O FANTASMA DO PEIXE

PERSONAGEM
Fantasma
Peixe (pode ser um ator/atriz ou não)

CENÁRIO: Uma mesinha e um aquário com o Peixe.


PRÓLOGO

(áudio gravado)

FANTASMA
(voz) Eu falei bastante. É o monólogo dele agora, gente, vamos escutar. Eu vou gravar pra poder provar que é real, tá?

(longo silêncio)

FANTASMA
(voz) Pode sim. O palco é todo seu.


CENA 1

(o Fantasma surge em um canto escuro com cara de assombração clássica; música de suspense; black-out; ele muda de canto e faz a mesma cara, um tanto cômico, tentando parecer assustador; repetição em focos em lugares opostos do palco. No auge do terror, quando supostamente algo devesse acontecer, as luzes se acendem e o Fantasma desmonta o personagem. É fim de expediente e o Fantasma está voltando pra casa depois de sua performance; ele chega em casa e se senta ao lado do Peixe)

FANTASMA
Oi, queridão. Sentiu a minha falta? (pausa) Bom saber. (pausa) Eu estou um pouco cansado sim, hoje foi um público difícil. Sabe como é. E você? (pausa) Acredito. (pausa) Eu acredito em tudo. É foda. Eu sei que é foda. (pausa) Seu venenoso! Nem todo peixe pode comer cru, colega, se você não souber qual é o certo você pode morrer envenenado. Ouvi dizer que se você misturar Sushi com cerveja pode dar o maior problema. É o novo leite com manga. (pausa; ele de repente vê a plateia) Espere um pouco, querido. (se levanta) Sshi! Cala a boca! (pausa) Não acredito. (pausa) Eu sei que eu prometi não trazer trabalho pra casa, mas tem como você me deixar pensar um pouco? (pausa; ele sai andar pelo espaço procurando alguma coisa) A gente vai ter que pensar antes de falar, não pode falar besteira. Eles esperam alguma coisa, eles sempre esperam alguma coisa! Agora a gente vai ter que pagar uma de cult, não pode ser muito pop, não pode ser muito... eu mesmo. Merda. Eu sei o que eu prometi, seu chato de galocha, dá pra parar de encher o saco? Eu tô tentando trabalhar aqui! (pausa; imita) "Mas me alimente, me alimente primeiro". Caralho, viu. Menino impaciente. (ele vai até o aquário e joga ração de peixe pro Peixe) Oi, gente. Bom, eu vou tentar fazer a introdução então. É uma coisa bastante difícil de ser explicada. É assim: (por alguns segundos ele tenta explicar o assunto, mas engasga bastante, frisando o quanto é difícil explicar) Não é que eu tô dizendo que é possível a existência de... de... do... sobrenatural... Assim, não é que eu vá dizer que pessoas com super poderes... digo... quer dizer... (um estrondo; ele grita e se contorce) Viu? É difícil. AH! Deixe eu achar aquele livro. É difícil explicar a existência de um fantasma de verdade como sou, de verdade, de ectoplasma misturado com memória física e terrores da vida sem aquele livro. Explicar não como algo divino, sobrenatural. Você me entende, né, Peixe? É difícil de explicar. (pausa) A bíblia? Que bíblia, Peixe! Que Bíblia! Se liga. (pausa) Não, também não é o Livro dos Espíritos. Onde foi que eu deixei aquela merda? Pra quem que eu emprestei? (se lembra) Putz. Eu emprestei. E só sobra a parte melancólica e as espinhas da gente quando a gente morre. A intelectualidade e a parte matemática da matéria fica no resto de carne. Infelizmente terei de usar de chavões clássicos, e cartas na manga que garantem uma boa apresentação artística. Ou seja: ilustração até onde minha evolução artística pessoal e instransferível conseguir alcançar. (conclui) Melancolia e existencialismo musical é uma coisa que dá ibope.

(um foco fechado no Fantasma; ele pode cantar alguma música considerada popular/brega ou a sugestão abaixo)

FANTASMA
(canta) "Eu já nem me reconheço mais
Achei que estava na boa
Mas sempre que eu tento me acalmar
Vejo que tudo é igual

Mas um dia chega
Um dia chega
Mais um dia chega
Um dia chega

Toda noite eu tento imaginar
Que amanhã será perfeito
Mas quando eu coloco os pés no chão
Vejo que nunca é igual

Mas um dia chega
Um dia chega
Mais um dia chega
Um dia chega

É começar a se ajudar
Que me ajudarei
Se a luz apagar e ninguém restar
Sozinho serei

É começar a se ajudar
Que me ajudarei
Se a luz apagar ninguém restar
Sozinho ser rei

E o sal em minha dor não está queimando mais do que sempre queimou
Não é que eu não sinto a dor, é que eu só não tenho mais medo de me machucar
E o sangue, o amor, não está pulsando menos do que sempre pulsou
E essa esperança é a única coisa que me faz continuar
No ar

Mas um dia chega
Um dia chega
Mais um dia chega
Um dia chega

Mas um dia chega
Um dia chegará
Mais um dia chega
Um dia chega."

(silêncio)

FANTASMA
(para a plateia) Chega. Cansa, sabe? Quando você é adolescente você se importa muito; acho que dura até depois dos vinte também. Aquele negócio de tentar parecer uma coisa que a gente não é de verdade. Tipo falar que gosta de umas músicas, ou até se forçar à gostar de uma música porque aquela música é cult e "todo mundo que é culto tem que conhecer aquela música". Aí você se submete, consegue entender? Aí você não suporta ver um certo tipo de filme, mas se você quer ser culto e respeitável e se você é cinéfilo "você tem que gostar do Almodóvar sim!". Eu gosto do Almodóvar, na verdade eu gosto até bastante, é um dos meus preferidos, mas é que eu tô falando porque eu já vi amigos ficando sem graça quando alguém fala "nossa, você nunca assistiu nenhum filme do Almodóvar", quando o gosto do cara é pra tipo de filme igual "Velozes e Furiosos", você entendeu? O cara gosta do remake das Tartarugas Ninjas, você entendeu? Agora a gente vai julgar o cara? Tipo, não é que eu não goste de Chico Buarque, mas eu nasci nos anos noventa e não tive a oportunidade e tempo pra parar pra apreciar o cara, você entende? Não é que eu não gosto e não me importo com ele, eu conheço uma música ou outra. Mas por exemplo, no meu caso eu tô mais interessado no lançamento do novo CD da Beyoncé, você entendeu? Eu gosto, eu gosto do que ela fala, eu gosto do empoderamento feminino, eu gosto da batida, eu gosto da língua inglesa. Eu gosto. Aí eu tive aquela época na adolescência que "Nossa! Eu tenho que ver esses filmes porque esses filmes são filmes cults e vendo esses filmes cults eu vou ser mais aceito entre a classe especializada do cinema!". Olha que merda. Por exemplo, hoje eu quero comer um Mac e ver o Batman socar o Superman, entendeu? Eu tô afim disso, não tô querendo refletir num super filme que vai me fazer pensar nas relações humanas à partir da visão de um liquidificador, por exemplo - não estou fazendo julgamentos, estou apenas comparando, eu compreendo a importância das duas artes, e eu estou querendo dizer exatamente que existe público pra todo mundo. Eu vou confessar um negócio aqui hoje. É oficial, eu saio do armário agora. Eu gosto mesmo de filme de super-heróis, gosto, assisto todos, compro os DVD, desde a Marvel até a DC. E já tive vergonha de assumir porque fica dando uma impressão que eu sou mais popularzão por isso, menos inteligente, "nossa, ele faz peça que no caso ele é um fantasma de terror que conversa com um peixe, uau, suas referências são Batman vs Superman". Aí quando você é adolescente você vai nas Lojas Americanas e compra uma porrada de filme que é considerado "cultchy" só pra colocar na porra da sua prateleira. (pausa) Sabe o que eu penso agora? O que acontece é que o ser humano tem um gosto bastante variado e foda-se. Foda-se! Tem que aprender a falar foda-se pra esse negócio de gente cult, de gente diplomada, ninguém é melhor do que ninguém por nada nessa vida, vai todo mundo virar cocô! Falem comigo, todo mundo! Foda-se! Foda-se! Isso, gente. Foda-se! Delícia. Gostosinho, gente.

(o Peixe fala alguma coisa)

FANTASMA
Eu sei que foi importante pra minha experiência pessoal e artística ter visto algumas coisas clássicas, mas é que me forçaram, sabe! Não foi algo que aconteceu naturalmente. É isso que eu acho um absurdo. (pausa) Não, cara eu não tô julgando a qualidade eu tô dizendo que muita coisa não é mais um tipo de linguagem que fala com a minha geração, entende? Nós somos de uma geração de caçar Pokémon pelo celular, quem vai julgar as importâncias? (pausa) Não foi por prazer natural e eu não me submeto mais à esse tipo de coisa, só isso! Sei do valor de tudo, mas eu não me submeto. Eu não vejo uma série que não me cativa, como eu já fiz, e eu não vou pagar de hétero quando eu não sou! Deus me livre dessa maldição humana! (para a plateia) Vários armários sendo desconstruídos. (pausa) Esse tipo de coisinha é coisinha que a gente faz quando a gente é menino só, quando a gente tá em tempo de precisar de aceitação até de gente que a gente nem conhece. Uma hora passa. E aí a liberdade vem que é uma beleza! Por exemplo, vem um tipo de liberdade subversiva que você não se importa se der merda se você acender um baseado de verdade numa peça de teatro nesse espaço de cultura. (acende um baseado de verdade) Pode dar a merda que for, a mensagem já está dada, o ato político já está dado. E isso é uma porra de uma delícia, vocês conseguem entender a grandeza? Cada um é cada um e é aí que tá a graça da liberdade. O ser humano é um bicho tão curioso que quer cuidar da vida do outro, sabe?  A gente acha que a gente sabe o que é melhor pra outra pessoa, que filme vai ser mais interessante, que droga é melhor pra pessoa usar, que música vai ser mais tocante. E o duro que como a gente é fraco, porra, a gente faz! A gente se submete às escolhas do outro! A gente faz mesmo quando a gente não quer fazer! (pausa) Não se submetam, pelo amor de deus, dos deuses, das deusas. (ele ironiza a própria hipocrisia) Enfim, pra vocês entenderem melhor o que eu quero dizer, aqui está uma listinha com os filmes, livros e músicas que eu acredito que pode mudar a vida de vocês pra vocês poderem pensar corretamente com a verdade verdadeira da forma que eu penso.

(o Peixe interrompe)

FANTASMA
Fala. (pausa) Aham. (pausa) Eu sei que eu viajei, é que a gente vai conversando e... Sim, a intenção era explicar a existência de fantasmas com base científica, eu sei. (pausa) O que é? Agora você vai julgar o que eu tenho pra falar? Se liga! (pausa) Eu sei que ninguém vai ouvir a voz de um fantasma se a pessoa não acreditar na existência de fantasmas, mesmo que isso seja uma ficção teatral. (pausa; imita) "Na imersão da criação artística precisa-se da verdade, precisa-se acreditar naquilo que prega, se não não faz sentido nenhum." Eu sei tudo isso, fui eu quem te ensinei essas bobagens! (pausa) Vá cagar! Pare de me encher o saco! (pausa) Eu só quero... sabe o que eu quero? (pausa) Ah, nada. (pausa) Nada, nada. Esquece. (pausa) Eu só quero poder ser fútil por um segundo nessa exigência de classe. É pesado sabe. Ser legal. Ser pagável. (pausa) Ainda dá medo, um pouco sim, do que é que vão pensar, do que é que vocês estão pensando. Dura pra mais depois dos vinte, então, viu. Porra. (pausa) Puta medo do caralho.

(black-out)

(um vídeo no telão mostra imagens de ectoplasma, espíritos ou aparições de luzes; um vídeo com um tom um tanto perturbador)


CENA 2

(assim como o início do espetáculo, o Fantasma surge em um canto escuro com cara de assombração clássica; música de suspense; black-out; ele muda de canto e faz a mesma cara, um tanto cômico, tentando parecer assustador; repetição em focos em lugares opostos do palco de novo. Fim da performance, ele desmonta o terror)

FANTASMA
(canta) "Olha o meu peixinho-palhacinho
Palhacinho, palhacinho
Ele é tão bonitinho, se falando está

Se você quer sorrir, é com o Patati
E se você quer brincar, é com o Patatá
Pode ser tão bonitinho, se pagando está

Eu tive meus quinze minutos de fama
No passado eu fui do teatro
Até tenho um registro
Mas a morte vem

O ator não é bem visto
Vale menos de cem

O amor deu um sumiço
Não sobrou ninguém."

(depois de um tempo um pouco triste ele fica alegre de repente)

FANTASMA
Oi, queridão. Sentiu a minha falta? (pausa) Bom saber. (pausa) Eu estou um pouco cansado sim, hoje foi um público difícil. Sabe como é. E você? (pausa) Sei. Trabalho duro esse seu. (pausa) Eu trabalho desde os quinze, bobão, já trabalhei de muita coisa. Mas pelo menos eu posso jogar na cara da sociedade que antes de morrer eu consegui realizar o meu grande sonho como ator, como artista. (pausa) Oscar? Que Oscar, Peixe! Eu fui monstro na Hora do Horror do Hopi Hari. (pausa) Sério. (pausa) Ah, o que é? Vai julgar o valor dos meus sonhos agora também? Já não basta tudo! (pausa) Tá bom, vamo mudar de assunto. (pausa) Que livro? (pausa) Eu já não disse que eu emprestei enquanto eu ainda era vivo? Essas coisas acontecem, a gente precisa desapegar. Nunca fui apegado nessas coisas. Meus DVDs estão perdidos pelo mundo. Antes alguém assistindo do que juntando pó, não é não? Mesma coisa com meus livros. Tudo perdido por aí. Eu sinto saudades de alguns. (pausa) Bíblia? Que bíblia, Peixe! Se liga! Por que você tá encanado com bíblia? Pelo amor! (longa pausa) O que? (pausa) Você viu que eu tenho dificuldades pra explanar essas questões. (pausa) A Busca é um assunto muito complexo, Peixe. (pausa) Isso é uma coisa minha e sua, se a gente tenta explicar esse tipo de coisa fica parecendo que a gente é moleque tentando fazer auto-ajuda. (pausa) Eu não vou falar. (pausa) Não, eu não quero nem tentar. (pausa) Porque não, porque eu não quero. Isso é coisa pessoal minha e sua. (pausa) Eu não vou falar. (pausa) Não. Nem adianta insistir. Pode ficar a noite toda insistindo. (pausa) Não vou falar. (pausa) Porque eu não quero! (pausa; grita) Eu já falei que eu não vou falar!

(longo silêncio)

FANTASMA
(explica contrariado) A Busca, gente, é uma piada interna entre eu e meu amigo aqui presente - coisa que não é uma tentiva de discutir as relações humanas à partir de uma ilustração, de uma metáfora , esse negócio de eu conversando com um peixe -, enfim. E é uma piada interna sobre essa... maluquice... frenética... de se encontrar a porra... do... do... sentido da funcionalidade... da funcionalidade da existência, entendeu? Por exemplo, eu existo aqui por conta de quê? Porque você pode comprovar a minha existência, vocês todos podem sair falando que "putz, apesar de tudo o que foi apresentado, o cara pelo menos ele existe". Eu existo, entendeu? Olha só: "Tudo aquilo que você busca, está buscando por você!" Entendeu? É o famoso "quem procura acha". (um estrondo; ele se contorce, mas dessa vez retorna seguro do que diz) E aí assim, como que se comprova a veracidade da existência de um fantasma pra essa porra ser verossímil? Como eu posso garantir pra vocês com cem por cento de certeza que eu aqui sou sim um fantasma apesar do teatro? Sabe por que? (ele se prepara para dar a grande resposta) Porque essa dramaturgia foi escrita ontem. Isso tudo já é produto do passado. É, rapaz, tudo o que está sendo encenado aqui foi obra de um pensamento que aconteceu numa noite ordinária qualquer e que aconteceu no passado. Eu sou um eco do passado! Eu sou um fantasma! Escrito, decorado e ensaiado. Aquilo livro, por exemplo! O cara que escreveu aquele livro também já morreu há vários anos, mas toda vez que alguém lê o cara ele continua vivo. O pensamento dele continua vivo. E tem mais! Um fantasma de ectoplasma como eu aqui presente não só se comprova nesse campo do imaginário e hipotético e filosófico artístico não. Ele se comprova na física de memórias que pulsam! Sabem tipo armazenar arquivo em nuvem? Já ouviram falar nisso? Você armazena arquivos no ar. Naquele cantinho pode ter um arquivo armazenado, nesse cantinho aqui pode ter um arquivo de uma foto da Monalisa. Tá uma porrada de informação passando pelas nossas cabeças nesse instante, igual naquele filme da Fantástica Fábrica de Chocolate que o chocolate fica voando no ar até ser conectado na TV. E aí é uma mistura de frequências de Wi-fi misturado com ondas de rádio, radiação, energia elétrica, o calor dos nossos corpos, e um resquício de quem já passou por aqui. Exatamente. Imagina quanta gente já andou aqui na frente. Imagina quanta gente já passou, já virou passado e deixou a sua marca registrada tanto históricamente como em "ectoplasmamente".

(pausa; o Peixe fala alguma coisa)

FANTASMA
Não, eu não tô dizendo com cem por cento de certeza que depois que você morrer você vá ter a mesma experiência que eu estou tendo. Acho que muito improvável, essa teoria. A verdade é que cada um tem a viagem que acredita. Se você acredita em Jesus, Jesus vai vir te buscar no fim da sua dor. Se você acredita na ciência, pode ser um black-out definitivo, quieto e indolor. Se você acredita no caralho a quatro é o caralho à quatro quem vem te buscar pra te levar pro planeta dos caralho a quatro. A Busca é muito louco, você entendeu? E se é na arte que você acredita, o que mais pode ser da sua eternidade se não for...? (mostra o palco; pausa) Bonitinho, né? (pausa; ênfase dramática) Mas há um porém. Um porém que é um perigo. Se você acredita em pecado, em punição, que possa existir algo de ruim no pós vida dependendo do que você fez na vida, isso é muito perigoso. Por exemplo, você por um acaso acredita que usar cueca de couro não é certo, mas você tem uma cueca de couro, e você usa essa sua cueca de couro porque você não resiste à tentação de usar uma cueca de couro de vez em quando, e todo mundo peca afinal. Quando você morre com um sentimento de culpa, acreditando nisso, o inimigo imaginário do seu amigo imaginário infelizmente leva sua alma para o fogo do inferno por usar cueca de couro, mesmo nem seu amigo e nem o inimigo do seu amigo não serem exatamente reais. Isso tudo porque você quis que fosse assim. Você escolhe a sua desgraça em vida e no pós vida, colega. (pausa) É bem simples, né, gente? Gostosinho. Pelo visto, eu acreditava em teatro e em... peixes. (ri; pausa; ele se perde nos pensamentos) Como foi que eu...? Como foi que aconteceu...? Naquele dia eu... Como foi que eu morri? Naquele dia eu tinha saído do Hopi Hari tarde da noite... aí eu cheguei em casa... Eu tava tomando uma cerveja e... (ele se lembra de repente)

(o Fantasma vai até um microfone num foco; luzes de um show)

FANTASMA
(canta) "Pra que perder tempo
Tentando se salvar
Pra deixar orgulhoso alguém
Sempre há um motivo
De não se sentir bem

E é difícil no final também
É entretenimento
Descanso não sei
E as memórias que vão e que vem
Me deixe sozinho
Sem um corpo ou alma
Que se existe eu também não sei

Mas nos braços de um anjo
Pra voar bem longe daqui
Desse mundo escuro e burro
E não ter mais o que sentir
Eles matam os seus sonhos
Eles só sabem mentir
Só nos braços de um anjo
Eu talvez encontre alguém
Que me tire daqui"

(poeticamente ele continua ainda com fundo musical)

FANTASMA
Por isso que é bom ser uma pessoa boa. Por não ter certeza. Pensar coisa boa, fazer coisa boa, gostar de coisas boas. Tem o lance do carma, sabe? Você não vai lembrar dessas coisas da vida, a memória do vivo morre com o cérebro. E o que sobra? O que sobra é uma viagem quântica, colega, do que você quis que fosse. Vaza do seu corpo aqueles vinte e um gramas de existência e foge pra eternidade de reciclagens. Não tô dizendo que isso vai ser bom, mas é o que é, não tem o que a gente fazer. E presta atenção: nada é por acaso! Vocês estarem aqui hoje não é por acaso. Foi deus quem mandou essa mensagem aqui pra vocês hoje. (brinca) Quem disser que não é um invejoso, mal caráter, sem graça e babaca. Eu tenho o meu direito de culto, não tenho? Então. E deixa eu te dizer, sem querer te assustar: a tal hora, aquela hora, vai chegar pra todo mundo. E aí você vai perceber que eu não vou estar com você e com Jesus porque eu vou estar viajando por entre buracos negros e estrelas, depois de fazer muito teatro ainda!

FANTASMA
"Só nos braços de um anjo
Eu talvez encontre alguém
Que me tire daqui."

(longa pausa; ele desliga e guarda o microfone)

FANTASMA
Eu não lembro se era nisso que eu acreditava. Eu sempre me importei muito com a opinião das pessoas. O que vocês acham? O que vocês estão achando? Hein? Sério. Se alguém quiser responder, eu queria muito ter um retorno, sabe? Eu pareço seguro de mim aqui, mas liga a luz de serviço e tira o texto da cabeça que eu sou um fantasma bem palerma, bem tímido, daqueles que fala bosta quando abre a boca, que fala coisas constrangedoras no meio da rodinha. E aí? Como tá sendo? Eu precisava muito saber. Como é que tá rolando? Como tá sendo pra vocês? (pausa; se irrita meio alucinado) Eu falo da vida! Eu falo da vida! Eu falo da vida! Eu falo da vida! É da vida que eu falo! Eu falo da vida! Eu falo da vida! É da vida que eu falo. (pausa) Tem o lance do carma, sabe? Tem que ser na base da verdade sempre.

(o Peixe o interrompe)

FANTASMA
Sim. (pausa) Ah, é? Tá bom, então. (ele liga um gravador; com a plateia) Eu falei bastante. É o monólogo dele agora, gente, vamos escutar. Eu vou gravar pra poder provar que é real, tá? (longo silêncio; responde) Pode sim. O palco é todo seu.

(o Fantasma se senta para assistir o Peixe falar; longo silêncio; ele ri em alguns momentos; mais silêncio; o Fantasma reage à coisas avulsas ditas pelo Peixe. A luz cai em resistência enquanto o Fantasma ouve o seu monólogo em silêncio)

(black-out)


CENA 3

(uma música Pop apresenta o fim do show do Fantasma; ele dubla e dança loucamente pelo espaço. No fim da música ele agradece como se fosse o final do espetáculo; o Fantasma volta pra casa depois do trabalho tomando uma cerveja e com um pacote de comida japonesa; senta-se frente à TV e muda de canal comendo)

FANTASMA
Ah, meu deus! Procurando Nemo! Adoro! Argh... (ele engasga)

(enquanto a introdução da Disney acontece, ele cai afogando, sem conseguir respirar)

FANTASMA
Ai, caralho! Eu tô morrendo... Socorro! Eu vou morrer... Socorro! Alguém! (ele se arrasta até a saída e se lembra) Ah, não! A cueca! Eu não posso morrer ainda... (ele tenta tirar as calças e é possível ver que ele veste uma cueca de couro; ele tenta tirar a cueca, mas morre antes de conseguir)

(áudio gravado)

FANTASMA
(voz) Eu falei bastante. É o monólogo dele agora, gente, vamos escutar. Eu vou gravar pra poder provar que é real, tá?

(longo silêncio)

PEIXE
(voz) Posso começar?

FANTASMA
(voz) Pode sim. O palco é todo seu.

PEIXE
(voz) Bom... (o encenador pode deixar essas reticências ou colocar alguma frase relevante na voz do Peixe)

FIM








AQUELE ESPETÁCULO SOBRE VERSOS SUBVERSIVOS

(MONÓLOGO)


CENA 1

(um foco em Vini num microfone)

VINI
(um tanto sem vontade, recita com uma cola na mão)
"Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor; nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para poder chorar.

E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito

E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito..."

("O Verbo do Infinito" Vinicius de Moraes; Vini finaliza ironicamente)

VINI
Pronto, gente. Eu acabei de recitar uma poesia famosa. Vinícius. Meu nome. Podem... sei lá, aplaudir. Ou podemos... sei lá, podemos bater um papo. Pula o aplauso. Voltar aqui pra vida real dos sem graças e sem açúcares do pé no chão, da luta diária. Açúcares. (pausa) Eu tenho um nojinho. Não gosto muito. Pra mim metáfora de cu é rola, sabe? Vamo conversar direto. Vamo fazer trabalho artístico direto! Né, não? Clareza no diálogo, molecada. Falar palavrão! Usar da voz do povão! Se povão gosta mais de rebolar até o chão, coloca gente rebolando nessa porra! Se não serve pra quê? Serve pra quê? "Ah, mas você está sendo subversivo demais, meninão! Você está dizendo que é um artista que não gosta de poesia, que não leu Pero Vaz de Caminha, que irá massacrar a cultura da criança, colocando o funk nas suas lembranças? Temos que preservar o velho Chico, e ensinar somente sobre música boa, não venha com Valeska Popozuda, venha com Demônios da Garoa". (pausa) Meu querido, eu dou aula numa periferia. A molecada tá pouco se fudendo pra ficar sentado numa sala de aula ouvindo eu falar pra ela uma coisa que não interessa e não fala da realidade dela. Aquelas crianças não andam de trem, se é que você me entende? O Chico pra ela é o cara da novela. Pra quê que elas vão querer me ouvir? Não tô dizendo que essas coisas não possam ser apresentadas pra elas em algum momento, mas eu tô dizendo que se você quer atrair a atenção do povo para a educação, para o ato artístico ou político, você precisa falar a língua dela. E a língua dela é tão bela e pura como a cultura que você julga digna de aceitação da alta sociedade. Vai ter funk no espetáculo e vai ter poesia de Vinicius de Moraes também, porra, por que não? Meu nome é Vinícius porque minha mãe adorava o cara. Acho que talvez seja essa a minha insistência no nojinho que eu tenho com aquele tipo de artista-poeta-careta, manja? É porque... Poesia sempre me perseguiu. Tenho dificuldades de acreditar de verdade...

(black-out rápido; em um telão vemos crianças com fome, cenas de guerra, violência homofóbica, etc; enquanto Vini canta)

VINI
"Não posso ficar
Nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor
Mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã

E além disso, mulher
Tem outra coisa
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar

Sou filho único
Tenho minha casa pra olhar

Bam zam zam zam zam zam
Quaiscalingudum
Quaiscalingudum
Quaiscalingudum"

("Trem das Onze" de Adoniran Barbosa)


CENA 2

(quando as luzes se acendem Vini está vestido como rapper americano)

VINI
"É som de preto, de favelado
mas quando toca ninguém fica parado.(2x)

O nosso som não tem idade, não tem raça
E nem vê cor
Mas a sociedade pra gente não dá valor
Só querem nos criticar pensam que somos animais
Se existia o lado ruim hoje não existe mais
Porque o funkeiro de hoje em dia caiu na real
Essa história de porrada isso e coisa banal
Agora pare e pense, se ligue na responsa
Se ontem foi a tempestade hoje vira abonança

É som de preto
De favelado
Mas quando toca ninguém fica parado." (2x)

VINI
Eu até vejo a minha mãe falando. "Ai, meu deus do céu, o Vinícius tá revirando no caixão! Ser comparado com essa porcaria na importância da música popular brasileira! Onde já se viu?" (pausa). Sub-versivo: SUB-VER-SI-VO. É um adjetivo que se originou a partir da palavra subversu, do latim, com o significado de desabado; que subverte; revolucionário, rebelião. Não pode? Pode sim. Não pode beijar na boca de meninos? Pode sim. Não pode falar palavrão? Pode sim, caralho, porra, buceta, cu, Michel Temer. Ação de subverter, virar de baixo pra cima; arruinar, afundar. Insubordinação; oposição a normas, autoridades, instituições, leis, poesias de gente do século passado que não falam sobre a minha realidade virtual e new age, do novo milêncio! Perturbação; ação ou efeito de perturbar o desenvolvimento normal de alguma coisa. Conjunto dos procedimentos que visam a queda de um sistema político, econômico ou social: subversão política. Stalin matou foi pouco. Destruição; ação de destruir, de aniquilar, de derrubar. Alteração ou aniquilamento de uma ordem estabelecida. Perversão de ordem moral. Não pode fumar maconha? Pode sim e pode fumar no palco sim. Porque eu nasci pelado nessa porra desse planeta e não participei da reunião que fizeram pra decidir o que eu posso ou não posso fazer. (acende um baseado; silêncio) E isso pode ser bonito também. Pode ter poesia comuflada, entende? Uma poesia camuflada na palavra cu, por exemplo. Por que não? Cu faz parte da vida, faz parte do corpo. Qual é o medo? Eu não consigo entender do que é que as pessoas estão fugindo, o que é que a gente está esperando.

(silêncio)

VINI
Aí de repente, como acontece com todo mundo, no meio da juventude você se apaixona. E aí fodeu. Tudo muda.

(ele se apaixona por alguém da plateia)

VINI
(canta) "Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só pra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar."

VINI
Isso é muito louco, não é? Assim, sem mais nem menos você olha pra alguém e daí todos os poemas e rimas mais ridículos que você desprezava começa a fazer todo sentido. Aí você chora ouvindo Wando, você começa a gostar até daquelas músicas de sertanejo universitário mais brega que existe! Você vai firme naquele pagodão sofrido e na poesia sofrida desses corações incompreendidos que o ser humano insiste em cultivar. Os filmes que você odiava você assiste porque a pessoa que você ama gosta. Até mesmo os filmes do Adam Sandler, você assiste, puxa vida, Click é super legal! Se ela gosta de novela, você assiste. Se ela gosta de High School Musical você aprende o dueto do casal principal. Porque na hora do amor, poesia é o outro.

VINI
(se declara para o seu amor)
"Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude."

("Soneto do Amor Total" de Vinícius de Moraes)

VINI
Só que aí, pode acontecer de a pessoa ter outras intenções. Às vezes pra ela era só uma trepada. É bonito também, mas não é amor. Devia soar poético, afinal cu também pode ser poesia, né? Mas dói. E coisas que rimam com dor faz ficar mais brega e clichê ainda. Aí me volta aquele pequeno nojo. Sabem? Aquele nojinho por não acreditar em poesia de verdade. Me soa tudo um tanto falso, dá pra entender o que eu quero dizer? Tem que ser bom pra caralho pra você me convencer de que você está sendo sincero nas palavras. Não é só pegar rimar amor com dor e dizer "pronto, sou poeta". É bem mais lá na fundo. (pausa) Aí a pessoa vai embora. (zoando) E no calor do seu amor, a dor não perdoou, e fez flor de cocô no coração desse senhor que aqui estou. Amor e Dor. De Vinícius. Eu. Minha primeira poesia original.

(ele se entristece)

VINI
"Vai, minha tristeza, e diz a ela
Que sem ela não pode ser
Diz-lhe, numa prece, que ela regresse
Porque eu não posso mais sofrer

Chega de saudade, a realidade é que sem ela
Não há paz, não há beleza
É só tristeza e a melancolia
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai

Mas, se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca
Pois há menos peixinhos a nadar no mar
Do que os beijinhos que eu darei na sua boca

Dentro dos meus braços
Os abraços hão de ser milhões de abraços
Apertado assim, colado assim, calado assim
Abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim

Que é pra acabar com esse negócio de viver longe de mim
Não quero mais esse negócio de você viver assim
Vamos deixar desse negócio de você viver sem mim

("Chega de Saudade" de Vinícius de Moraes)

VINI
Depois de um fim de relacionamento conturbado com você ouvindo Adele ao nescer do sol, e passando o tempo de ler aqueles poemas que sua mãe falava pra você ler, você quer mais é curtir a nova fase de solteiro agora! Putaria é poesia sim!

(enche uma camisinha como um balão e desenha um coração)

VINI
(canta ouvindo a música original)
Então mama,
Pega no meu grelo e mama
Me chama de piranha na cama
Minha xota quer gozar,
Quero dar, quero te dar

Mama,
Pega no meu grelo e mama
Me chama de piranha na cama
Minha xota quer gozar,
Quero dar, quero te dar"

("Mama" Valeska Popozuda)

VINI
Acabou! Minha mãe tentou, minha professora tentou, a sociedade tentou! Mas eu prefiro ver um filme do Homem-Aranha do que assistir um filme chato do Woody Allen ou do Clint Eastwood. Eu prefiro ir no Playarte da República do que ir no Itaú Cultural. Eu prefiro ler toda a saga do Harry Potter de novo do que ler A Moreninha ou o Primo Basílio. Não tô julgando a importância dessas coisas, não tô dizendo que o Primo Basílio não deve ser uma história legal! É que não dá tempo mais de ver tudo e todos de todas as eras existentes. Tem que haver um filtro pessoal, cara, do gosto pessoal. E acontece que eu sou da geração Pokémon, da geração Power Rangers, porra! Eu dancei Chiquititas! Dancei! Minha velocidade é outra! A hora que eu tiver um tempo eu assisto, eu escuto essa música do Chico que você tá falando que é ótima e que todo mundo que é inteligente tem que conhecer. Depois! Eu tenho os meus gostos pessoais e eu não vi nenhum cajado divino dizendo que tal cultura é superior à outra. Cadê? Não quero poesia avulsa nos meus espetáculos! Eu acho que poesia cansa a juventude! (pausa; ofegante) Muito obrigado. (ele sai)

(black-out)


CENA 3

(Vini está focado em seu notebook; no telão, vemos que escreve no Facebook: "Eu acho que a poesia cansa a juventude! Muito obrigado."; ele posta)

VINI
"Você tem que ser macho". Jamais, meu bem, eu já gostava de música da Disney muito antes de Let It Go, tá bom? "Você tem que acreditar em deus". Jamais, meu bem, não faz sentido você me pedir pra provar que ele NÃO existe. Primeiro prove que ele existe. Dãr. E segundo que eu não sou obrigado por nenhuma força sobrenatural. "Você então tem que ser amante do dinheiro e agradecer aos policiais heróis pela proteção contra a marginalidade". Jamais, meu bem, eu já tomei tapa da polícia, eu sou a margem também, vim de família pobre - não miserável, graças ao acaso - e é exatamente por isso que eu sei que não é trabalhando que se fica rico não, é explorando mão de obra alheia e tendo cães de guarda. "Ah, mas então o que você quer da sua vida? Pixar muro?" Eu quero a divisão da terra em comunidades, comunidades que façam comunhão, grupos de seres humanos vivendo juntos e dividindo a riqueza natural por igual pra cada cidadão, não em competição de quem é o mais bam-bam-bam! Quer me perseguir? A gente já tá se acostumando com isso. "Você tem que ao menos arrumar um emprego." (se irrita) Eu tô trabalhando aqui! Eu tô suado! Eu cantei, eu recitei, eu tô trabalhando como qualquer outra pessoa aqui! "Mas você tá aí no Facebook." (grita) E o que é que tem isso, porra? Você também! (pausa) "Ah, vá pra Cuba, seu comunistinha viadinho de merda!"

(Vini faz uma careta de muita raiva, ele quase explode de ódio)

VINI
Eu tive um câncer por causa de treta do Facebook. Eu me envolvo muito. Eu tive que pixar um muro de verdade pra liberar essa energia ruim que cresce dentro de mim com esse mundo nojento. Por exemplo, a pessoa quer ter o direito de palpitar se é certo ou errado eu dar o meu cu sendo homem, porque homem no caso só poderia transar com mulher, e ele ainda espera que eu respeite essa opinião dele sobre o meu cu, eu tenho que ficar calado ainda. Sobre o meu cu ele quer ter uma opinião e eu tenho que ter respeito sobre a opinião dele que é sobre o meu cu. Faz sentido uma coisa dessa?  Eu tenho ou não tenho o direito de rebate? Eu também sou totalmente contra a violência, mas, como eu já disse, eu também não acredito na luta com poesia e rimas e coisas lindas e cheirosas sem falar da verdade e da dureza bruta que é a vida, sem falar da merda que a gente caga, das milhões de crianças que vão dormir na rua na noite de hoje - detalhe: nenhuma delas é cubana, tá bom, queridinhos? - , e das inúmeras injustiças cometidas todos os dias contra os negros, contra as mulheres, contra as crianças. Fere-se o outro por conta da sexualidade dela, mata-se o outro por causa de coisas materiais, escraviza um ser que respira pra diversão e prazer de poucos... E querem que eu entregue flor pra policial na Paulista? Que eu recite uma poesia na cara do governador? Vai mudar o quê? A gente tem que ser SUB-VER-SI-VO. Aquele abaixo do verso. Que não dá o primeiro bote, mas se me atacá eu vou atacá! (pausa) Stalin matou foi pouco.

(um aviãozinho de papel entra em cena voando)

VINI
Olha. Que bonitinho. Quase poético. Um avião de papel. (ele abre) Ah. Uma poesia. Pro final do espetáculo. Fofo. Eu não sou aquele todo frio também, sabe. Minha questão aqui é hoje é tirar um tipo de cultura de um pedestal que não existe. Não existe o pedestal e a ordem divina da verdadeira arte. Gosto é que nem o quê que todo mundo tem o seu e que cada um deveria cuidar somente dele? Exatamente. O cu. (lê o aviãozinho) ""O Velho e a Flor" de Vinicius de Moraes. Assinado: Mamãe."

"Por céus e mares eu andei,
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber
O que é o amor.

Ninguém sabia me dizer,
Eu já queria até morrer
Quando um velhinho
Com uma flor assim falou:

O amor é o carinho,
É o espinho que não se vê em cada flor.
É a vida quando
Chega sangrando aberta
em pétalas de amor."

(ao fim do poema um funk proibidão termina o espetáculo enquanto Vini rebola até o chão)

FIM



O SEGREDO E EXPERIÊNCIA DE UM VAMPIRO CANCERÍGENO E CANCERIANO

PERSONAGEM
Vampiro, com muitas espinhas e cadavérico
Enfermeira, clássica

CENÁRIO: Um altar feito de cigarros e remédios à direita.

CENA 1

(um foco destaca o rosto fantasmagórico do Vampiro na escuridão; por alguns longos segundos essa é a única imagem. Em vídeo rápido vemos diversas atrocidades pelo mundo; morte, fome, violência. O Vampiro reage com dor; ele está semi nu. Ao fim do vídeo o Vampiro tem uma ânsia muito forte e sai pra vomitar. Volta babando uma gosma verde. Ele sorri um pouco envergonhado pra plateia e sai vomitar novamente. Ao som do vômito, um choro de criança. O Vampiro entra carregando um bebê verde, todo melecado; o bebê se mexe. O Vampiro está espantado e tem uma cena materna rápida com o bebê; depois se comunica misterioso)

VAMPIRO
No início só havia o vazio. O verbo que transbordava possibilidades. Das quais você é uma delas. Quem? O quê? Quando? Enormes isótopos quânticos mecânicos. Física de possibilidades. Permissão para se mostrar existente. A mente suprema. O cérebro é capaz de milhões de pensamentos... uma rede neural. Cascata de bioquímicos misturado à memórias holográficas. A resposta emocional! Moléculas. O cérebro não sabe a diferença entre o que ele vê em seu ambiente e do que ele se lembra. Consegue figurar? Consegue por em imagem na cachola? Você está correndo e sentado numa holobase, nós estamos correndo e sentados numa holobase completamente digital! Nada é concreto e duro. Seja qual for o modo que observamos o mundo à nossa volta, sintam o gelado da minha pele. Eu os autorizo. Sintam o gelado, a forma que eu sugo o calor dos vossos corpos... porque não há ganho de frio, não tem como ganhar frio; o que há é sempre a perda do calor.

(pausa; o Vampiro volta ao bebê que continua chorando; ele canta ninando; o bebê se acalma)

VAMPIRO
"Olha os cavalinhos galopando, galopando, galopando
Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem !

Vamos cavalgar sem parar
Ver montanhas e os bichos
Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem !

Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem !
Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem !"

(a Enfermeira entra, acende uns cinco cigarros de uma vez e dá pro Vampiro que não fuma nenhum, mas que continua os segurando como fumante; a Enfermeira sai com o bebê cantarolando a música do cavalinho)

VAMPIRO
Uma coisa que eu tenho dificuldade de entender é: como é que a gente consegue ver isso que tá acontecendo aqui como realidade, se o self que cada um de nós está determinando aqui como real é intangível? "Incostável"? Consegue reparar na loucura dessa merda? A sua bunda não está encostada na cadeira, a cadeira está repelindo você. O quão fundo a gente está disposto de entrar no buraco da Alice? Depois que entra no buraco que cura a farsa, meus amigos, um vampiro, eu no caso, não é ficção científica. Há possibilidade e eu posso provar a minha existência!

(o Vampiro prepara uma máquina e um painel, uma cópia ilustrativa do Experimento das Fendas)

VAMPIRO
A física quântica! "Ah, mas cadê o sangue? É teatro de Vampiro! Teatro gótico! Tem que ter sangue, não coisa chata de matemática!" Cresça! Cresça! Vamos brincar com o lúdico e falando de coisa séria ao mesmo tempo! Por que estamos aqui? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é o propósito? Qual é a pergunta certa à se fazer? Qual é o propósito? (pausa) O propósito está nas entrelinhas, como a DMT, a dimetiltriptamina, a tal molécula do espírito. E tinha de ser um bagulho alucinógeno, né, molecada? Tinha de ser. Graças à deus. Com D minúsculo.

(ele termina de organizar o experimento)

VAMPIRO
O Experimento das Fendas! Nós não vamos criar nenhum Frankenstein nem viajar através do tempo com esse experimento, mas vocês vão descobrir uma coisa muito louca sobre a nossa vida. Em meados do século 18, o físico, médico e egiptólogo britânico Thomas Young conseguiu refutar umas das afirmações de Isaac Newton: a de que a Luz era composta por “corpúsculos”, unidades quantificadas – o que hoje se chamaria de partículas subatômicas. Para fazer isso ele realizou um experimento muito simples: usando uma grande caixa fechada, ele inseriu um  visor e duas pequenas fendas por onde a luz do sol deveria entrar. Ao olhar pelo visor ele observaria a luz projetada do outro lado da caixa, refletida na parede interna oposta. Como estamos no século XXI essa minha máquina é uma máquina que envia partículas de luz para onde a direcionarmos, no caso, através dessas duas fendas. (pausa) Existem duas possibilidades de como a luz poderia passar pelas fendas: o elétron é composto ou como Isaac Newton afirmava: como bolinhas de luz sendo atiradas em partículas, que deixaria aqui nessa parede ao fundo o formato de duas fendas, assim como ela o é no painel. Ou ela atravessaria as fendas como ondas, fazendo ondulações que se anulam e se multiplicam, como quando a gente joga uma pedra em um lago e ela forma várias ondinhas por bater uma na outra; formando então aqui na parede do fundo várias marcas de fendas diminuindo na sua intensidade à medida que ela se afasta do ponto inicial. Conseguiram entender? Ou duas fendas de luz somente, agindo como bolinhas - pra exemplificar - , ou agindo como ondas, formando várias fendas aqui atrás. O que vocês acham? (ele faz uma votação rápida da resposta com a plateia) Bom, nós vamos usar essa lâmpada fluorescente pra ver o resultado.

(o Vampiro coloca um óculos e liga a máquina com bastante suspense; a máquina faz um barulho estrondoso e solta um pequeno raio de luz entre as fendas)

VAMPIRO
Agora vamos ver.

(ele vai até a parede do outro lado e acende a luz fluorescente; ve-se apenas duas fendas)

VAMPIRO
Duas fendas. Isaac Newton estava certo, caralho! Óbvio que sim. Quem aí duvidou do grande Isaac, porra? (pausa) Mas espere só um pouco. Não é essa a maluquice descoberta pela ciência, essa não é a grande parte da história! A grande maluquice que acontece é que as coisas ficam um pouco diferentes se não há ninguém observando. É isso mesmo que você ouviu. Se não houver nenhum ser humano olhando, essas partículas safadinhas de luz agem de forma diferente! Duvidam? Peço que todos se virem de costas e vamos fazer o experimento mais uma vez. Por favor, todo mundo. Não pode ficar ninguém olhando.

(ele faz com que todos virem de costas pra máquina)

VAMPIRO
Quando não há um observador, quando não há um ser que conteste a forma como a luz deveria agir, ela age do jeito que ela quiser.

(ele liga a máquina novamente; um raio rápido de luz)

VAMPIRO
Podem se virar.

(com a lâmpada fluorescente agora a luz agiu como onda e formou várias fendas da parede de trás)

VAMPIRO
Shazan! (pausa) Tem horas que ela escolhe agir como ondas e tem horas que ela escolhe agir como bolinhas. Obviamente que isso daqui tudo é ilustrativo, é tipo aquelas fotos de bolacha recheada que não se parece muito com a bolacha real, mas tá valendo. Não se esqueçam que vocês vieram ao teatro e não à uma feira de ciência. (apenas com o olhar ele tenta demonstrar o quanto o experimento foi grandioso) Captaram? Conseguiram figurar? Você-move-montanhas. Nós temos a capacidade de mudar e de nos confundir com a realidade ao nosso redor. O observador, seres que olham e julgam, tem total poder sobre o mundo físico. O deus com letra minúscula vive dentro de nós, porque NÓS SOMOS ELE!

(o bebê começa a chorar fora de cena)

VAMPIRO
Eu uso muito do tabaco pra me suportar. Eu coloquei o tabaco nesse pedestal aqui. É lógico que a coisa pudesse ficar verde. Mas vocês acreditam que eu sempre esperei? Eu nunca fumei tranquilo. Acho que tem gente que fuma com tanta tranquilidade que vai fumar até os noventa e tudo bem. Eu não. Eu nunca fui da turma dos tranquilos pra nada. Eu sempre soube que uma hora ia fuder, que uma hora ia dar merda. Eu devia ter pensado nos preservativos.

(a Enfermeira entra com o bebê)

ENFERMEIRA
Ele precisa mamar.

VAMPIRO
Claro que precisa. Agora eu sou a mãe dessa coisa! Caralho.

ENFERMEIRA
Proteínas. Se a gente não fizer alguma coisa ele vai acabar com você.

VAMPIRO
Me dá ele aqui. Coisinha nojentinha da mamãe.

ENFERMEIRA
(ela obedece) Podemos iniciar a aplicação, se o senhor quiser.

VAMPIRO
Podemos sim, querida. Obrigado.

(demoradamente ela prepara alguns instrumentos em Vampiro; longa cena de preparação)

ENFERMEIRA
Posso começar? Você vai perder o paladar, a saliva, o prazer da degustação. Chocolate vai ter gosto de bosta e pizza vai parecer que você tá mastigando borracha queimada. Por quarenta dias e quarenta noites, irônicamente você ficará de jejum, como Jesus no deserto. Sua língua irá se partir e seu pescoço queimará no fogo dos infernos. Você sentirá o cheiro da comida, lembrará de como um lanche bem filho da puta de gostoso com batata-frita e Coca-Cola é a coisa que você mais ama e não irá conseguir comer nadinha de nada porque a sua garganta vai estar em carne viva. Todo mundo ao seu redor vai cozinhar de tudo e você vai ter que ver e sentir apenas saudade, se corroendo de raiva por conta do cheiro delicioso que entra pelas suas narinas. Escondidinho de carne-seca, lasanha de quatro queijos, batata recheada com bacon, brócolis e cheddar, e mousses e brigadeiros e até mesmo um simples pão com ovo e um arroz com feijão. Tudo virará saudade. Jejum involuntário. Assine aqui, por favor.

VAMPIRO
Por favor, eu prefiro morrer...

ENFERMEIRA
Não seja bobo, meu amor. É da agonia que aprendemos o nosso maior valor quântico.

(ela o força a assinar o contrato)

ENFERMEIRA
Isso. Assim. Certinho. Deus com D minúsculo vai te curar agora.

(ela liga o equipamento e o Vampiro e o bebê sofrem horripilantemente, como se estivessem em uma cadeira elétrica)

VAMPIRO
Um lanche bem filho da puta de gostoso com batata-frita e Coca-Cola ! Nããããão!

(black-out; longo silêncio; a Enfermeira aparece em um foco sozinha)

ENFERMEIRA
Tudo o que você mais precisa nesse momento é de arte por distração. Entertainment, baby.

(ela canta e dança toscamente)

ENFERMEIRA
"Vendo os pôneis passeando
Vi que o rabinho faz (pish, pish, psih)
Vi que a patinha faz (tlok, tlok, tlok)
Vendo os pôneis passeando

Vendo os pôneis passeando
Vi que o rabinho faz (pish, pish,psih)
Vi que a patinha faz (tlok, tlok, tlok)
Vendo os pôneis passeando"

Gratidão.

(black-out)


CENA 2

(um foco destaca o Vampiro sorridente vestido de cigana; a Enfermeira repousa sorridente ao lado; um banquete está servido)

VAMPIRO e ENFERMEIRA
(cantam)
"Não sei o que fazer pra mudar o que você pré julga de mim
Não sei pois julgar, contestar, observar, adaptar é seu jeito e o meu jeito enfim
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou

Estou sempre pensando em aparar os cabelos de alguém
E sempre tentando mudar a direção do trem
A noite a luz do meu quarto eu não quero apagar
Pra que você não tropece na escada quando chegar

Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou

VAMPIRO
O meu egoísmo é tão egoísta que o auge do meu egoísmo é sofrer por você

Mas não sei porque nasci pra querer ajudar a querer consertar o que não pode ser
Não sei pois nasci para isso e aquilo e o enguiço de tanto querer

Dá-lhe, Raul!

VAMPIRO e ENFERMEIRA
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
Carpinteiro do universo inteiro eu sou

VAMPIRO
Carpinteiro do universo inteiro eu sou
No final,
Carpinteiro de mim!

(versão livre de "Carpinteiro do Universo" de Raul Seixas)

ENFERMEIRA
Entretenimento, bebê. Entretenimento.

VAMPIRO
Exato. E um gorduroso e sanguinário e energéticamente vegano jantar. Depende da sua preferência e do seu nível evolutivo! Eu ainda sou um macaco. Uh-uh-ah-ah! E você, linda?

ENFERMEIRA
Proteínas, carboidratos e ácidos ribonucleicos.

VAMPIRO
DMT. Ayahuasca...

ENFERMEIRA
Marijuana!

VAMPIRO
É o nome da minha mãe!

ENFERMEIRA
Da minha também!

(eles se abraçam como num final feliz)

VAMPIRO
Eu nasci no último dia de câncer. Dia vinte e um de julho a gente estreou, eu nem estava completamente recuperado ainda. Pode ser que tudo isso estivesse escrito nas estrelas também.

ENFERMEIRA
Como pode ser que não.

VAMPIRO
Como pode ser que não.

ENFERMEIRA
Como pode ser só o acaso.

VAMPIRO
Sim, sim. Mas que o acaso não deixa de ser quânticamente obra de um dos destinos possíveisl!

ENFERMEIRA
Exatamente!

VAMPIRO
Exatamente!

ENFERMEIRA
Exatamente! Puta que o pariu! Eu tô ficando maluca com essa experiência!

VAMPIRO
Eu sei, eu sei. Com tanto jejum e tanta provação física, e dor e desconforto, você para pra pensar em alguma teoria correta pra essa porra-louquice toda. Foi tipo uma experiência budista, manja?

ENFERMEIRA
Manjo, manjo.

VAMPIRO
Uma coisa que teve noite de eu viajar no subconsciente mesmo, sabe! Coisas e sensações que se eu fosse só mais um pouquinho ignorante do que eu sou, eu poderia dizer que aquele deus com letra maiúscula falou diretamente comigo. Juro. Diretamente que eu digo é diretamente mesmo, com claras palavras ecoando no meu ouvido canceriano. Com o segredo revelado pude me libertar, pude sair do armário quântico de uma só vez. Mas há um problema. Nós estamos muito bem inseridos nesse sistema e muito bem confundidos pra conseguirmos chegar no nirvana e compreender qual é a realidade vigente todo o tempo. Existe mais do que uma realidade? O que é mais provável, uma cobra falante ou viagem no tempo? Eu aposto cinquenta por cento pra cada uma das possibilidades, porra! Então é difícil sair do sentimento físico, entende? Eu sei que é difícil. É difícil em cada segundo que você tenta colocar a teoria na prática. Tem hora que a crença de que nossos sonhos podem se realizar a qualquer momento se disfazem com uma gotinha mínima de tristeza química em nosso sangue biológico. A gente precisa começar a ver a biologia de uma outra forma.

ENFERMEIRA
Concordo cem por cento. A biologia bruta é pura enganação.

VAMPIRO
Eu creio que nós somos seres completamente digitais! Este é o meu segredo de carne e osso. Exposto. Em entretenimento pra vocês se lambuzarem. Vocês estão servidos? Essa mesa é pra todos nós. Podem se servir, fiquem à vontade.

(eles repartem o banquete com a plateia)

VAMPIRO
Por favor, saboreiem devagar. Todas essas delícias são da "Nome da Lanchonete/Padaria/Restaurante" que patrocinou o nosso espetáculo. Muito obrigado por incentivar a arte teatral e a culinária como arte. (pausa) Percebam todos que a língua de vocês com as glândulas do paladar é quem envia a sensação de prazer para o cérebro, separando o doce do salgado, o quente do gelado, o seco e o suave. Não passa de uma sensação cerebral do toque de dois conectores químicos. E tudo isso é lindo pra porra!

(eles terminam de comer em silêncio; Vampiro vai perdendo a sua alegria aos poucos; em dado momento ele se dirige até o altar de cigarros; em vídeo vemos as mesmas imagens das atrocidades do mundo; morte, fome, violência)

ENFERMEIRA
"Olha os cavalinhos galopando, galopando, galopando
Vou andar de cavalinho
Vem comigo vem!"

VAMPIRO
Tem hora que a crença de que nossos sonhos podem se realizar a qualquer momento estão no ápice. Parece até que você é dono da maior fé do mundo. Você sente o calor saindo da sua mão e a positividade é tudo o que você tem! E você é feliz mesmo só tendo o sol! Mesmo não tendo nada, mesmo você estando doente, mesmo vendo a violência, mesmo passando fome, mesmo perdendo quem você mais ama, mesmo você presenciando e vendo a morte em carne e osso e sangue. Você sorri, porque acredita que tudo aquilo vai melhorar. E se não melhorar, histórias tristes costumam ser histórias magníficas, então está tudo bem também! (gargalha e destrói o altar de cigarros) Se tudo der errado e acontecer de eu morrer amanhã, ainda assim essa foi a história que era pra ser. Improvisa, porra. Improvisa naquilo que você tem agora.

(o Vampiro se senta em uma cadeira de rodas e a Enfermeira sai com ele para um passeio)

ENFERMEIRA
Você vai continuar com aquele sonho?

VAMPIRO
Oi?

ENFERMEIRA
Mesmo nessas condições, você continua pensando naquele sonho.

VAMPIRO
Aquele sonho? Aquele aquele?

ENFERMEIRA
Aquele. O de sempre. O fantástico, magnífico.

VAMPIRO
É a única coisa que eu tenho que eu posso dizer que é meu de verdade.

ENFERMEIRA
Não é muito pro seu caminhãozinho, não?

VAMPIRO
O que é o grande e o que é o pequeno? Na probabilidade da vida tem muita coisa grande que é pequena e muita coisa pequena que é grande. Tudo é muito relativo.

ENFERMEIRA
Ai, você só fala bosta. Será que você aguenta até quando, hein, colega?

VAMPIRO
Até quando eu quiser.

ENFERMEIRA
Mas você é um vampiro de verdade, lindo. Você chupa o sofrimento dos outros de verdade. E nem adianta falar pra você usar preservativo que você não usa, eu sei que você não usa. Logo, logo você tem um bebê de novo. Escreva o que eu tô dizendo.

VAMPIRO
Deus me livre!

ENFERMEIRA
Eu sou totalmente contra o aborto, saiba disso.

VAMPIRO
Se o corpo é meu e eu quiser abortar eu vou dar um jeito, com sua aprovação ou não.

ENFERMEIRA
Eu sou contra. Faço porque dá dinheiro, mas eu sou contra.

VAMPIRO
Entendo.

ENFERMEIRA
É verdade, ué.

(silêncio)

ENFERMEIRA
O que você não pode é ficar esperando sentado com essa bunda parado sem querer fazer nada.

VAMPIRO
Por que não posso?

ENFERMEIRA
Porque eu tô falando que não pode.

VAMPIRO
Mas pois então pare de fazer as regras da minha vida. Porque se não é tipo maldição. O que você fala pra mim também constrói quem eu sou, você também tem o poder de ditar as regras. E até de poder me levar a óbito!

ENFERMEIRA
Não é tão assim que funciona. Eu não estou te maldizendo, eu estou te alertando.

VAMPIRO
Me alertando que é possível que eu não alcance os meus objetivos se ficar aqui sentado porque é uma das possibilidades. Eu sei disso. Mas por que você não me alerta que eu posso conseguir por magia cósmica? É a mesma probabilidade, colega! Por que escolher o negativo? Por que pensar logo em ficar doente se você tomar um sereno, há a possibilidade de que você não pegue doença nenhuma no dia seguinte!

ENFERMEIRA
É difícil pensar assim. A segurança não existe, a gente tá em perigo o tempo inteiro.

VAMPIRO
Eu antigamente tinha medo de andar de carro na estrada. De carona, porque eu não dirijo. Morria de medo de estrada. Aí eu ficava a viagem toda na estrada tenso, com o pescoço duro, sofrendo em cada ultrapassagem, em cada freada mais brusca. Eu eu nunca sofri nenhum acidente, como sabe, mas chegava em todos os meus destinos finais todo doído e saído de horas de tortura com dores físicas pelo corpo e mente. O que eu concluí? Concluí que se fosse pra ter algum acidente, pra acontecer alguma coisa, eu estar nervoso ou não com aquilo não ia impedir que acontecesse, e que além do sofrimento que deve ser de ficar preso entre as ferragens, ou de morrer tragicamente decapitado ou queimado, eu ficava sofrendo o tempo todo na espectativa do então acontecimento antes mesmo de alguma coisa acontecer. Então... se for pra acontecer, guarde energia pra quando acontecer, entendeu? Vai ser inevitável as coisas acontecerem na nossa vida, entende? Mas agora, a espectativa do sofrimento, essa sim é evitável. Agora eu durmo que nem um urso quando eu pego estrada. Capoto e só chego na alegria.

ENFERMEIRA
Essa alegria me irrita um pouco. Eu acho que a gente precisa ser um pouco pé no chão também. Pensar na possibilidade de dar merda, pra não se decepcionar.

VAMPIRO
Colega, em nenhuma hora eu disse pra se criar espectativas também...

ENFERMEIRA
Disse sim. Você é do tipo fudido que quer falar que tá tudo bem o tempo todo. O positivista.

VAMPIRO
(se irrita) Eu acho que as coisas fluem melhor se você estiver bem no presente. Porque o presente é a única coisa que importa! É isso que eu tô querendo dizer! Entretenimento é o agora! É o agora. Eu gastar meu tempo com vocês contando essa história, vocês gastando o tempo de vocês pra ouvir e sentir. Esse é o sentido da existência.

ENFERMEIRA
O que? Arte? (ri)

VAMPIRO
É. Arte.

ENFERMEIRA
Saúde, educação, segurança é muito mais importante do que cultura, meu amor.

VAMPIRO
Você não sabe o que está dizendo. Um completa o outro, meu amor.

ENFERMEIRA
Entretenimento, amigão! História de vampiro! Não tem tanta importância quanto comprar outra máquina de quimioterapia.

VAMPIRO
Você não sabe o que está dizendo...

ENFERMEIRA
E tem? Você acha que sua arte é mais importante do que alguém que está morrendo nesse instante por conta de um câncer?

VAMPIRO
Nem mais e nem menos...

ENFERMEIRA
Você é muito egocêntrico mesmo!

VAMPIRO
Você está distorcendo as importâncias!

ENFERMEIRA
Eu estou colocando os seus pés no chão, colega. Eu estou colocando os seus pés no chão. Acabou!

(a Enfermeira sai; o Vampiro fica por um tempo esperando que ela volte; ansiosamente ele espera)

VAMPIRO
(canta toscamente romântico)
"Meus pés não tocam mais o chão
Meus olhos não vêm a minha direção
Da minha boca saem coisas sem sentido
Você era o meu farol e hoje estou perdido

O sofrimento vem à noite sem pudor
Somente o sono ameniza a minha dor
Mas e depois? E quando o dia clarear?
Quero viver do teu sorriso, teu olhar

Eu corro pro mar pra não lembrar você
E o vento me traz o que eu quero esquecer
Entre os soluços do meu choro eu tento te explicar
Nos teus braços é o meu lugar
Contemplando as estrelas, minha solidão
Aperta forte o peito, é mais que uma emoção
Esqueci do meu orgulho pra você voltar
Permaneço sem amor, sem luz, sem ar"

(Música "Sem Ar" do D'Black)

(o Vampiro vive um instante ordinário de sua rotina; ele arruma algumas coisas em cena ordinariamente; uma cena de tédio, mas de aceitação)

VAMPIRO
Só o amor, ou a perda dele faz a gente se descaracterizar. (ele tira os dentes de vampiro e o ator vai desconstruindo o personagem)

ATOR
Era ficção sim. Boa parte. Não o silêncio. Não a saudade. No fim das contas tudo o que a gente quer é ser amado do jeito que a gente é.

(ele toma um grande gole de um copo e inicia uma música batucada com o copo; a Enfermeira entra cantando)

ENFERMEIRA
"Trago um bilhete, vamos viajar
Lanche com batata pra acompanhar
Ter prazer em ser o que você quiser ser
Vamos já, agora, vamos já

E depois, e depois
Não importa o que vem depois
Se é feijão com arroz
Ou costelinha de boi
Não, não importa o que vem depois

E depois, e depois
Não importa o que vem depois
Se vai morrer amanhã
Melhor que deixe pra amanhã, pois
Vamos sair hoje só nós dois."

(black-out)

FIM