O PRÍNCIPE BELO E A TERRORISTA


O PRÍNCIPE BELO E A TERRORISTA
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS
BELO
POLACA
NARRADOR/PAPAI REI
FADO, boneco
FADA, boneca
ROLO, boneco
PECA, boneca
DITA, boneco/boneca
CÉLEBOS, bonecos/bonecas

CENÁRIO: UMA TORRE DENTRO DE UM CASTELO.


INTRODUÇÃO

NARRADOR
Em um reino não muito distante, ali perto dos condados do Piauí, entre Baltimore e Monte Mor, vivia o príncipe mais belo e perfeito que já existiu na face das terras tupiniquins! Com seu jeitinho encantador e alma pura, para os padrões de seu tempo, o Príncipe Belo foi trancafiado em uma torre no castelo de verão de seu pai, protegido por um enorme dragão de sete cabeças contra todas as maldades do mundo!

BELO
Oh! As maldades desse mundo!

NARRADOR
Desde seu nascimento, os pais do Príncipe Belo perceberam que ele era um garoto diferente dos outros meninos. Sensível, calmo, inteligente, e além de tudo, bonito.

BELO
Papai dizia que era culpa da minha mãe porque enquanto ela tava grávida, ela queria que eu tivesse nascido menina.

NARRADOR
Mas o mundo cheio de maldades iria colocar um basta na vida calma e solitária do Príncipe Belo.

BELO
O que? Como assim?

NARRADOR
Uma terrorista de um reino distante que não acreditava em deus, iria destruir as prisões do Príncipe Belo e trazer confusões nessa nossa sessão da tarde em família! Cuidado! Essa história é muito perigosa!

(o dragão grita monstruosamente e depois chora feito um cachorrinho)

BELO
Oh! A terrível terrorista colocou o dragão pra correr! E agora? Quem poderá me ajudar?


CENA 1

(Polaca surge grandiosamente em um show musical)

POLACA
Hoje é seu dia de sair daqui
Essa magia que não tem fim
Já vai
E o papai não vai

Você é inocente
É novo na pista
E tem uma voz que grita

Mamãe também mente
Papai é fascista
E tem uma voz que grita

Você é gente da gente
Um bom terrorista
E tem uma voz que grita
Aaaaaah!

BELO
Oh, meu deus! Você não pode invadir o castelo dos outros e sair cantando assim sem mais nem menos!

POLACA
É por isso que me chamam de terrorista. Eu sou cantora, prazer. Eu sou a Polaca Terceira, filha da grande guerrilheira Polaca Segunda do Grande Último Ataque e vim salvá-lo desse confinamento.

BELO
Oh! Salvar-me? Mas foi papai quem me deu esse castelo de verão, para que eu pudesse usufruir apenas da torre! Eu não estou aqui obrigado, mesmo que eu não possa sair. Eu estou aqui por escolha! Porque eu tenho medo das maldades do mundo e de terroristas feito a senhorita!

POLACA
Príncipe Belo, não é por qualquer razão que vim salvá-lo dessa alienação que você acredita ser para o seu próprio bem. Você é especial nesse mundo, Príncipe, as pessoas precisam conhecê-lo, o mundo precisa conhecê-lo!

BELO
O que? Mas o mundo é cheio das maldades, Polaca Terceira! E eu não tenho nada de especial, eu sou só mais um rapaz normal.

POLACA
Não, não é. Você é a nossa prova pra tudo isso que está acontecendo aí, Belo. Você só ainda não sabe.

BELO
O que? Como assim eu sou a prova?

POLACA
Você não é um rapaz normal, Princípe Belo. Na verdade, você não é nem um rapaz.

BELO
O que?

POLACA
Você é uma princesa também, Príncipe.

(suspense)

BELO
O que? Você ficou maluca? Eu não sou uma princesa! Mamãe até que queria, mas eu nasci menino.

POLACA
Não. Seu pai queria um menino e você nasceu as duas coisas!

(mais suspense)

BELO
O que?!

POLACA
Diz a lenda das terroristas
Que um menino e uma menina
Iria vir num corpo de um só

E que os maus dias vão acabar
E que a nossa vida vai melhorar
E o mundo vai perceber
O quão bonito que você é

Você veio para mudar
A caretice da cabeça das pessoas
Você já vai ver
Você veio para mudar...

Nossa vida
Tem coisas
Que não tem como explicá-las
Se é menina ou não
Se é menino ou sim
Isso não importa, se dentro de mim
Não tem carinho, viver sozinho
A dor vai passaaar!...

A caretice da cabeça das pessoas
Você já vai ver
Você veio para mudar
E não tem noção, desse próprio show
Que agora...
Começou!

(eles finalizam a música grandiosamente, de mãos dadas ao centro; Belo, num ato romântico vai beijar Polaca, que se desvencilha)

POLACA
Opa! Calma! Não vamos confundir a coisa aí, garoto. Eu sou bem mais velha que você.

BELO
Desculpe, achei que tivesse rolado clima. Eu nunca beijei uma garota na minha vida. Eu nunca beijei nada na minha vida, na verdade.

POLACA
Desculpe, mas não será comigo.

BELO
Sabe, quando eu era mais novo eu tive uma visão.

POLACA
Uma visão?

BELO
Sim, ficar sozinho trancafiado numa torre faz você refletir sobre a vida e talvez se comunicar com seres de outros mundos. Há alguns anos, meu pai me autorizou ir em um baile famoso e eu tive ajuda das minhas fadas madrinhas. É real, aconteceu! Uma fada e um fado, na verdade.

(black-out)


CENA 2

(um flashback; Belo está sozinho se arrumando para o baile)

BELO
Oooooh! Aaaah! Ooooh!
Mariposas
São esposas
Dos mariposos...

Eu não vejo a hora de encontrar o mundo das pessoas boas. Papai disse que esse baile estará super protegido das maldades do mundo e que ninguém irá perceber nada dos nossos segredos. Papai disse que terá muitas mulheres bonitas e muitos homens inteligentes. (pausa) Será que não poderia ter mulheres inteligentes e homens bonitos também?

(Fada e Fado aparecem grandiosamente)

FADA e FADO
Olha, olha, olha, olha...
Veja, veja, veja, veja...
Estamos dentro da sua cabeça!

BELO
Vocês são mariposas?

FADO
Não, somos fadas. Fado e Fada.

FADA
Somos suas fadas madrinhas e viemos te impedir que você vá nesse baile que a princesa Michele está oferecendo ali no meio de Goiás. É furada, amiga!

FADO
É, é tudo batata podre naquele saco ali, garoto.

BELO
O que? Que saco? Mas eu nunca saí dessa torre! É a minha primeira oportunidade de ver o lado bom desse mundo! Eu tenho que conhecer as pessoas boas desse planeta!

FADO
Garoto, como você sabe que eles são o lado bom?

FADA
Que eles são as pessoas boas?

BELO
Ora, porque papai me disse.

FADO
E se seu pai estiver errado, Príncipe Belo? Ou se estiver mentindo?

BELO
Papai nunca está errado! Só algumas vezes. Eu quase não vejo ele. Papai só está errado quando a mamãe está certa. E mentindo? Ora, papai não mente jamais!

FADA
Garota, seu pai vive te obrigando a fazer só aquilo que ele quer, mas você nem conhece seu pai direito.

BELO
Por que você me chamou de garota?

FADA
Como assim? Foi modo de dizer, tanto faz.

BELO
É que eu sou um garoto.

FADO
Cara, isso é o menos importante do assunto. Você não pode ir nesse baile! Seu pai não pode te obrigar. Você nem conhece aquelas pessoas.

FADA
Se coloque ao menos na posição da dúvida, Príncipe Belo. E se essas pessoas que são as boas, apenas dizem que são as boas, mas no fim das contas elas são más? E se elas são mentirosas?

BELO
Mas papai nunca faria...

FADA
Querida, presta atenção...

BELO
Querido!

FADO
Presta atenção, rapaz!

FADA
Você está sozinha. Você gosta de ficar sozinha. Você não precisa se expôr. Você não precisa dessas pessoas pra poder ser feliz.

BELO
Por que você fica falando como se eu fosse no feminino?

FADO
Poxa, garoto, mas você fica dando atenção pra um detalhe idiota enquanto a mensagem tá passando! Nós somos suas madrinhas! Fada madrinha e Fado madrinho! Tá certo?

BELO
Não seria Fado padrinho?

FADO
Tanto faz! Tanto faz!

FADA
Miga, cê é insistente.

FADO
A gente tá dentro da sua cabeça, garoto, porque todo mundo sabe que não existe essas paradas do sobrenatural! E nós somos a voz da razão te dizendo que você não deve ir no baile da Princesa Michele porque são tudo batata podre no mesmo saco! Fim!

(silêncio)

FADA
Oh, menino menina de personalidade confusa, você já é crescida pra fazer suas decisões. Sozinha você é livre. Você sempre soube que nunca precisou de um príncipe encantado pra nada.

FADO
E nem de uma princesa.

BELO
Mas então não existe gente boa nesse mundo? Se os amigos do papai não são os mocinhos, vocês querem me dizer que as terroristas guerrilheiras é que são?

FADA
Dentro de dois lados existe um monte de variação.

FADO
Você é um garoto inteligente, faz força aí.

BELO
Eu nunca vou acreditar que alguém que faz terrorismo pode ser o mocinho! Acho que o único mocinho da minha história sou eu mesmo. (pausa) Vocês tem razão. Eu não vou mais nesse baile estúpido!

FADO E FADA
Finalmente! Adeus!

(Fado e Fada desaparecem)

BELO
Oooooh! Aaaah! Ooooh!
Mariposos
São esposos
Das mariposas...

(black-out)


CENA 3

(Belo está com Polaca)

BELO
Esse negócio de menino e menina confunde a minha cabeça! Vocês terríveis terroristas destruíram a ideia normal das espécies! A ideia da verdade da biologia! É por isso que papai odeia nossas alucinações infantis. Fadas não existem e vocês são terroristas!

POLACA
Príncipe, a biologia ainda está em descoberta, não há exatidão em absolutamente nada nesse mundo. A premissa da ciência é exatamente tentar entender as coisas que acontecem em um padrão, e não forçar um padrão porque a gente escolheu um que a gente acha ser melhor. Se esse negócio de ser menino ou menina é confuso é porque é confuso, oras. Ninguém inventou que é confuso, reclama com deus, se você acredita em deus. Se existe alguma confusão entre a biologia e a mente humana, essa confusão está absolutamente dentro dos padrões e deve ser considerado absolutamente normal. Você não indaga a natureza do cavalo marinho que biologicamente é o macho quem carrega os filhotes na barriga. As coisas diferentes, elas existem. Um ser humano não é feito só da sua biologia, meu caro! (ela aponta o cérebro) Há muito mistério na profundeza da nossa mente, Príncipe Belo, e esse mistério se equilibra junto e com muita maluquice com o nosso corpo!

BELO
Eu sei disso, eu sempre soube, desses mistérios da mente. Papai dizia que nosso segredo não seria compreendido pelo mundo do mal, que vocês querem me seduzir. Na verdade, nem eu sei exatamente qual é esse meu segredo.

POLACA
Você não sabe? Não sabe nada?

BELO
Eu sei meio que por cima.

POLACA
Esse segredo é que você é especial, Belo! Você nasceu para comprovar os mistérios desse mundo, tanto na parte psíquica como na parte biológica. Deus não erra nunca, Príncipe Belo.

BELO
Mas você nem acredita em deus, você é uma terrorista!

POLACA
Terrorista é só um ponto de vista, Príncipe. No meu ponto de vista, eu rebato o real terrorismo. Pensa comigo: alguém vai lá e rouba sua terra, mata seus companheiros, escraviza os seus filhos. Aí quando você se revolta contra essas atrocidades e em legítima defesa entra em guerra contra essa pessoa, você é que é considerada a terrorista terrível assassina? Eu estou aqui pra rebater a prisão do seu pai, Príncipe, pra te livrar dessa cadeia! Você é a beleza desse mundo e precisa ser livre!

BELO
Eu tenho medo, eu tenho medo das maldades.

POLACA
E das maldades do seu pai?

BELO
Não, papai não é mau. Papai só é mau quando a mamãe é boa.

POLACA
Príncipe Belo, você tem razão, tem muita coisa ruim nesse mundo. Os amigos do seu pai, por exemplo, não sabem desse seu segredinho que você diz que sabe mais ou menos. E é bom que não saibam pois pra eles você é algum tipo de aberração, uma maldição do diabo pra sua mãe pecadora, eles diriam. É por isso que ele nunca deixou você sair daqui.

BELO
O que?

POLACA
Seu pai te trancafiou nessa torre, Príncipe, porque ele tem medo de você.

BELO
Não, não é isso...

POLACA
Você nasceu, biologicamente falando, as duas coisas! Você nasceu menino e você nasceu menina.

BELO
Espera um pouco...

POLACA
Ao mesmo tempo que seu corpo produz espermatozoides, seu corpo também produz óvulos. Você é um hermafrodita muito especial, Príncipe Belo, tão maravilhoso e único quanto um cavalo marinho carregando seus filhos no profundo do oceano.

BELO
Essa palavra...

POLACA
É só uma palavra, querido. Nós somos uma espécie que se comunica com palavras, e esses rótulos nos ajudam a nos comunicar sobre nós mesmos. Veja bem como é curioso a diferença cultural das palavras e como isso reflete na nossa percepção de mundo. Em inglês não existe uma palavra para distinguir o gênero dos professores, por exemplo. Se for uma professora é teacher, se for um professor, é teacher também. São só palavras, meu amigo. Aqui no Brasil a gente tem essas diferenças e, aqui comigo, pra mim tanto faz, se você quer saber. Você pode escolher se importar com isso ou não.

BELO
Hermafrodita. Eu ouvi mamãe dizer essa palavra uma vez. Mas papai ficou furioso, gritou com ela, disse que nunca aceitaria os termos das terroristas na família dele. Que vocês que inventaram todas essas baboseiras que estão aí na televisão hoje.

POLACA
Alguns filósofos hoje em dia acham que foram os cientistas que inventaram as leis da física, por exemplo. Alguém as nomeou, isso é verdade, mas ninguém saía voando por aí antes de Newton calcular a lei da gravidade. Pessoas com disfunção de gênero não é uma novidade na ciência, meu querido, é até um insulto a gente tem que ter medo de falar sobre isso num evento teatral para crianças como esse. Isso deveria ser tratado com muito mais naturalidade do que cobras falantes, por exemplo.

BELO
Meus deus, garota! Mas você é uma terrorista mesmo! Não precisa provocar!

POLACA
Eu nunca tive papas na língua e não vai ser agora.    

BELO
Tá bom. Eu entendi. Mas olha, eu vou ter que confessar um negócio aqui, eu nunca tive aulas de educação sexual na escola, na verdade eu nunca nem fui na escola. A única coisa que eu sei sobre isso tudo é de um livreto que falava sobre o casamento religioso e era bem confuso também.

POLACA
Pois bem, Príncipe Belo, eu vim aqui pra te ajudar nisso também. (ela palestra) Meninos que nascem biologicamente meninos, eles nascem com um órgão chamado pela palavra PÊNIS.

(Rolo aparece)

ROLO
Vejam só, meus amados queridos, quem se fez carne nessa adorável apresentação de teatro! Eu mesmo! O saudosíssimo e grandessíssimo - às vezes nem tão grande assim, mas mais vale um pequeno brincalhão do que um grande bobão, não é mesmo? – e cultuado e adorado... eu! Eu mesmo! Pode chamar as autoridades, que eu existo e eu não sou tudo isso que pintam por aí.

BELO
Meu deus do céu. O que está acontecendo?

ROLO
Maior rolo!

POLACA
E meninas que nascem biologicamente meninas, elas nascem com um órgão chamado pela palavra VAGINA.
   
(Peca aparece)

PECA
Meus amores mais queridos desse meu Brasil! Foi-se o tempo que eu vivia no armário da obscuridade e vergonha. Mamãe aqui é bela e doce e consegue abrir para fazer nascer uma pessoa! Eu não sei como foi que esse daí conseguiu fazer com que todo mundo acreditasse que ele era o sexo poderoso. Repare, meus queridos, nós somos a magnificência desse universo de mistérios e magia! E nós temos o único órgão que é unicamente feito para o prazer, o clitóris! Muito procurado, pouco descoberto, já que estamos aqui pra falar sobre ciência.

POLACA
Eles são apenas um detalhe dessa nossa existência, Príncipe, mas um detalhe importante.

BELO
Então é assim que se sabe quando é menino ou menina. Isso é genial, deus está de parabéns!

POLACA
Sim. Mas e você?

BELO
Eu?

POLACA
Você já se observou no espelho, Príncipe Belo?

BELO
Papai não permite espelhos. E eu tenho medo. Dizem que é uma passagem para o outro mundo.

POLACA
Você é as duas coisas em uma coisa só!

(Dita aparece)

DITA
Vejam bem, não precisa tirar suas crianças da sala. Eu sou uma condição rara, mas a magia vez ou outra acontece nesse nosso universo. É um mistério dos deuses a minha existência e devíamos nos adorar feito irmãos! Eu não estou aqui pra assustar ninguém, nós fazemos tudo isso porque as coisas são como são!

POLACA
Para cada uma dessas variações biológicas também existe outra coisa que influencia diretamente e fisicamente no corpo completo, Príncipe Belo. A nossa mente.

(três bonecos Célebos se unem cada um em outro boneco; um com Rolo, outro com Peca e o último com Dita)

CÉLEBO 1
Eu nasci com corpo de menino!

ROLO
Eu!

CÉLEBO 2
Eu nasci com corpo de menina!

PECA
Eu mesma!

CÉLEBO 3
Eu nasci com os dois corpos!

DITA
É isso aí, querida!

BELO
Que bela confusão!

CÉLEBO 1
Eu nasci com corpo de menino e eu sinto aqui dentro de nós, que somos mesmo um menino!

ROLO
É isso aí!

CÉLEBO 2
Eu nasci com corpo de menina, e eu sinto aqui dentro de nós, que somos mesmo uma menina!

PECA
Yeah!

(outros Célebos surgem com outros órgãos)

CÉLEBO 4
Eu nasci com corpo de menino, e eu gosto mesmo é de mulher!

CÉLEBO 5
Eu nasci com corpo de menina, e eu gosto mesmo é de mulher também!

CÉLEBO 6
Eu gosto de homem e de mulher!

CÉLEBO 7
Eu gosto só de homem! E nasci com corpo de menino.

CÉLEBO 8
Eu gosto só de mulher!

CÉLEBO 9
Eu gosto de homem e de mulher! Nasci com corpo de menina, mas eu não gosto de rótulos!

CÉLEBO 10
Eu nasci com corpo de menino, mas eu sempre fui uma mulher dentro de mim!

BELO, DITA e CÉLEBO 3
Eu não sei o que eu sou!

(silêncio)

BELO
Eu fiquei realmente confuso. Eu poderia ter sido uma menina?

POLACA
Você é todas as coisas, Belo, como todo mundo. Você pode ser quem você quiser.

BELO
É isso que papai quer impedir que vocês façam. Essa bagunça na cabeça das crianças. É tudo confuso demais pra gente entender!

POLACA
Como eu disse, reclama pro deus criador, Príncipe Belo. As coisas são como são. Essa confusão pode ser dura, mas ela existe, a gente não pode fingir que ela não existe. E quanto mais informação a gente tiver sobre isso, melhor a gente lida com isso.

BELO
Mas saber de tudo isso não está me ajudando em nada! Eu fiquei mais maluco ainda!

POLACA
Você prefere a doçura de uma mentira ou a dureza da verdade, Príncipe Belo? Nós não temos mais razões para continuar fingindo que os bebês são trazidos por cegonhas, as crianças não são tão idiotas como vocês pensam. A vida, ela é assim, essa confusão maravilhosa. É uma aventura, cara!

BELO
Não. Não é. É maluquice.

(os bonecos desaparecem)

POLACA
Príncipe Belo, veja bem...

BELO
Papai me colocou aqui nesse castelo de verão porque sabia o quanto vocês eram perigosos. Toda essa ilustração em forma de brincadeira, em forma de teatro, faz parecer que a coisa é linda, maravilhosa, mas na verdade a pessoa que nasce diferente, ela sofre.

POLACA
Você tem razão. Ela sofre mesmo. Ela sofre nas mãos das pessoas que tem medo de falar sobre isso. Pessoas como seu pai. Elas sofrem por viverem trancafiadas em suas bolhas.

BELO
Eu gosto de viver sozinho. Eu não vou com você pra essa sua aventura, Polaca Terceira. Eu não sou o escolhido da sua causa.

POLACA
Mas... Príncipe Belo, as pessoas, elas estão morrendo porque ninguém faz nada. Indivíduos como esses que você conheceu hoje, indivíduos como você estão morrendo mundo à fora, porque as pessoas tem medo do que é diferente delas.

BELO
Mas eu estou aqui. Eu estou aqui vivo porque estou aqui. Sozinho. E eu não quero ser salvo. Eu quero viver aqui! Eu não vou me arriscar nesse mundão por pessoas que eu nem conheço. Papai pode ter me prendido aqui por vergonha, mas eu agradeço o sistema de segurança, afinal.

POLACA
Aquele dragão de sete cabeças chorou quando eu arranhei a unha dele.

BELO
Até hoje eu não havia sido incomodado, ué.

POLACA
Ao menos que seu segredo espalhe por aí. Os amigos do seu pai iriam querer ver a maldição de perto.

BELO
Os amigos do meu pai não são os vilões!

POLACA
Não tem vilão! Não existe esse negócio de mocinho e bonzinho e vilão e do mal! Nós somos várias coisas numa coisa só, Belo! Você ainda não conseguiu enxergar?

BELO
Não adianta. Você pode falar o que quiser. Eu não vou com você. Eu... eu tenho medo. Eu tenho medo de todo mundo!

POLACA
Você precisa sair desse lugar, tem um mundo lá fora!

BELO
Não! Eu não vou.

(silêncio)

POLACA
Bem, sendo assim. Não existe gente do bem e gente do mal, Príncipe Belo. As pessoas sobrevivem como podem. Alguns são mais justos em suas boas ações e também em suas malvadezas, às vezes, também, sim. Eu às vezes faço malvadezas pelo bem maior. (pausa) Se você não for comigo e abraçar a sua luta que é seu destino, eu vou espalhar pra todos os amigos do seu pai, pra todos os reinos e inclusive pra Princesa Michele que é muito popular no Instagram, que você é um hermafrodita pervertido que subverte criancinhas inocentes aqui na torre do castelo de verão do seu pai.

BELO
O que? Você não faria uma coisa dessas! Eu não sou nada do que você disse! Isso é fake news!

POLACA
Bom, depois que essa fake news se espalhar eles virão aqui te confrontar e verão que você não é igual todo mundo.

(Dita e Célebo 3 aparecem novamente)

DITA e CÉLEBO 3
A realidade é confusa, ela é bruta, mas ela é o que é.

BELO
Você não pode fazer isso comigo! Isso... isso é terrorismo!

POLACA
Terrorismo são as pessoas morrendo lá fora.

BELO
Mas o que eu tenho a ver com isso?

POLACA
Você nasceu! Você nasceu! É isso que você tem a ver com isso! Você está nesse planeta, Príncipe Belo, você é a própria prova da magia desse universo. Você não pode simplesmente jogar isso tudo pro ar!

BELO
Mas... e se eu morrer? E se fizerem mal comigo? Aqui dentro, eu fico protegido...

(silêncio)

POLACA
Pra quê viver se você não vive exatamente? (pausa) A turma das terroristas vão amar conhecer você. Está todo mundo muito esperançoso, Príncipe Belo. Ainda mais você, filho do seu pai. Você não sabe o como isso pode ser importante pra tudo na luta, Príncipe. Iria mudar tudo!

BELO
Tem mais gente?

POLACA
Tem um monte de gente! Tem milhares de pessoas! Homens, mulheres, gato, cachorro, cavalos marinhos! Nós somos milhares pelo mundo e você pode mudar tudo isso que tá ruim. Até mesmo... se você morresse.

BELO
O que?

POLACA
Porque mesmo que você morresse, por ser tão especial, sua morte seria histórica, Príncipe Belo. Olha a magnitude disso tudo, cara!

(silêncio)

BELO
Na verdade você não me deu muita escolha, né? Fui chantageado.

POLACA
Eu dei escolha sim. A escolha da verdade. Eu faço o que é preciso no que eu acredito.

NARRADOR
E então, Príncipe Belo foi brutalmente sequestrado pela terrorista Polaca Terceira e foi seguir a sua missão na face da Terra como exemplo da diversidade da biologia sexual. Em pouco tempo, Príncipe Belo tomou carinho pelas pessoas que conheceu e abraçou a luta com mais força, se tornando mais um terrorista iniciado. Quando o Papai Rei descobriu, era tarde demais.

(black-out)


CENA 4

(Polaca e Belo estão em uma manifestação, com cartazes e multidão; Polaca veste uma máscara e atira uma bomba pra fora de cena; Papai Rei entra em meio a confusão)

BELO
Eu entendi o meu destino nessa luta! Nós somos importantes na representatividade! Cada um de nós temos uma função nessa nossa aventura. A gente tem que aceitar isso e procurar o próprio caminho!

PAPAI REI
Filho! Mas filho! O que fizeram com você, meu filho?

BELO
Abriram meus olhos, papai! Você me enganou por todo esse tempo.

PAPAI REI
Eu sempre falei que você era especial, Belo. Você sempre soube disso.

BELO
Mas não quem eu realmente sou.

PAPAI REI
Aquilo ali é só um detalhe.

BELO
É só um detalhe mesmo. Que você queria manter escondido!

PAPAI REI
Porque o mundo é cruel, o mundo não ia entender!

BELO
Qual mundo, papai? O seu mundo, né? É você quem não gosta de quem eu sou.

PAPAI REI
Isso tudo não define quem você é!

BELO
Define sim! É claro que define! Nós somos definições, a gente se comunica através de palavras definidas!

PAPAI REI
Filho. Eu só queria o seu bem...

BELO
Enquanto seu medo tava matando os outros iguais a mim por aí, né?

PAPAI REI
O mundo é malvado, filho.

BELO
É malvado porque vocês fazem ele malvado! Vocês tem medo que as pessoas tenham a mesma reação que você mesmo tem, pai!

PAPAI REI
É vocês quem estão participando dessa guerra aqui.

BELO
Uma guerra que vocês começaram! Eu não sou uma maldição na sua família, pai, eu nunca fui.

PAPAI REI
É um mistério de deus, meu filho. Mas você não precisava dessa exposição.

BELO
As coisas são como são. Mais vale uma verdade dura, que uma mentira doce.

(um tiro atinge Belo; ele cai nos braços do pai)

PAPAI REI
Não, filho, não!

(Polaca se aproxima e retira a máscara)

POLACA
Mataram o nosso Belo! Mataram a magnífica e misteriosa prova da existência de um deus criativo e justo.

PAPAI REI
Vocês nem acreditam em deus!

POLACA
Depende de qual estiver falando.

BELO
Digam à todos que fui um ser humano feliz. (morre)

NARRADOR
E assim a aventura do príncipe que nasceu com os dois órgãos sexuais e fértil para ambas as posições biológicas e sociais teve real início. Vocês não ouviram errado, foi na morte que a sua real história nesse planeta começou!

(o clima fúnebre termina com um black-out)


CENA 5

(uma reunião de Célebos conversando alto; seus sexos estão cobertos com roupas)

CÉLEBO
Foi quando mataram o Príncipe Belo que eu me transtornei de verdade!

CÉLEBO
Ele era uma princesa tão bela! Aquilo foi a gota d’água!

CÉLEBO
Pobre Belo.

CÉLEBO
Eles sabiam que ia dar ruim. Quando o Papai Rei decidiu defender o próprio filho dos ataques da Princesa Michele, a coisa mudou.

CÉLEBO
Eu sabia que o Príncipe Belo era o escolhido! Finalmente as coisas mudaram!

CÉLEBO
Agora eu posso ser quem eu quiser, por mais confuso e espetacular que isso seja!

CÉLEBO
Essa liberdade é tão boba, mas é tão reconfortante, não é, mesmo?

CÉLEBO 1
Eu acho que tudo bem ser hermafrodita, mas não precisa ser escandaloso, né?

(silêncio constrangedor)

CÉLEBO 1
Ai, falei bobagem?

CÉLEBO
Falou

CÉLEBO
Errou rude.

CÉLEBO 2
Se é pra reclamar de gente escandalosa, você já viu o homem hétero cisgênero fazendo uso da substância álcool?

CÉLEBO
Deixa o homem hétero cisgênero em paz.

CÉLEBO
O importante é que as coisas melhoraram! Tem muita coisa pra se arrumar nessa confusão toda ainda.

CÉLEBO
Primeiro as urgências, homem hétero cisgênero, depois a gente vê o seu caso.

CÉLEBOS
Agora estamos livres! Príncipe Belo vive!

(silêncio; eles se olham e desaparecem de repente)


CENA 6

(um pequeno foco destaca Polaca mascarada; ela retira a máscara em longa reflexão e canta)

POLACA
Havia um tempo não bom
Com os homens do mal
Que lutava contra a justiça
Havia um tempo que não era bom
Que viver era mortal
E que o ensino sexual não era prática bem vista
Havia um tempo não bom...

Mas esse tempo já passou.

Pra toda luta é necessário fazer escolhas. Escolhas boas que podem trazer consequências ruins e escolhas ruins que podem trazer consequências boas. E todas as demais variadas consequências dos atos bons e dos atos ruins nesse nosso universo. Para toda luta é necessário fazer sacrifícios também. Existe um universo maior que a nossa aventura pessoal, existe uma grande aventura no coletivo! É preciso fazer escolhas.

(um jogo de luz faz a cena retornar pra pouco antes da morte de Belo)

PAPAI REI
É vocês quem estão participando dessa guerra aqui.

BELO
Uma guerra que vocês começaram! Eu não sou uma maldição na sua família, pai, eu nunca fui.

(Polaca se prepara para atirar em Belo)

PAPAI REI
É um mistério de deus, meu filho. Mas você não precisava dessa exposição.

BELO
As coisas são como são. Mais vale uma verdade dura, que uma mentira doce.

(black-out rápido; um tiro; quando as luzes retornam Belo e Polaca estão conversando pouco antes da manifestação)

POLACA
Eu não posso fazer isso, Belo.

BELO
Você pode. Você tem que fazer isso. Você mesma me disse que a minha morte seria histórica, por todo o contexto. Eu estou preparado, Polaca Terceira. Essa é a minha missão nessa luta.

POLACA
Eu não sei...

BELO
Confia em mim.

POLACA
Eu confio. Eu sempre confiei.

BELO
Não se esqueça. Tem que acontecer do jeitinho que eu te falei. Eu tenho que morrer nos braços do meu pai. A deixa pra você atirar será: Mais vale uma verdade dura, que uma mentira doce.

(black-out rápido; um tiro; quando as luzes retornam a cena fúnebre do Papai Rei carregando Belo, com Polaca ao lado finaliza o espetáculo)

NARRADOR
E então, mesmo com um ato de sacrifício moralmente questionável, Príncipe Belo virou símbolo da luta. As coisas do bem e do mal possuem diversas variações de níveis, e confusões também. Ninguém é totalmente mocinho, mas às vezes é sim. E ninguém é totalmente vilão, mas às vezes também é. Tudo isso foi só uma desculpa pra gente poder discutir sobre gênero de uma forma ilustrada e divertida. E sem falso moralismo, por favor.

(black-out)

FIM