
Você não sabe da minha vida.

LUDMILA
Tá bom.

(silêncio)

DOMINIQUE
Talvez seria mais rápido se eu fosse pelo caminho da herança.

LUDMILA
O que?

DOMINIQUE
Nada. (pausa) Quanto que você ganha por mês, hein?

LUDMILA
Por que você quer saber?

DOMINIQUE
A gente começou a trabalhar aqui quase juntos. Eu queria saber se recebemos proporcionalmente pelo serviço.

LUDMILA
E essa dúvida tá te incomodando por qual motivo?

DOMINIQUE
Sei lá. A gente passa tanto tempo junto que eu acho que esse tipo de intimidade é válido de alguma forma.

LUDMILA
Você tem medo de receber menos que eu porque eu sou mulher.

DOMINIQUE
Não é nada disso. Mas eu não acharia justo.

LUDMILA
E por que não? Eu poderia muito bem receber mais do que você.

DOMINIQUE
Não seria justo porque a maioria das transações e novas apostas contempladas sou eu quem faço. Você até que é boa no que faz, mas todo mundo aqui sabe que eu sou o melhor nessa parada. Nós temos aqui no nosso ranking quem bate a meta primeiro todo mês. E quem é? Sou eu. Cafézinho nenhum chega aos pés disso.

LUDMILA
Digamos que o Sr. Rubens tenha se comovido com a minha história de vida e que porque eu tenho três filhos pra criar e sou uma mãe solteira ele tenha decidido me dar um bônus como forma de incentivo.

DOMINIQUE
Pff... Imagina.

LUDMILA
Isso seria doloroso pra você?

DOMINIQUE
Ele nunca faria isso.

LUDMILA
Como você sabe?

DOMINIQUE
Ele odeia esse papinho socialista. Não faria isso sem algo em troca.

LUDMILA
Ouvi dizer que ele é cristão. Que ele costuma ir na igreja com a Dona Lúcia de vez enquando. Quem sabe se ele não tenha tido um pouco de compaixão na hora que me contratou?

DOMINIQUE
Você realmente acha que um empresário querendo contratar mão de obra qualificada o mais barato possível faria isso por uma desconhecida?

LUDMILA
Não é você que ainda acredita na bondade das pessoas?

DOMINIQUE
Não desse tipo. Não sem te conhecer antes. Se ele é pão duro até comigo duvido muito que ele faria isso sem você dar algo em troca pra ele. A não ser que você dê algo em troca pra ele.

LUDMILA
Eu não sei o que você está querendo insinuar com isso.

DOMINIQUE
Não sabe, é?

LUDMILA
Seria clichê demais. O chefe e a secretária. Seja mais original.

DOMINIQUE
Aham.

LUDMILA
E como assim 'até comigo'? Você é mais especial que eu porque bate a meta primeiro? Eu nunca deixei de bater a meta.

DOMINIQUE
Porque... por nada.

LUDMILA
Ele nunca esquece do meu nome.

DOMINIQUE
Cala a boca.

LUDMILA
Eu acho que eu recebo mais do que você.

DOMINIQUE
Eu acho que não. O Sr. Rubens é das antigas. Ele não iria deixar que uma mulher recebesse mais pelo mesmo serviço.

LUDMILA
Eu já disse. Eu não sou uma qualquer, eu faço o cafézinho.

DOMINIQUE
Eu acho que eu tiro uns trezentos, quatrocentos pila a mais que você aqui.

LUDMILA
(ri) Eu acho que eu recebo mil reais a mais que você.

DOMINIQUE
Fala sério. Eu tô falando do salário. Fora a comissão.

LUDMILA
Fora a comissão mesmo.

DOMINIQUE
Eu tenho certeza que eu tiro mais.

LUDMILA
Bom, se você falar quanto que você ganha dele eu falo.

DOMINIQUE
Não, você vai mentir.

LUDMILA
Não vou. Eu prometo falar a verdade.

DOMINIQUE
Eu não vou falar.

LUDMILA
Então eu também não vou falar.

SR. RUBENS
(interrompe) Lud-lud, prepara para a nossa pausa no arquivo-morto.

LUDMILA
Ok, Seu Rubens.

(silêncio)

DOMINIQUE
O que tanto vocês vão fazer lá no arquivo-morto toda vez, hein?

LUDMILA
Eu já te disse. Ele quer ficar falando sobre o universo, sobre o que ele acha sobre política e tudo o mais.

DOMINIQUE
Sei.

LUDMILA
É sério. Ele sempre separa algumas transações de cinco anos atrás pra ficar remexendo nas lembranças dos milhões que ele já gastou. É um saco.

DOMINIQUE
Deve de ser. E ele nunca deu em cima de você? Já que vocês ficam sozinhos tanto tempo.

LUDMILA
Imagina. E eu nem dou oportunidade pra isso. Se ele faz uma coisa dessa eu meto processo na empresa. E funcionária agredida sexualmente é o maior escândalo possível.

DOMINIQUE
Sei.

SR. RUBENS
(entra) Vamos lá, meu amor?

LUDMILA
Vamos, Seu Rubens.

SR. RUBENS
Já trago sua amiga de volta, Dominique.

DOMINIQUE
Não tem pressa, senhor. Fiquem à vontade.

(eles saem)

DOMINIQUE
Demorem o quanto quiserem.

(Dominique vai até a mesa de Ludmila e vasculha nas gavetas)

DOMINIQUE
Um holerite... só unzinho... ahá! (ele encontra um papel) Filha da puta. Só porque ela é puta! Não é justo ela ganhar mais do que eu que sou filho do lazarento. Ela ganha mais mesmo contando com a pensão. Lazarenta! Ela... é... só uma mulher... só porque tá abrindo as pernas... filha de uma puta!

(Dominique se interessa pela mesa do Sr. Rubens, mas fica com receio de se aproximar; se certifica de que ninguém está olhando e corre mexer nas gavetas; ele encontra um papel e abre a boca de susto quando descobre os números)

DOMINIQUE
Puta-que-o-pariu!

(black-out)


CENA 4

(um foco em cada mesa)

DOMINIQUE
Senhor, me compre um carro do ano
Meus amigos já andam, eu preciso ser humano
Trabalhando a vida toda, sem ajuda de ninguém
Senhor, me compre uma Mercedes Benz

LUDMILA
Senhor, me compre uma TV 3 Digital
Me inscrevi no Sílvio Santos, por favor seja legal
Prove que me ama e me arrume um milhão
Senhor, não quero uma TV da promoção

SR. RUBENS
Senhor, me compre uma noitada na cidade
Me apego no senho, eu trabalho de verdade
Eu espero pela entrega, eu conto até três
Senhor, me compre, agora é minha vez

TODOS
Senhor, me compre um carro do ano
Meus amigos já andam, eu preciso ser humano
Trabalhando a vida toda, sem ajuda de ninguém
Senhor, me compre uma Mercedes Benz

DOMINIQUE
Eu sou daquele tipo renegado. Que teve que viver na surdina. Que não pegou o sobrenome do pai em nome de um acordo verbal. Um filhote fora do casamento sustentado às migalhas.

LUDMILA
Eu sou uma mulher independente que fez o caminho da minha vida com o que apareceu pela frente. Eu não tenho vergonha. Não acho que eu deva ter vergonha de nada. Tudo o que eu fiz foi porque eu sempre fui sozinha. E acredite, meu colega: tá todo mundo bem sozinho.

SR. RUBENS
Eu quem penetro... digo, invisto. (arrota)

DOMINIQUE
Essas empresas costumam ser um banco de fachada. É como se fosse um banco de pessoa jurídica, mas por de trás existe uma máfia nas apostas de ações de diversos ramos. Até no ramo artístico, ora vejam! E nesse caminho fantasma, meus queridos, é como a Deep Web da Internet. Rola de tudo. É uma quantia de dinheiro que até agora a pouco eu não poderia imaginar.

LUDMILA
Você acha que você venceu na vida porque ganha cinco mil reais? Você não tem noção do que os ricos realmente estão fazendo com a real riqueza monetária. Eles estão enfiando nos cus.

SR. RUBENS
Vocês, formigas, representam os noventa e nove por cento. Se aglomerem e se salvem, seus lindos! Vivam juntos em paz e harmonia! Trabalhem e conquistem! Quem sou eu pra impedir a felicidade do povão, não é mesmo?

DOMINIQUE
Quando você achava que falavam de milhões de reais e daí você descobre que esses milhões são bilhões de reais anuais, nesse dia você fica puto com a parte que você recebe do montante. Não porque você seja um cara mesquinho, é que você começa a questionar o valor do seu suor nessa merda.

LUDMILA
Suor? (gargalha) Noventa e nove por cento de mixaria, mas aquele um por cento, ah, aquele um por cento tem tudo o que quiser na vida.

SR. RUBENS
Próxima parada. Lua! Já começaram as viagens espaciais e eu serei um dos primeiros bilionários a passar as férias em outro planeta. Diz que fizeram um campo de golfe em uma cratera.

DOMINIQUE
Papai ganha bilhões de reais por ano pra não fazer nada sentado na porra de uma cadeira, comendo a coitada da secretária, e eu nem posso chamá-lo de pai, ou nem posso abraçar os meus irmãos, ou mesmo me gabar que eu sou filho dele, e nem pensar numa possível herança porque eu sou o filho escondido, o estorvo da camisinha estourada, o filho bastardo que foi comprado num acordo financeiro que vai ficar de lado nessa coisa que se chama família e nessa coisa que se chama amor de pai, porra! Amor de pai... carinho de pai...  "Ah, você teve de tudo. Papai te deu tudo." Foi. (pausa) Mas ele não me deu nem um por cento do que ele ganha.

(o realismo retorna bruscamente; barulho de um dia agitado em escritório; Ludmila trabalha em alguns papéis e Sr. Rubens em sua sala; Dominique está visivelmente perturbado)

LUDMILA
Nossa. O que aconteceu com você hoje? Você foi assaltado ou algo do tipo?

DOMINIQUE
Algo do tipo.

LUDMILA
Você tá com uma cara...

DOMINIQUE
Foi boa a trepada de ontem?

LUDMILA
O que?

DOMINIQUE
Vamo ser direto nessa porra. Eu sei o que vocês vão fazer no arquivo-morto.

LUDMILA
Você tá louco. Eu já falei o que eu...

DOMINIQUE
Para de mentir. Pode parar. Eu sei.

LUDMILA
Você não sabe de nada. Você tá viajando...

DOMINIQUE
Você gosta dele? Você gosta de dar pra ele?

LUDMILA
Você me respeita, seu moleque. Eu não faço esse tipo de coisa.

DOMINIQUE
(quase grita) Para de mentir! Não precisa mentir pra mim. Eu sei que você trepa com ele, caralho. Eu já vi você trepando com ele. Um dia inocentemente eu estava passando lá pelo arquivo-morto e eu vi. Agora chega dessa cena. (pausa) Você gosta dele? Você tem algum carinho por ele?

LUDMILA
Eu tenho três filhos pra criar...

DOMINIQUE
Não foi isso que eu perguntei.

(silêncio)

LUDMILA
Não. Eu tenho asco. Mas eu não posso me dar esse luxo. Não agora. Me julgue.

DOMINIQUE
Eu não vou te julgar.

LUDMILA
O que você quer? O que você tem hoje?

(silêncio)

DOMINIQUE
Você realmente recebe mais do que eu. Mas perto do que ele tira com o nosso trabalho também não chega a nem um por cento.

(silêncio)

LUDMILA
O que você quer?

DOMINIQUE
Ele é meu pai. Parece novela mexicana, mas ele é meu pai. Ele fez um acordo com a minha mãe pra me dar uma vida digna, mas que ele não ia me assumir, que era pra gente ficar em silêncio sobre a paternidade e que ele me daria todos os meios cabíveis de sucesso e conforto. Eu achava que estava tudo bem até que eu vi que papai não é só milionário. Papai é trilionário. Papai faz milhão por semana. E ele me paga quinhentos reais de pensão.

(silêncio)

LUDMILA
Tá. E o que tem?

DOMINIQUE
Eu estive pensando... um teste de DNA facilmente comprova que eu sou filho dele. E mesmo depois de morto é possível fazer esse tipo de teste e aí eu entraria na lista de herdeiros. Eu nunca tive amor nenhum por ele mesmo. (pausa) Eu te dou um milhão se você me ajudar.

LUDMILA
Ajudar? Mas ajudar em quê?

(black-out rápido)

(um tiro)

(quando as luzes retornam, Sr. Rubens está caído baleado e Dominique com uma arma na mão)

LUDMILA
Cadê o meu milhão?

DOMINIQUE
Agora é a hora de você fazer a cena.

(Ludmila se destaca em um foco, instantaneamente aos prantos)

LUDMILA
Eu não aguentava mais! Eu pedia pra ele parar, eu pedia pra ele me demitir. Ele dizia que se eu fugisse dele ele ia me encontrar e ele ia me matar... Ele falou que ia fazer mal pros meus filhos se eu contasse pra alguém... Eu estava com medo... eu... (chora) Eu não aguentava mais essa humilhação... foi aí que eu peguei a arma que ele guarda na gaveta e atirei.

DOMINIQUE
Esse homem iludiu a minha mãe, estuprou ela, bateu nela, teve um filho com ela e pagou o silêncio, pagou pra ela calar a boca. Ele me manteve na surdina por vergonha e por medo que a família soubesse do filho fora do matrimônio. Eu estou disposto a fazer o exame de DNA pra comprovar isso.

(Sr. Rubens se levanta naturalmente)

SR. RUBENS
Realmente, você não leva nada com você depois que você morre. (sai em silêncio)

LUDMILA
Cadê o meu milhão, Dominique?

DOMINIQUE
Calma, querida. Você já se livrou da acusação. Você matou ele por legítima defesa.

LUDMILA
Eu quero saber do dinheiro.

DOMINIQUE
Você já matou alguém antes? Eu nunca tinha matado ninguém antes. Eu até que tô me sentindo bem.

(Ludmila aperta play em um gravador)

VOZ DE DOMINIQUE
Você já matou alguém antes? Eu nunca tinha matado ninguém antes. Eu até que tô me sentindo bem.

DOMINIQUE
O que é isso?

LUDMILA
Toda a nossa conversa está sendo enviado pro meu e-mail. Se você pular fora do nosso trato eu conto tudo.

DOMINIQUE
Calma, Lud-Lud. Eu vou cumprir com o nosso trato. O pessoal só tá esperando sair o resultado do exame pra gente começar a conversar sobre quem vai ficar com o quê. Eu tô pensando em abrir uma ONG pra ajudar pessoas carentes.

LUDMILA
Jura que agora você é desse tipo socialista?

DOMINIQUE
Dizem que dá pra ganhar uma bolada com essas ONGs, tudo sem pagar imposto. (pausa) O que? Eu tenho que investir o meu dinheiro, né? Ou eu poderia abrir uma igreja.

LUDMILA
Eu só quero saber do meu milhão.

DOMINIQUE
A carta com o resultado do exame está pra chegar. Acalme-se, querida.

LUDMILA
Há chances de esse exame dar negativo, Dominique?

DOMINIQUE
De jeito nenhum. Ele mesmo sabia que ele era meu pai.

LUDMILA
Ou ele não queria fazer nenhum escândalo por causa de quinhentos reais e aulinhas de inglês.

DOMINIQUE
Minha mãe não é desse tipo, tá bom?

LUDMILA
Qual tipo? Que gosta de sexo?

DOMINIQUE
Que não teria certeza de quem é meu pai.

LUDMILA
Veja lá, hein.

(uma campainha)

DOMINIQUE
Deve ser o resultado. Pegue o telefone e ligue pro Jorge. Só apertar o último discado.

LUDMILA
Quem é Jorge?

DOMINIQUE
O meu advogado.

(Dominique sai e retorna com um envelope; um foco destaca Sr. Rubens)

SR. RUBENS
Pior do que você chegar no fim da vida sem ter conseguido fazer tudo o que você queria fazer, é você não saber o resultado final de um exame de DNA. Nem todo mundo vai conseguir juntar um milhão de reais nessa vida, meus amores. Aceita que dói menos.

LUDMILA
E aí? Deu negativo ou deu positivo?

DOMINIQUE
Vamos ver...

(black-out)


CENA 5

(um foco celestial em Sr. Rubens)

SR. RUBENS
Venha aqui
Vem sorrir
Nesse mundo de amor e paciência
Pode vir
Colorir
Natureza e ciência

Se você ainda tem um coração
Se é amor que está sentindo
Vamos sermos mais amigos
E ter compaixão?
Então
Te ajudo

(sereno e falso) Redenção. É bosta, é brega, mas existe. Se por um acaso existir essa pós-morte na vida real como é na ficção, poderíamos ouvir os arrependimentos de quem se foi. Daria tempo de a gente saber o que foi aprendido com a dor de fim da vida. Se morreu injustiçado ou se morreu fazendo justiça. Todos nós somos seres complicados e merecemos atenção especial na individualidade de cada ser. É natural que tenhamos medo, que planejemos assassinatos por dinheiro. Eu paguei com a morte tudo o que eu deveria ter feito em nome da continuação da nossa evolução como sociedade, mas que eu preferi viver na ambição e no egoísmo financeiro de uma vontade de gozar mais uma vez com uma punheta banhada de ouro dentro de uma jacuzzi feita com o marfim que algum filho da puta arrancou de um elefante! (pausa) De repente a gente pode passar pelo milagre de pensar melhor no que a gente quer. De pensar melhor no que é melhor pra todo mundo, pro planeta inteiro, e não só pra um por cento, só pro seu país, só pra quem tá dentro da sua casa, pra quem tem o seu nome. São noventa e nove por cento de coisas que respiram e que querem existir, você consegue me entender? Que é melhor morrer do que matar. Que é melhor e muito mais gostoso andar de descalço do que viver a vida comprando sapato novo, sapato caro. E pulando as porras das formiguinhas, pra que matar as formiguinhas? O que você tem contra as formiguinhas? (pausa) Você vai ficando retardado quando você começar a olhar a vida depois da morte, ninguém sabe realmente o que é isso. Você fica mais próximo de um grupo de carbono e da transformação do oxigênio, quando seu DNA se recicla no universo; e aí a viagem é bastante quântica. Não existe dinheiro nessa viagem, não tem essas merdas de troca, é tudo uma conexão eletrônica só. E esse resto de fio de memória do que eu existia vai se perguntar quando ele se lembrar da humanidade que ele teve um dia: valeu a pena ter morrido em nome de dígitos no banco e por luxos ridículos e infantis? Valeu a pena? Será que valeu a pena? (pausa) Será que realmente valeu, cara?

(a luz cai em resistência)

(black-out)


FIM





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