O FANTASMA DO PEIXE

PERSONAGEM
Fantasma
Peixe (pode ser um ator/atriz ou não)

CENÁRIO: Uma mesinha e um aquário com o Peixe.


PRÓLOGO

(áudio gravado)

FANTASMA
(voz) Eu falei bastante. É o monólogo dele agora, gente, vamos escutar. Eu vou gravar pra poder provar que é real, tá?

(longo silêncio)

FANTASMA
(voz) Pode sim. O palco é todo seu.


CENA 1

(o Fantasma surge em um canto escuro com cara de assombração clássica; música de suspense; black-out; ele muda de canto e faz a mesma cara, um tanto cômico, tentando parecer assustador; repetição em focos em lugares opostos do palco. No auge do terror, quando supostamente algo devesse acontecer, as luzes se acendem e o Fantasma desmonta o personagem. É fim de expediente e o Fantasma está voltando pra casa depois de sua performance; ele chega em casa e se senta ao lado do Peixe)

FANTASMA
Oi, queridão. Sentiu a minha falta? (pausa) Bom saber. (pausa) Eu estou um pouco cansado sim, hoje foi um público difícil. Sabe como é. E você? (pausa) Acredito. (pausa) Eu acredito em tudo. É foda. Eu sei que é foda. (pausa) Seu venenoso! Nem todo peixe pode comer cru, colega, se você não souber qual é o certo você pode morrer envenenado. Ouvi dizer que se você misturar Sushi com cerveja pode dar o maior problema. É o novo leite com manga. (pausa; ele de repente vê a plateia) Espere um pouco, querido. (se levanta) Sshi! Cala a boca! (pausa) Não acredito. (pausa) Eu sei que eu prometi não trazer trabalho pra casa, mas tem como você me deixar pensar um pouco? (pausa; ele sai andar pelo espaço procurando alguma coisa) A gente vai ter que pensar antes de falar, não pode falar besteira. Eles esperam alguma coisa, eles sempre esperam alguma coisa! Agora a gente vai ter que pagar uma de cult, não pode ser muito pop, não pode ser muito... eu mesmo. Merda. Eu sei o que eu prometi, seu chato de galocha, dá pra parar de encher o saco? Eu tô tentando trabalhar aqui! (pausa; imita) "Mas me alimente, me alimente primeiro". Caralho, viu. Menino impaciente. (ele vai até o aquário e joga ração de peixe pro Peixe) Oi, gente. Bom, eu vou tentar fazer a introdução então. É uma coisa bastante difícil de ser explicada. É assim: (por alguns segundos ele tenta explicar o assunto, mas engasga bastante, frisando o quanto é difícil explicar) Não é que eu tô dizendo que é possível a existência de... de... do... sobrenatural... Assim, não é que eu vá dizer que pessoas com super poderes... digo... quer dizer... (um estrondo; ele grita e se contorce) Viu? É difícil. AH! Deixe eu achar aquele livro. É difícil explicar a existência de um fantasma de verdade como sou, de verdade, de ectoplasma misturado com memória física e terrores da vida sem aquele livro. Explicar não como algo divino, sobrenatural. Você me entende, né, Peixe? É difícil de explicar. (pausa) A bíblia? Que bíblia, Peixe! Que Bíblia! Se liga. (pausa) Não, também não é o Livro dos Espíritos. Onde foi que eu deixei aquela merda? Pra quem que eu emprestei? (se lembra) Putz. Eu emprestei. E só sobra a parte melancólica e as espinhas da gente quando a gente morre. A intelectualidade e a parte matemática da matéria fica no resto de carne. Infelizmente terei de usar de chavões clássicos, e cartas na manga que garantem uma boa apresentação artística. Ou seja: ilustração até onde minha evolução artística pessoal e instransferível conseguir alcançar. (conclui) Melancolia e existencialismo musical é uma coisa que dá ibope.

(um foco fechado no Fantasma; ele pode cantar alguma música considerada popular/brega ou a sugestão abaixo)

FANTASMA
(canta) "Eu já nem me reconheço mais
Achei que estava na boa
Mas sempre que eu tento me acalmar
Vejo que tudo é igual

Mas um dia chega
Um dia chega
Mais um dia chega
Um dia chega

Toda noite eu tento imaginar
Que amanhã será perfeito
Mas quando eu coloco os pés no chão
Vejo que nunca é igual

Mas um dia chega
Um dia chega
Mais um dia chega
Um dia chega

É começar a se ajudar
Que me ajudarei
Se a luz apagar e ninguém restar
Sozinho serei

É começar a se ajudar
Que me ajudarei
Se a luz apagar ninguém restar
Sozinho ser rei

E o sal em minha dor não está queimando mais do que sempre queimou
Não é que eu não sinto a dor, é que eu só não tenho mais medo de me machucar
E o sangue, o amor, não está pulsando menos do que sempre pulsou
E essa esperança é a única coisa que me faz continuar
No ar

Mas um dia chega
Um dia chega
Mais um dia chega
Um dia chega

Mas um dia chega
Um dia chegará
Mais um dia chega
Um dia chega."

(silêncio)

FANTASMA
(para a plateia) Chega. Cansa, sabe? Quando você é adolescente você se importa muito; acho que dura até depois dos vinte também. Aquele negócio de tentar parecer uma coisa que a gente não é de verdade. Tipo falar que gosta de umas músicas, ou até se forçar à gostar de uma música porque aquela música é cult e "todo mundo que é culto tem que conhecer aquela música". Aí você se submete, consegue entender? Aí você não suporta ver um certo tipo de filme, mas se você quer ser culto e respeitável e se você é cinéfilo "você tem que gostar do Almodóvar sim!". Eu gosto do Almodóvar, na verdade eu gosto até bastante, é um dos meus preferidos, mas é que eu tô falando porque eu já vi amigos ficando sem graça quando alguém fala "nossa, você nunca assistiu nenhum filme do Almodóvar", quando o gosto do cara é pra tipo de filme igual "Velozes e Furiosos", você entendeu? O cara gosta do remake das Tartarugas Ninjas, você entendeu? Agora a gente vai julgar o cara? Tipo, não é que eu não goste de Chico Buarque, mas eu nasci nos anos noventa e não tive a oportunidade e tempo pra parar pra apreciar o cara, você entende? Não é que eu não gosto e não me importo com ele, eu conheço uma música ou outra. Mas por exemplo, no meu caso eu tô mais interessado no lançamento do novo CD da Beyoncé, você entendeu? Eu gosto, eu gosto do que ela fala, eu gosto do empoderamento feminino, eu gosto da batida, eu gosto da língua inglesa. Eu gosto. Aí eu tive aquela época na adolescência que "Nossa! Eu tenho que ver esses filmes porque esses filmes são filmes cults e vendo esses filmes cults eu vou ser mais aceito entre a classe especializada do cinema!". Olha que merda. Por exemplo, hoje eu quero comer um Mac e ver o Batman socar o Superman, entendeu? Eu tô afim disso, não tô querendo refletir num super filme que vai me fazer pensar nas relações humanas à partir da visão de um liquidificador, por exemplo - não estou fazendo julgamentos, estou apenas comparando, eu compreendo a importância das duas artes, e eu estou querendo dizer exatamente que existe público pra todo mundo. Eu vou confessar um negócio aqui hoje. É oficial, eu saio do armário agora. Eu gosto mesmo de filme de super-heróis, gosto, assisto todos, compro os DVD, desde a Marvel até a DC. E já tive vergonha de assumir porque fica dando uma impressão que eu sou mais popularzão por isso, menos inteligente, "nossa, ele faz peça que no caso ele é um fantasma de terror que conversa com um peixe, uau, suas referências são Batman vs Superman". Aí quando você é adolescente você vai nas Lojas Americanas e compra uma porrada de filme que é considerado "cultchy" só pra colocar na porra da sua prateleira. (pausa) Sabe o que eu penso agora? O que acontece é que o ser humano tem um gosto bastante variado e foda-se. Foda-se! Tem que aprender a falar foda-se pra esse negócio de gente cult, de gente diplomada, ninguém é melhor do que ninguém por nada nessa vida, vai todo mundo virar cocô! Falem comigo, todo mundo! Foda-se! Foda-se! Isso, gente. Foda-se! Delícia. Gostosinho, gente.

(o Peixe fala alguma coisa)

FANTASMA
Eu sei que foi importante pra minha experiência pessoal e artística ter visto algumas coisas clássicas, mas é que me forçaram, sabe! Não foi algo que aconteceu naturalmente. É isso que eu acho um absurdo. (pausa) Não, cara eu não tô julgando a qualidade eu tô dizendo que muita coisa não é mais um tipo de linguagem que fala com a minha geração, entende? Nós somos de uma geração de caçar Pokémon pelo celular, quem vai julgar as importâncias? (pausa) Não foi por prazer natural e eu não me submeto mais à esse tipo de coisa, só isso! Sei do valor de tudo, mas eu não me submeto. Eu não vejo uma série que não me cativa, como eu já fiz, e eu não vou pagar de hétero quando eu não sou! Deus me livre dessa maldição humana! (para a plateia) Vários armários sendo desconstruídos. (pausa) Esse tipo de coisinha é coisinha que a gente faz quando a gente é menino só, quando a gente tá em tempo de precisar de aceitação até de gente que a gente nem conhece. Uma hora passa. E aí a liberdade vem que é uma beleza! Por exemplo, vem um tipo de liberdade subversiva que você não se importa se der merda se você acender um baseado de verdade numa peça de teatro nesse espaço de cultura. (acende um baseado de verdade) Pode dar a merda que for, a mensagem já está dada, o ato político já está dado. E isso é uma porra de uma delícia, vocês conseguem entender a grandeza? Cada um é cada um e é aí que tá a graça da liberdade. O ser humano é um bicho tão curioso que quer cuidar da vida do outro, sabe?  A gente acha que a gente sabe o que é melhor pra outra pessoa, que filme vai ser mais interessante, que droga é melhor pra pessoa usar, que música vai ser mais tocante. E o duro que como a gente é fraco, porra, a gente faz! A gente se submete às escolhas do outro! A gente faz mesmo quando a gente não quer fazer! (pausa) Não se submetam, pelo amor de deus, dos deuses, das deusas. (ele ironiza a própria hipocrisia) Enfim, pra vocês entenderem melhor o que eu quero dizer, aqui está uma listinha com os filmes, livros e músicas que eu acredito que pode mudar a vida de vocês pra vocês poderem pensar corretamente com a verdade verdadeira da forma que eu penso.

(o Peixe interrompe)

FANTASMA
Fala. (pausa) Aham. (pausa) Eu sei que eu viajei, é que a gente vai conversando e... Sim, a intenção era explicar a existência de fantasmas com base científica, eu sei. (pausa) O que é? Agora você vai julgar o que eu tenho pra falar? Se liga! (pausa) Eu sei que ninguém vai ouvir a voz de um fantasma se a pessoa não acreditar na existência de fantasmas, mesmo que isso seja uma ficção teatral. (pausa; imita) "Na imersão da criação artística precisa-se da verdade, precisa-se acreditar naquilo que prega, se não não faz sentido nenhum." Eu sei tudo isso, fui eu quem te ensinei essas bobagens! (pausa) Vá cagar! Pare de me encher o saco! (pausa) Eu só quero... sabe o que eu quero? (pausa) Ah, nada. (pausa) Nada, nada. Esquece. (pausa) Eu só quero poder ser fútil por um segundo nessa exigência de classe. É pesado sabe. Ser legal. Ser pagável. (pausa) Ainda dá medo, um pouco sim, do que é que vão pensar, do que é que vocês estão pensando. Dura pra mais depois dos vinte, então, viu. Porra. (pausa) Puta medo do caralho.

(black-out)

(um vídeo no telão mostra imagens de ectoplasma, espíritos ou aparições de luzes; um vídeo com um tom um tanto perturbador)


CENA 2

(assim como o início do espetáculo, o Fantasma surge em um canto escuro com cara de assombração clássica; música de suspense; black-out; ele muda de canto e faz a mesma cara, um tanto cômico, tentando parecer assustador; repetição em focos em lugares opostos do palco de novo. Fim da performance, ele desmonta o terror)

FANTASMA
(canta) "Olha o meu peixinho-palhacinho
Palhacinho, palhacinho
Ele é tão bonitinho, se falando está

Se você quer sorrir, é com o Patati
E se você quer brincar, é com o Patatá
Pode ser tão bonitinho, se pagando está

Eu tive meus quinze minutos de fama
No passado eu fui do teatro
Até tenho um registro
Mas a morte vem

O ator não é bem visto
Vale menos de cem

O amor deu um sumiço
Não sobrou ninguém."

(depois de um tempo um pouco triste ele fica alegre de repente)

FANTASMA
Oi, queridão. Sentiu a minha falta? (pausa) Bom saber. (pausa) Eu estou um pouco cansado sim, hoje foi um público difícil. Sabe como é. E você? (pausa) Sei. Trabalho duro esse seu. (pausa) Eu trabalho desde os quinze, bobão, já trabalhei de muita coisa. Mas pelo menos eu posso jogar na cara da sociedade que antes de morrer eu consegui realizar o meu grande sonho como ator, como artista. (pausa) Oscar? Que Oscar, Peixe! Eu fui monstro na Hora do Horror do Hopi Hari. (pausa) Sério. (pausa) Ah, o que é? Vai julgar o valor dos meus sonhos agora também? Já não basta tudo! (pausa) Tá bom, vamo mudar de assunto. (pausa) Que livro? (pausa) Eu já não disse que eu emprestei enquanto eu ainda era vivo? Essas coisas acontecem, a gente precisa desapegar. Nunca fui apegado nessas coisas. Meus DVDs estão perdidos pelo mundo. Antes alguém assistindo do que juntando pó, não é não? Mesma coisa com meus livros. Tudo perdido por aí. Eu sinto saudades de alguns. (pausa) Bíblia? Que bíblia, Peixe! Se liga! Por que você tá encanado com bíblia? Pelo amor! (longa pausa) O que? (pausa) Você viu que eu tenho dificuldades pra explanar essas questões. (pausa) A Busca é um assunto muito complexo, Peixe. (pausa) Isso é uma coisa minha e sua, se a gente tenta explicar esse tipo de coisa fica parecendo que a gente é moleque tentando fazer auto-ajuda. (pausa) Eu não vou falar. (pausa) Não, eu não quero nem tentar. (pausa) Porque não, porque eu não quero. Isso é coisa pessoal minha e sua. (pausa) Eu não vou falar. (pausa) Não. Nem adianta insistir. Pode ficar a noite toda insistindo. (pausa) Não vou falar. (pausa) Porque eu não quero! (pausa; grita) Eu já falei que eu não vou falar!

(longo silêncio)

FANTASMA
(explica contrariado) A Busca, gente, é uma piada interna entre eu e meu amigo aqui presente - coisa que não é uma tentiva de discutir as relações humanas à partir de uma ilustração, de uma metáfora , esse negócio de eu conversando com um peixe -, enfim. E é uma piada interna sobre essa... maluquice... frenética... de se encontrar a porra... do... do... sentido da funcionalidade... da funcionalidade da existência, entendeu? Por exemplo, eu existo aqui por conta de quê? Porque você pode comprovar a minha existência, vocês todos podem sair falando que "putz, apesar de tudo o que foi apresentado, o cara pelo menos ele existe". Eu existo, entendeu? Olha só: "Tudo aquilo que você busca, está buscando por você!" Entendeu? É o famoso "quem procura acha". (um estrondo; ele se contorce, mas dessa vez retorna seguro do que diz) E aí assim, como que se comprova a veracidade da existência de um fantasma pra essa porra ser verossímil? Como eu posso garantir pra vocês com cem por cento de certeza que eu aqui sou sim um fantasma apesar do teatro? Sabe por que? (ele se prepara para dar a grande resposta) Porque essa dramaturgia foi escrita ontem. Isso tudo já é produto do passado. É, rapaz, tudo o que está sendo encenado aqui foi obra de um pensamento que aconteceu numa noite ordinária qualquer e que aconteceu no passado. Eu sou um eco do passado! Eu sou um fantasma! Escrito, decorado e ensaiado. Aquilo livro, por exemplo! O cara que escreveu aquele livro também já morreu há vários anos, mas toda vez que alguém lê o cara ele continua vivo. O pensamento dele continua vivo. E tem mais! Um fantasma de ectoplasma como eu aqui presente não só se comprova nesse campo do imaginário e hipotético e filosófico artístico não. Ele se comprova na física de memórias que pulsam! Sabem tipo armazenar arquivo em nuvem? Já ouviram falar nisso? Você armazena arquivos no ar. Naquele cantinho pode ter um arquivo armazenado, nesse cantinho aqui pode ter um arquivo de uma foto da Monalisa. Tá uma porrada de informação passando pelas nossas cabeças nesse instante, igual naquele filme da Fantástica Fábrica de Chocolate que o chocolate fica voando no ar até ser conectado na TV. E aí é uma mistura de frequências de Wi-fi misturado com ondas de rádio, radiação, energia elétrica, o calor dos nossos corpos, e um resquício de quem já passou por aqui. Exatamente. Imagina quanta gente já andou aqui na frente. Imagina quanta gente já passou, já virou passado e deixou a sua marca registrada tanto históricamente como em "ectoplasmamente".

(pausa; o Peixe fala alguma coisa)

FANTASMA
Não, eu não tô dizendo com cem por cento de certeza que depois que você morrer você vá ter a mesma experiência que eu estou tendo. Acho que muito improvável, essa teoria. A verdade é que cada um tem a viagem que acredita. Se você acredita em Jesus, Jesus vai vir te buscar no fim da sua dor. Se você acredita na ciência, pode ser um black-out definitivo, quieto e indolor. Se você acredita no caralho a quatro é o caralho à quatro quem vem te buscar pra te levar pro planeta dos caralho a quatro. A Busca é muito louco, você entendeu? E se é na arte que você acredita, o que mais pode ser da sua eternidade se não for...? (mostra o palco; pausa) Bonitinho, né? (pausa; ênfase dramática) Mas há um porém. Um porém que é um perigo. Se você acredita em pecado, em punição, que possa existir algo de ruim no pós vida dependendo do que você fez na vida, isso é muito perigoso. Por exemplo, você por um acaso acredita que usar cueca de couro não é certo, mas você tem uma cueca de couro, e você usa essa sua cueca de couro porque você não resiste à tentação de usar uma cueca de couro de vez em quando, e todo mundo peca afinal. Quando você morre com um sentimento de culpa, acreditando nisso, o inimigo imaginário do seu amigo imaginário infelizmente leva sua alma para o fogo do inferno por usar cueca de couro, mesmo nem seu amigo e nem o inimigo do seu amigo não serem exatamente reais. Isso tudo porque você quis que fosse assim. Você escolhe a sua desgraça em vida e no pós vida, colega. (pausa) É bem simples, né, gente? Gostosinho. Pelo visto, eu acreditava em teatro e em... peixes. (ri; pausa; ele se perde nos pensamentos) Como foi que eu...? Como foi que aconteceu...? Naquele dia eu... Como foi que eu morri? Naquele dia eu tinha saído do Hopi Hari tarde da noite... aí eu cheguei em casa... Eu tava tomando uma cerveja e... (ele se lembra de repente)

(o Fantasma vai até um microfone num foco; luzes de um show)

FANTASMA
(canta) "Pra que perder tempo
Tentando se salvar
Pra deixar orgulhoso alguém
Sempre há um motivo
De não se sentir bem

E é difícil no final também
É entretenimento
Descanso não sei
E as memórias que vão e que vem
Me deixe sozinho
Sem um corpo ou alma
Que se existe eu também não sei

Mas nos braços de um anjo
Pra voar bem longe daqui
Desse mundo escuro e burro
E não ter mais o que sentir
Eles matam os seus sonhos
Eles só sabem mentir
Só nos braços de um anjo
Eu talvez encontre alguém
Que me tire daqui"

(poeticamente ele continua ainda com fundo musical)

FANTASMA
Por isso que é bom ser uma pessoa boa. Por não ter certeza. Pensar coisa boa, fazer coisa boa, gostar de coisas boas. Tem o lance do carma, sabe? Você não vai lembrar dessas coisas da vida, a memória do vivo morre com o cérebro. E o que sobra? O que sobra é uma viagem quântica, colega, do que você quis que fosse. Vaza do seu corpo aqueles vinte e um gramas de existência e foge pra eternidade de reciclagens. Não tô dizendo que isso vai ser bom, mas é o que é, não tem o que a gente fazer. E presta atenção: nada é por acaso! Vocês estarem aqui hoje não é por acaso. Foi deus quem mandou essa mensagem aqui pra vocês hoje. (brinca) Quem disser que não é um invejoso, mal caráter, sem graça e babaca. Eu tenho o meu direito de culto, não tenho? Então. E deixa eu te dizer, sem querer te assustar: a tal hora, aquela hora, vai chegar pra todo mundo. E aí você vai perceber que eu não vou estar com você e com Jesus porque eu vou estar viajando por entre buracos negros e estrelas, depois de fazer muito teatro ainda!

FANTASMA
"Só nos braços de um anjo
Eu talvez encontre alguém
Que me tire daqui."

(longa pausa; ele desliga e guarda o microfone)

FANTASMA
Eu não lembro se era nisso que eu acreditava. Eu sempre me importei muito com a opinião das pessoas. O que vocês acham? O que vocês estão achando? Hein? Sério. Se alguém quiser responder, eu queria muito ter um retorno, sabe? Eu pareço seguro de mim aqui, mas liga a luz de serviço e tira o texto da cabeça que eu sou um fantasma bem palerma, bem tímido, daqueles que fala bosta quando abre a boca, que fala coisas constrangedoras no meio da rodinha. E aí? Como tá sendo? Eu precisava muito saber. Como é que tá rolando? Como tá sendo pra vocês? (pausa; se irrita meio alucinado) Eu falo da vida! Eu falo da vida! Eu falo da vida! Eu falo da vida! É da vida que eu falo! Eu falo da vida! Eu falo da vida! É da vida que eu falo. (pausa) Tem o lance do carma, sabe? Tem que ser na base da verdade sempre.

(o Peixe o interrompe)

FANTASMA
Sim. (pausa) Ah, é? Tá bom, então. (ele liga um gravador; com a plateia) Eu falei bastante. É o monólogo dele agora, gente, vamos escutar. Eu vou gravar pra poder provar que é real, tá? (longo silêncio; responde) Pode sim. O palco é todo seu.

(o Fantasma se senta para assistir o Peixe falar; longo silêncio; ele ri em alguns momentos; mais silêncio; o Fantasma reage à coisas avulsas ditas pelo Peixe. A luz cai em resistência enquanto o Fantasma ouve o seu monólogo em silêncio)

(black-out)


CENA 3

(uma música Pop apresenta o fim do show do Fantasma; ele dubla e dança loucamente pelo espaço. No fim da música ele agradece como se fosse o final do espetáculo; o Fantasma volta pra casa depois do trabalho tomando uma cerveja e com um pacote de comida japonesa; senta-se frente à TV e muda de canal comendo)

FANTASMA
Ah, meu deus! Procurando Nemo! Adoro! Argh... (ele engasga)

(enquanto a introdução da Disney acontece, ele cai afogando, sem conseguir respirar)

FANTASMA
Ai, caralho! Eu tô morrendo... Socorro! Eu vou morrer... Socorro! Alguém! (ele se arrasta até a saída e se lembra) Ah, não! A cueca! Eu não posso morrer ainda... (ele tenta tirar as calças e é possível ver que ele veste uma cueca de couro; ele tenta tirar a cueca, mas morre antes de conseguir)

(áudio gravado)

FANTASMA
(voz) Eu falei bastante. É o monólogo dele agora, gente, vamos escutar. Eu vou gravar pra poder provar que é real, tá?

(longo silêncio)

PEIXE
(voz) Posso começar?

FANTASMA
(voz) Pode sim. O palco é todo seu.

PEIXE
(voz) Bom... (o encenador pode deixar essas reticências ou colocar alguma frase relevante na voz do Peixe)

FIM








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