A CARTA DA MÃE MORTA


A CARTA DA MÃE MORTA

PERSONAGENS:
GUILHERME
VITÓRIA


CENA 1

VITÓRIA ESTÁ ESCREVENDO UMA CARTA SENTADA NUMA MESA. GUILHERME ESTÁ ASSISTINDO A CENA, EM TOM DE ORAÇÃO. ELA TERMINA A CARTA E SUSPIRA PROFUNDAMENTE SAINDO DE UM TRANSE.

VITÓRIA
A quem pertence? (ELA APONTA PARA GUILHERME) Irmão de alma, é pra você.

GUILHERME
Eu?

VITÓRIA
Você. A carta de hoje é pra você, Guilherme.

GUILHERME
Você tá falando sério, Vi?

VITÓRIA
Sim. Venha pegar.

GUILHERME
Minha mãe ou minha vó?

VITÓRIA
Mãe. Quer que eu leia ou você prefere ler sozinho?

GUILHERME
Prefiro ler sozinho.

VITÓRIA
Prudente.

GUILHERME PEGA A CARTA COM CURIOSIDADE, MAS NÃO ABRE.

GUILHERME
Não estou querendo parecer um descrente, mas... eu tô com medo...

VITÓRIA
Medo de quê?

GUILHERME
De ser algo muito genérico, que talvez não me convença. E a questão é que eu nem tô aqui buscando prova de nada, cê me entende? Eu nunca quis...

VITÓRIA
Leia a carta. Depois a gente conversa.

GUILHERME
Eu não duvido que você consiga fazer essas paradas, entende, Vi? Não é isso. É que só deus sabe o quanto eu questiono a vida em busca de clareza. E se tem uma coisa que eu nunca fiz questão foi de prova. Eu sempre pedi nas minha orações só por explicação lógica, não prova. (PAUSA) E se essa carta me sucumbir na fé pro lado negativo? Eu gosto de vir aqui. Justo agora? Por que agora?

VITÓRIA
Leia a carta, Gui.

GUILHERME
Eu tô com medo... que atrapalhe o bom momento que eu tô vivendo.

VITÓRIA
Então me dá aqui. (ELA TIRA A CARTA DA MÃO DELE)

GUILHERME
Não! Tá bom!

VITÓRIA PICOTA A CARTA.

GUILHERME
Não!

VITÓRIA
Não quer ver, não veja. Talvez a sua fé seja mais forte do que a da maioria da população, porque nem de evidência você precisa, de tanta fé que há dentro desse seu ser!

GUILHERME
Não.

VITÓRIA
Pronto.

GUILHERME
É sério que você faz isso com as pessoas?

VITÓRIA
Eu tento ajudar as pessoas nas suas questões. Qual foi a questão que você trouxe pra mim? Seu problema com a prova.

GUILHERME
Eu estava dizendo que talvez se não fosse uma carta muito específica até minha mãe saberia que eu não acreditaria e que isso mudaria a visão que eu tenho de você, Vitória! A visão que eu tenho de tudo isso! Justo agora que tava tudo caminhando bem!

VITÓRIA
Cara, você nem leu a carta. E até eu sei que você não acreditaria se não fosse muito específica.

GUILHERME
Exatamente! E se eu lesse e achasse que foi coisa muito óbvia que pudesse valer pra todo mundo que perdeu a mãe? Você me conhece, Vitória, não é difícil acertar algumas coisas óbvias! Eu não quero parecer um descrente, você sabe que eu boto fé nessas coisas, mas o pai da dúvida habita em mim... e oras, você é um ser humano feito eu, às vezes a gente se confunde tanto de propósito, mesmo que sem malícia, como inconscientemente.

VITÓRIA
Eu entendo o seu questionamento, Gui. Mas eu não ganho nada com isso aqui...

GUILHERME
Ganha sim, ganha uma autoridade sim, um poder de voz pelo menos aqui dentro.

VITÓRIA
Tá, tudo bem. Eu não estou tentando te confortar em nada, eu não sei explicar como essas cartas chegam à mim. Você me conhece um pouco, eu não estou tentando enganar você.

GUILHERME
Eu sei que não, Vi. Eu sei que não. O que eu digo é que, e se é sua mente que está enganando nós dois?

SILÊNCIO.

GUILHERME
De qualquer forma agora você já destruiu a carta. Eu acho... até melhor eu viver nessa dúvida.

VITÓRIA
Bom, como eu sabia que você daria esse show existencialista, eu guardei a original e te entreguei uma cópia.

GUILHERME
O que?!

VITÓRIA
Tome. (ENTREGA A CARTA ORIGINAL) Essa vem com a letra da sua mãe, acredito. Se tudo der certo.

GUILHERME
Sua lazarenta.

BLACK-OUT.


CENA 2

GUILHERME LÊ A CARTA EM UM FOCO.

GUILHERME
“Filhinho amado. (ELE VIRA OS OLHOS EM REPROVAÇÃO) Cada nano segundo longe de você parece uma eternidade. Saiba que eu estive olhando pelos seus caminhos e sei que você está conseguindo encontrar as respostas que buscava. Cuidado para não crer sem evidência; aquilo que parece ser bom, nem sempre é a verdade. Há um nirvana, filhinho, mas você não vai alcançá-lo com as drogas; lembre-se que eu tentei e ando tentando ainda. Estar aqui é quase como estar aí. Não se preocupe tanto com coisas simples. O sol nasce e o se põe e pronto. Às vezes é mais fácil aceitar do que ficar buscando por uma resposta que não mudará muita coisa porque o sol ainda estará nascendo e se pondo você buscando o porquê ou não. Não é um incentivo pra você se manter ignorante, é só pra tentar encontrar a paz nessa busca também, como prioridade ainda. Resposta certa em agonia serve de quê? Tenha juízo e aprenda logo a lidar com o dinheiro, não deixe a preocupação te dominar. Viva. Beijinhos de sua mamãe.” (PAUSA) Porra, que sermão consciente, bicho. Porém...

VITÓRIA ATRAVESSA O PALCO.

GUILHERME
Vitória!

VITÓRIA
Oi, Gui.

GUILHERME
Podia trocar uma palavrinha?

VITÓRIA
Eu sei o que você vai dizer. Se puder resumir... eu entendo.

GUILHERME
(PAUSA) Eu não acho que você seja uma farsa. Te juro que não acho que você esteja abusando da minha boa vontade, que tenha sido na malícia. Eu entendo a boa intenção, juro por deus. Mas eu acho que a carta é um sermão seu.

VITÓRIA
Entendo...

GUILHERME
Calma, deixa eu te explicar. Assim, eu sei que você tem essa parada de conversar com os mortos...

VITÓRIA
Eu sei tudo o que você vai falar.

GUILHERME
Você sabe porque vê o futuro? Porque tá lendo a minha mente?

VITÓRIA
Eu sei só porque é óbvio. É essa a parada que eu tenho, Gui. Eu saco, saca?

GUILHERME
Não saco.

VITÓRIA
(SILÊNCIO) Eu não consigo ilustrar pra você. Ou dar um exemplo que faça você entender. Eu só digo que as coisas estão além da nossa compreensão de percepção da realidade, entende? A gente sabe como é a sensação de ser um ser humano só, conscientemente. O que existe no inconsciente é onde habita o que você e nós aqui chamamos de espírito. Mas espírito não é como você imagina e é difícil ilustrar precisamente uma coisa que se sente, sabe? Manja uma frequência de rádio? É o mais próximo que eu consigo chegar, mas ainda assim é muito distante.

GUILHERME
Você é muito boa nisso, cara.

VITÓRIA
Desculpa, Gui.

GUILHERME
Eu que peço desculpas por fazer o papel do incrédulo. Me entenda...

VITÓRIA
Eu entendo.

GUILHERME
Minha mãe sempre deixava a letra de alguma música que ela inventava nos bilhetes. Em tudo ela escrevia um trecho de uma música que depois ela cantava pra gente.

VITÓRIA
Gui, quando a gente desencarna a gente muda. Outras coisas são prioridades. Volta ao consciente toda a bagagem de outros tempos, que está gravado na memória do espírito. Não é a sua mãe, exatamente, sua mãe, com aquele nome, com aquele rosto, com aquela história de ser a sua mãe e artista e tudo o mais, aquela morreu. Ela faz parte do todo agora. Ao mesmo tempo que ela está aí dentro da sua cabeça quando você lembra ou você imagina e sonha com ela, ela está em cada nano partícula de todo o espaço, como espírito, como uma onda. Ao mesmo tempo que individual parte de um todo, ao mesmo tempo que consciente de sua existência individual consciente também que é um só. Eu ouvi a voz de uma mulher que se apresentou como sua mãe, Gui. É isso que eu sei. Você reconhece a letra dela?

GUILHERME
Eu não lembro da letra dela. Eu tinha doze anos. (PAUSA) Eu sinto... eu sinto que poderia ser você me falando as mesmas coisas que estão na carta, é isso.

VITÓRIA
Bom, se não te serviu como prova funcionou do jeito que você queria. Eu não tenho que te provar nada aqui, eu não sobrevivo às custas do centro.

GUILHERME
Por um sentimento que você acha ser altruísta, talvez. Mas... desculpe. Desculpe, desculpe. Você sabe o quanto eu sou confuso. Eu só não entendo por que você teve de fazer isso agora? Eu tava bem, tava tudo fluindo, tava confortável do jeito que tava...

VITÓRIA
Provas. Provações.

VITÓRIA SAI.

GUILHERME
Talvez ela seja uma boa manipuladora só. Talvez o dom da manipulação seja o que a gente chama de mediunidade! Mas manipular as pessoas nesse sentido pra qual razão? Ela não ganha nada com isso. (PAUSA) O instinto de querer ajudar. Pode não ser por malícia, por maldade. Não. Não é por mal. Mas não me fez bem também. Cara, caralho, eu não duvido da possibilidade de ser real, eu acredito nessas paradas pra cacete, mas ao mesmo tempo eu duvido da honestidade das pessoas, é isso. Eu duvido da honestidade das pessoas e não da ideia. Eu não sou um incrédulo. (PAUSA) Mãe, se você pode me ouvir, eu nunca precisei ou busquei uma mensagem sua, você sabe disso, não é por isso que eu gostava de ir no centro, eu nunca quis isso. Se você enviou aquela carta você havia de saber que seria difícil me convencer, e que até poderia me atrapalhar se a verdade é realmente essa. Você me conhece mais do que ninguém. E se não foi você então mais ainda que eu preciso da sua ajuda agora, porque eu acredito que há uma obrigação moral de a gente se unir pra desmascarar uma mentira que mancha o nome do espiritismo. O que você me diz, mãe? Não seria uma obrigação? Eu sinto. Você sempre me falava das intuições. É uma delas o que eu tô sentindo agora.

GUILHERME SENTE UM SONO PROFUNDO REPENTINAMENTE. VITÓRIA ENTRA TOCANDO UM VIOLÃO. GUILHERME BOCEJA E COÇA OS OLHOS.

GUILHERME
Nossa. O que significa isso? Vocês ouvem? Vocês tão ouvindo essa música? Minha mãe escrevia músicas quando era viva. É uma coisa específica que talvez teria me convencido de primeira. Seria mais fácil de reconhecer...

GUILHERME, NUM LEVE TRANSE, VAI ATÉ UM MICROFONE.

GUILHERME
Ele sou eu, ele me deu
Me deu meu filho
Me concebeu
Um menininho que sozinho
Me ensinou onde estava o amor
Amor de deus
Pra onde eu vou?
Hoje eu te empurro desse ninho
Vai voar, meu passarinho
Se cair estarei longe
Mas assoprarei mesmo assim o seu dodói

Você não é mais o centro quando carne se tornou
Menino egocêntrico não responde ao deus senhor
Às vezes perder a luta é vencer na contra mão
Aceite a história do seu irmão de alma
O nome disso é comunhão
Nessa imensa sala de aula sideral
Paz que acalma a alma dela
Tanto quanto a sua
É a lição de casa principal

Paz que acalma a alma dela
Tanto quanto a sua
É a lição de casa principal
 
VITÓRIA SAI E GUILHERME ACORDA DO TRANSE.

GUILHERME
Jesus, pai amado. Que caralho foi isso?

BLACK-OUT.


CENA 3

VITÓRIA ESTÁ EM MEDITAÇÃO.

VITÓRIA
Pai, eu não peço mais compreensão, eu peço paz. Não que eu tenha chegado no limite da sabedoria, muito longe disso. Mas acho que daqui por diante eu posso me atrapalhar na linha da sanidade e eu estou confortável aqui. Você sabe o quanto eu duvidei de mim mesma durante todo esse tempo. Dom? Maldição? Não me parece uma coisa tão surreal como as pessoas pensam, porque, oras, essa é a vida que eu conheço desde sempre, eu só posso saber do que eu sei! E mesmo assim o pai da dúvida também me atentou, você sabe disso, é você que guia essa harmonia, eu sei. Ao mesmo tempo que eu quero evoluir pro nível seguinte, pai, não sei se é coisa do orgulho, mas eu tenho... eu tenho medo do passo seguinte, de como ele virá, de quem ele virá, com qual resposta ele virá. E se essa resposta ainda desbanca a minha resposta! (PAUSA) Talvez chegue uma hora de simplesmente passar o bastão. Faz muito tempo que a gente tem feito esse trabalho junto, pai, eu sei. Mas é onde as pessoas me escutam, onde algumas pessoas me dão algum propósito. Vai ser complicado passar adiante assim sem mais nem menos. (PAUSA) Eu entendo.

SILÊNCIO. VITÓRIA VAI ATÉ UM ESPELHO E SE ENCARA.

VITÓRIA
É você mesmo ou sou eu? (PAUSA) É você. Ou sou eu.

BLACK-OUT.


CENA 4

GUILHERME ESTÁ COM O VIOLÃO E UM CADERNO TENTANDO LEMBRAR DA LETRA DA MÚSICA EM PENSAMENTO.

GUILHERME
Cara... tá na ponta da língua. “Paz que acalma a alma sua, e a dela também, é a principal...” Não. Cacete. Sideral. (ANOTA) Eu sei que as palavras estão aí em algum lugar. Tem espaço pra porra aí dentro, eu tô ligado! Vamo, vamo! “Paz que acalma a alma dela, e que acalma a sua...” (REFLETE NA MENSAGEM) Cacete.

VITÓRIA ENTRA.

VITÓRIA
Gui!

GUILHERME
Vitória!

VITÓRIA
Cê pode trocar uma palavrinha?

GUILHERME
Claro.

VITÓRIA
Fazendo música?

GUILHERME
Tive... uma inspiração.

VITÓRIA
Eu nem sabia que você tocava.

GUILHERME
Minha mãe me ensinou um pouco, mas... eu parei de praticar depois.

VITÓRIA
Entendi.

SILÊNCIO.

GUILHERME
Você ia dizer alguma coisa?

VITÓRIA
Ah, sim. É... eu sinto... Eu venho pensando... se a gente poderia passar um tempo junto. Só pensado nisso. (BRINCA) Não é o que você tá pensando, a gente não tem química pra brincar de casal, não insista.

GUILHERME
Eu insistir?

VITÓRIA
Só porque somos um homem e uma mulher não significa que precisa ser uma relação de amor.

GUILHERME
De amor tem que ser sim. Talvez não precise de sexo, mas uma relação que não seja de amor tem qual propósito?

VITÓRIA
(SURPRESA) Esse é o motivo. Eu quero passar mais tempo com você porque... tem uma coisa em você. Eu vejo desde que você entrou no centro lá daquela vez, que tem uma coisa em você?

GUILHERME
Você diz um enconsto?

VITÓRIA
Não. O contrário disso. Na verdade, depende do ponto de vista!

GUILHERME
Ladainha, Vitória, fala logo!

VITÓRIA
Eu acho que você também tem um tipo de mediunidade. Eu sinto isso em você. Eu sempre soube.

SILÊNCIO. GUILHERME FICA CURIOSO, PENSANDO NA MÚSICA. INSTANTANEAMENTE ELE TERMINA O TRECHO QUE FALTAVA, PEGA O VIOLÃO E CANTA PARA VITÓRIA.

GUILHERME
Paz que acalma a alma dela
Tanto quanto a sua
É a lição de casa principal

Paz que acalma a alma dela
Tanto quanto a sua
É a lição de casa principal

VITÓRIA
Você canta bem, Gui.

GUILHERME
Mãe.

VITÓRIA
O que foi isso?

GUILHERME
Mãe.

SILÊNCIO.

VITÓRIA
Você tá dizendo que...

GUILHERME
Sim, acho que sim.

VITÓRIA SORRI E ABRAÇA GUILHERME.

GUILHERME
Desculpe ter desconfiado de você.

VITÓRIA TENTA SORRIR, MAS DESABA.

VITÓRIA
Desculpe, desculpe!

GUILHERME
O que foi, Vi? Eu disse alguma coisa?

VITÓRIA
Não. Eu quero pedir perdão. Eu nunca pretendi fazer o mal pras pessoas. Mas... eu acho que eu fiz. Eu acho que eu fiz, eu acho que eu fiz! Agora eu entendo.

GUILHERME
Vi, calma!

VITÓRIA
Eu não posso afirmar com cem por cento de certeza que foi a sua mãe quem escreveu aquela carta, Guilherme. Eu escuto, eu quero acreditar, eu busquei uma resposta pro que eu sentia que acontecia comigo e por fim eu aceitei a resposta que mais bateu. Simples assim! E... eu não tenho certeza. Pode ser coisa da minha cabeça...

GUILHERME
Como pode ser real também.

VITÓRIA
Sim, pode ser real, mas pode ser que não seja! Pode ser que eu seja louca! Pode ser que meu instinto seja manipulador!

GUILHERME
Vitória, mesmo se você manipula as pessoas pra coisas boas por que isso deveria ser ruim?

VITÓRIA
Porque pode ser tudo mentira! Pode ser mentira, Guilherme! Existe mentira boa? Fala pra mim. Existe mentira boa?

GUILHERME
Talvez até exista. Se eu sei que uma verdade pode te magoar eu acho justo a mentira.

VITÓRIA
Sou eu quem decido se a verdade me magoa ou não.

GUILHERME
Sou eu quem decido se eu quero te fazer passar por essa provação ou não.

SILÊNCIO.

VITÓRIA
Seu lazarento. Você é bom. Eu estou meio desesperada porque eu sinto que está na hora de eu passar meu bastão.

GUILHERME
Como assim?

VITÓRIA
Eu estou saturada. A gente precisa evoluir, eu sei disso. E na lição de casa da vida a parte principal é saber querer aprender. Saber querer aprender.

GUILHERME
A paz que acalma a alma também.

VITÓRIA
Eu vou encontrar essa paz. Eu preciso parar. Parar e refletir um pouco. Eu não posso liderar uma igreja vivendo com essa dúvida.

GUILHERME
O que você tá falando, Vi? Todo mundo precisa de você.

VITÓRIA
Todo mundo quem?

GUILHERME
Eu, todo mundo lá! Você tem um dom, Vitória, eu já vi o que você fez pras pessoas, pra mim! Cara, agora eu sei que foi a minha mãe.

VITÓRIA
Foi a sua mãe que falou com você, por causa de uma mentira minha!

GUILHERME
Pois veja outro exemplo de uma mentira boa, Vitória! Tá aí!

SILÊNCIO.

VITÓRIA
Isso é não é certo, Gui.

GUILHERME
Foi certo pra mim. Vou te confessar. Eu pedi ajuda da minha mãe, quase exigindo justiça contra sua mentira. É sério. Eu sei que aquela carta pode ter saído da sua cabeça, Vitória, é tudo muito genérico o que você escreveu. Eu já sabia.

VITÓRIA
Ela saiu da minha cabeça mesmo. Eu sei.

GUILHERME
No fim das contas, Vitória, minha mãe me trouxe um outro ensinamento. E pode ser que seja coisa da minha cabeça também! Mas me pareceu no mínimo pertinente. A justiça não é a pauta principal, não depende de nós conscientemente. Eu acho que a nossa missão é trabalhar a paz. Eu não posso viver em paz se você não estiver em paz também. Eu não posso ser a pessoa que vai desbancar a sua mentira pelo meu simples ego em nome da justiça, não se isso não faz mal pra ninguém. Eu não posso ter como propósito destruir o seu propósito! Você não está fazendo mal nenhum, você sabe que faz o bem pras pessoas, e fazendo o bem você faz bem pra você mesma. Por que diabos eu faria o papel de destruidor disso?

VITÓRIA
Porque é mentira.

GUILHERME
(LÊ) “Você não é mais o centro quando carne se tornou
Menino egocêntrico não responde ao deus senhor
Às vezes perder a luta é vencer na contra mão
Aceite a história do seu irmão de alma
O nome disso é comunhão
Nessa imensa sala de aula sideral
Paz que acalma a alma dela
Tanto quanto a sua
É a lição de casa principal”

SILÊNCIO.

VITÓRIA
Gui, essa é a mensagem pra você. A minha paz agora é refletir sobre tudo isso. Alguém vai precisar tomar conta do centro. Eu posso ajudar na burocracia até você pegar o jeito, eu vou estar sempre ali com você mesmo que de longe, sempre que precisar...

GUILHERME
Vitória, pelo amor de deus, eu não posso assumir um negócio assim. Você tá falando sério?

VITÓRIA
Você não quer? Se você não quiser eu passo pra Antônia, ela está mais preparada mesmo, tá até esperando o momento dela, ela e o marido...

GUILHERME
Não. É que... é sério mesmo?

VITÓRIA
Sim. Eu acho realmente que tinha que ser você.

GUILHERME
Por que?

VITÓRIA
Porque não sei.

GUILHERME
(PAUSA) Você está decidida mesmo, né?

VITÓRIA
Não sei. Se der na telha eu volto. Eu preciso de um tempo. Eu sei que você pode fazer um trabalho melhor que o meu, se quiser. Eu vou visitar a minha mãe. Mãe. Entende?

GUILHERME
Entendo.

VITÓRIA
Escute, nosso centro é bastante independente, mas tem alguns ritos que eu vou passar pra você, você já conhece a maioria.

GUILHERME
Menina. Calma. Não é assim...

VITÓRIA
Gui, se você acha que não consegue, a Antônia é super gente boa, e o marido... mais ou menos, mas...

GUILHERME
Tá. Espera. Tá bom.

VITÓRIA
Tá bom?

GUILHERME
Menina, mas como eu vou passar confiança com as minhas dúvidas, Vitória?

VITÓRIA
As suas dúvidas é a exata benção que deus te deu, Guilherme. É a benção que você passou pra mim, repare! É a benção que você passou pra mim. A benção da dúvida.

GUILHERME
Benção?

VITÓRIA
Benção.

SILÊNCIO.

VITÓRIA
Obrigada, Gui. Eu já sabia que você estava disposto a me ajudar. Eu sempre soube.

GUILHERME
Porque você prevê o futuro, né?

VITÓRIA
(RI) Exato. Eu já sei de tudo e mais um pouco.

ELES RIEM. VITÓRIA ABRAÇA GUILHERME E SAI. GUILHERME FICA POR UM TEMPO PENSATIVO; ELE PEGA UM COPO COM WHISKY.

GUILHERME
Você ter a responsabilidade e voz para transmitir uma ideia tanto de conforto como respostas absolutas para certas coisas, é necessário adquirir um nível espiritual e de moralidade à frente da média. Porque para domar um poder, é necessário estar pleno e em profunda harmonia com o todo. Não se pode manter egoísmos e até mesmo o prazer da carne pode atrapalhar, se você pretende-se dizer um líder espiritual. Pode dar uma grande merda você aceitar ser pastor, porque se você for um influenciador bosta você criará ovelhas bostas. Vejamos, por exemplo uma pessoa que não sabe lidar bem com o dinheiro. Ela pode ser uma boa pessoa, essa pessoa. Ela pode ter algum tipo de poder divino e mesmo assim não saber lidar com honestidade na área financeira, por exemplo. (PAUSA) Dinheiro sempre foi uma prova na minha vida. Eu aprendi a conversar com os mortos, oras, as pessoas pagam por isso, e pagam bem pra ouvir o filhinho morto falar umas palavras óbvias de consolação! Sobreviver às custas de um dom de deus pode ser considerado pecado? (COM MALÍCIA) Deus acaba de me responder aqui na minha cabeça de que está tudo muito bem.

BLACK-OUT.

FIM





O SER ELÉTRICO

O SER ELÉTRICO
De Gabriel Tonin

PERSONAGENS
CONCEIÇO
LUCI
HD
DR. CARLO

CENÁRIO: UM BANCO AO LADO DE UMA LÁPIDE.


CENA 1

CONCEIÇO ENTRA DEVAGAR E SENTA-SE NO BANCO. EM UM CANTO, HD DORME EM UM PAPELÃO.

CONCEIÇO
Aos poucos você começa a perceber que não lembra mais de nada. Por mais de trinta anos, cada trezentos e sessenta e cinco dias por ano, sete dias por semana, vinte e quatro horas por dia, sessenta minutos por hora, sessenta segundos por minuto, você percebe que lembra pouco. Flashs. Coisas que nem pareciam tão importantes misturados à grandes acontecimentos. Fica aqui, meio vagando, meio como se tivesse acontecido com outras vidas, mas que você lembra porque deve de ter acontecido. (PAUSA) Ano passado eu quase morri. Eu sofri um acidente de carro e fiquei oito dias em coma induzido. Um milagre, voltei sem sequela nenhuma, tirando a dor do coração. Luci. Minha namorada não resistiu ao acidente. Era ela quem tava dirigindo o carro. Já tinha sido velada quando eu acordei. Minha despedida teve que ser por sonho apenas.

LUCI ENTRA RADIANTE.

CONCEIÇO
Luci. Eu tô dormindo, né? Você morreu. Eu não pude ir no velório...

LUCI
Eu sei. Não importa. Eu também não fui.

CONCEIÇO
Não é você de verdade, eu sei que não é você de verdade. Se eu tô sonhando é criação da minha cabeça. Mas... parece tão real. É o seu perfume...

LUCI
Você sempre tirando conclusões absolutas. Não é porque eu estou dentro da sua cabeça que não sou eu mesma.

CONCEIÇO
(RI)

LUCI
O que você conhecia de mim sempre foi a que estava na sua cabeça, ué. Lembra que a gente ficava conversando sobre esses mistérios?

SILÊNCIO. CONCEIÇO CHORA.

CONCEIÇO
Ninguém existe se não houver alguém pra dizer que ele existe.

LUCI
Exato! Mas não tão simples.

CONCEIÇO
Eu não entendo. Por que isso teve de acontecer? Nada daquilo é real, Lu! A gente achava que era, mas não é assim que funciona! A gente tá fadado ao acaso, sim. De que adiantou viver acreditando que a gente tava no controle?

LUCI
Oras, de que adiantou? De que adiantou? Olha pra mim! Olha pra mim, Con! (ELE OLHA) Eu pareço estar ruim? Hã? Eu tô com uma perspectiva do caralho, bicho!

CONCEIÇO
(RI) É óbvio que meu subconsciente ia vir falar que está tudo bem com você.

LUCI
Você não está me criando, bebê. Eu posso estar dentro do seu inconsciente, mas não é você quem está me criando.

CONCEIÇO
O que? Para. Você é um espírito então? Se fosse realmente você, um espírito seu, você saberia muito bem que seria difícil eu acreditar nisso.

LUCI
Eu sei.

CONCEIÇO
E como eu estou em choque é óbvio que eu volte às origens básicas de histórias de fantasmas. A gente precisa se segurar em alguma coisa.

LUCI
É verdade.

CONCEIÇO
Por isso, a minha cabeça. Eu sei que eu estou criando você.

LUCI
Não está.

CONCEIÇO
Você veio mesmo dizer que essa parada de espiritismo é real? A hora que eu acordar você sabe que essa ideia não vai colar. Eu vou refletir e não vai colar.

LUCI
Não. Você não entendeu. Não é tão simples assim.

CONCEIÇO
Então é o quê?

LUCI
Eu estou na sua cabeça de verdade. Dentro do seu cérebro mesmo, mais ou menos do jeito científico que você imagina. Mas não como uma criação, não é você que está me criando. E também nem como um espírito conversando do além, no formato sobrenatural do que as pessoas imaginam, possuindo o seu cérebro, não assim. Você não está colocando as palavras na minha boca. A alma... a alma é luz. E não luz no sentido bíblia da palavra; luz no sentido eletricidade. Você me filmou, eu tô gravada pra sempre nesse seu condutor. Nós estamos em tudo!

HD ACORDA E LIGA O RETROPROJETOR. EM VÍDEO SURGEM GRAVAÇÕES DE MOMENTOS FELIZES DO CASAL; UM VÍDEO ROMÂNTICO DE RECORDAÇÕES. CONCEIÇO SE EMOCIONA.

CONCEIÇO
Nossa, eu quase tinha esquecido desse dia... (CHORA) Desse dia eu lembro! Desse eu lembro! (PAUSA) É cruel... esquecer. E lembrar dói.

O VÍDEO TERMINA E HD DEITA-SE NOVAMENTE.

CONCEIÇO
Você tá fazendo aquele apelo emocional. Que desonesto, Luci! É fácil acreditar em qualquer baboseira assim, mas eu sei que, tá tudo guardado no meu subconsciente e...

LUCI DESAPARECEU.

CONCEIÇO
Luci! Espera! Luci! Se você é um fantasma eu te invoco agora! (PRA SI) Sou eu quem estou criando, é coisa da minha cabeça, volta. Volta, Luci. Eu estou pensando em você, pode voltar agora, eu quem mando no meu cérebro, eu quero sonhar com você, todo dia, TODO DIA! (SILÊNCIO) Volta...

HD
(CANTA DORMINDO; UM TANTO MACABRO; CONCEIÇO VAI CAINDO NO SONO)
Não, não é
Fique de pé
Olhe a loucura que passou com Noé
E aquele cara que inventou o avião
Todo mundo está em conexão

BLACK-OUT.


CENA 2

QUANDO A LUZ RETORNA, CONCEIÇO ACORDA ASSUSTADO.

CONCEIÇO
Nunca mais ela apareceu nos meus sonhos. Eu fico aqui pensando qual é o motivo pra meu cérebro não querer mais sonhar com ela. Talvez seja porque eu e ela há alguns anos praticávamos uma teoria de esquecer as histórias ruins e focar nas coisas boas. Obviamente meu cérebro ficou condicionado a não deixar coisas que poderiam me atingir aparecerem, e como a lembrança e choque final que eu tive da nossa história foi um trágico acidente de carro, meu cérebro foi lá, e pá!, bora pra frente. A gente participou de um desses treinamentos de auto confiança, sabe, ela levou mais à sério e me arrastou junto nessa ideia. No fim das contas, tinha sido tudo muito bom até. A gente conquistou umas paradas surreais, umas coinscidências malucas e tal. Mas... nada que não podemos creditar ao acaso, claro. Mais ou menos. De qualquer forma, ela só conseguiu me convencer da prática desses coachs positivistas com o seguinte argumento: real ou não, o que a gente perde em colocar foco somente nas coisas boas da vida? É lógica, não magia. Aconteceu alguma coisa ruim? Tudo bem, a melhor coisa a se fazer é superar o quanto antes, como diz a famosa frase, “não há razão, motivo ou circunstância pra chorar no leite derramado”. (PAUSA) Mas é complicado lidar com o sentimento, eu tô muito ligado de que é. E é aí que está o problema. Você não conseguir lembrar porque está doendo é exatamente o motivo da dor, o que é surreal! A culpa de seguir adiante dói, cara, é muito estranho. (PAUSA) Eu não acredito que eu caí numa dessa. A gente pagou uma grana pra aquele treinamento e o destino reservava tragédia. Como é que pode a gente acreditar que está no controle e no fim morrer num acidente de carro? Não existe propósito numa crueldade dessa! Porque se é algum tipo de provação, eu desisto, porra, e vá tomar no cu, universo!

CONCEIÇO TIRA UM CELULAR DO BOLSO.

CONCEIÇO
(PARA HD) Amigão? Fera? Ow!

HD
(ACORDA ASSUSTADO) Oi! Mãe. Fala.

CONCEIÇO
Você pode passar a senha do wifi fazendo o favor?

HD
Peraí. (PEGA UM LIVRO GRANDE) Quer se conectar com quem?

CONCEIÇO
Com a internet mesmo. Geral.

HD
Só um minuto. (PROCURA NO ÍNDICE E VAI OLHANDO PELAS PÁGINAS) Hoje é sexta, né?

CONCEIÇO
É.

HD
(ACHA) Olha, você vai precisar de arruda, três dentes de alho, uma pitadinha de sal e chá de maracujá. Coloca o ramo de arruda, o alho e o sal na palma da mão, chacoalha até o sal sumir, toma dois goles seguidos do chá e deixa a arruda e o alho em cima do celular por treze segundos. 

CONCEIÇO
Beleza, valeu.

INESPERADAMENTE CONCEIÇO TIRA TODOS OS INGREDIENTES DA BOLSA E FAZ O RITUAL COMPLETO.

HD
Deu certo? Hoje tá meio o fraco o sinal. Já liguei lá e eles falaram que é no sistema, mas que até de madrugada vão resolver. Mas tá dando.

CONCEIÇO
Deu. Valeu.

HD
Beleza. (VOLTA A DORMIR) Qualquer coisa tamo aí.

CONCEIÇO
O tédio e a ansiedade depois de uma experiência com a morte, misturado com o medo da mortalidade e dos mistérios dela, são os mesmos tipos de tédio e ansiedade de sempre. Aqui estamos nós. Na vida virtual de nós. (ELE TIRA UMA SELFIE E DIGITA UMA PUBLICAÇÃO) “Eu sei que tudo vai ficar bem”.

BLACK-OUT.


CENA 3

LUCI ESTÁ NO CONSULTÓRIO DO DR. CARLO.

DR. CARLO
Eu quero que você feche os olhos e foque na minha voz.

LUCI
Doutor, me desculpe, eu tenho muita dificuldade nesse tipo de concentração. Ninguém nunca conseguiu fazer isso comigo.

DR. CARLO
Vamos tentar. Nós vamos usar uma palavrinha mágica que tem um certo poder.

LUCI
Você sabe que eu tenho explicação lógica pro poder que a gente dá pras palavras, né? Há um sentido lógico nisso.

DR. CARLO
Eu sei, eu não disse que não. Mas apenas ouça. Faça a tentativa comigo.

LUCI
Você sabe que eu quero acreditar e eu faço força pra isso, você sabe. Eu posso até tentar botar fé na mágica dessa palavra, mas existe uma... uma...

DR. CARLO
Fala, pode falar. É essa a palavrinha mágica que eu ia usar.

LUCI
(PENSA) Justo. Curioso. Eu não gosto de falar porque eu sei que a culpa é toda dela. A culpa de todas as merdas!

DR. CARLO
De modo algum. Foi exatamente ela quem te fez chegar onde chegou. Os deslizes e erros também fazem parte. Acidentes não são exatamente acidentes.

LUCI
Agora eu entendo porque criaram o diabo como o pai dessa merda.

SILÊNCIO.

DR. CARLO
Dúvida.

LUCI CAI NUM SONO PROFUNDO E O AMBIENTE ACOMPANHA SUA VIAGEM.

DR. CARLO
Dúvida. Dúvida. Dúvida. A próxima vez que eu disser essa palavra você vai voltar ao seu estado consciente, Luci.

LUCI
Eu estou com sede.

DR. CARLO
Tem um copo de água na sua mão.

LUCI BEBE A ÁGUA IMAGINÁRIA.

DR. CARLO
Quero que você volte ao dia do acidente.

LUCI
Lua cheia. Ele está muito bêbado. Eu tomei duas taças de vinho só, estou bem. Olha uma coruja, amor. Nossa, ela pegou aquele rato, você viu? Você viu? Máximo noventa quilômetros. Uma casinha. Verde. Eu moraria aqui. Tá tocando The Cranberries. Linger. Como minha cabeça lembra do número da placa daquele carro ali na frente?

DR. CARLO
Tudo que você pode ver, ouvir e sentir conscientemente é captado pelo seu cérebro. Seu consciente deixa à disposição somente aquilo que lhe é muito importante, mas seu inconsciente está absorvendo absolutamente tudo. Há inconscientes tão bem trabalhados e evoluídos, aquilo que algumas pessoas chamariam de médiuns hoje em dia, que apenas dormir com a cabeça em cima de um livro faz com que esse indivíduo absorva aquilo que está no livro, da capa até a bibliografia.

LUCI
Não sei se isso é real. Eu tô com a boca amarrada por conta do vinho. Tem mais água?

DR. CARLO
Acabou.

LUCI
Eu sinto... que está prestes a acontecer.

DR. CARLO
Acontecer o que?

LUCI
Não sei. (ELA GRITA) Ah, meu deus! (ELA SE CHACOALHA E DESMAIA MESMO HIPNOTIZADA) A gente bateu. Amor? Amor? Eu acho... que eu morri. Meu braço. O que aconteceu com meu braço? (ELA CHORA) Eu vou morrer. Eu tô morrendo...

DR. CARLO
Você está bem. A dor passou. Agora vá adiante. Avance um pouquinho. Alguns dias se passaram...

LUCI
(PAUSA) Ele está me chamando. Ele acordou. Devo ir?

DR. CARLO
Você foi?

LUCI
Fui. (PAUSA) Ele acha que eu sou coisa da cabeça dele.

DR. CARLO
Não é sua função fazer prova.

LUCI
Eu preciso contar pra ele, doutor.

DR. CARLO
O que ele está dizendo?

LUCI
Eu estou sonhando. Não é real.

DR. CARLO
E o que você disse?

LUCI
Não. Eu estou sonhando! Ele me chamou por sonho. Ele acha... ele acha que fui eu que... (PAUSA; ELA SE DESESPERA) Eu não quero que seja assim! Se for assim eu não quero! Eu desisto! Por favor, deus! Por favor! Eu quero um black-out! Cadê o fim? Ele está confuso! Eu não quero! Eu não quero ser um fantasma assim! Não! Por favor, não!

DR. CARLO
Dúvida.

LUCI ABRE OS OLHOS CALMAMENTE.

LUCI
E aí? Deu certo?

DR. CARLO
Você realmente tem um bloqueio, infelizmente.

LUCI
Eu disse.

BLACK-OUT.


CENA 4

HD ESTÁ TENTANDO HIPNOTIZAR CONCEIÇO COM UM RELÓGIO.

HD
Eu aprendi essa técnica num tutorial de um canal só de hipnose.

CONCEIÇO
Da hora. Eu curto essas paradas.

HD
Foca aqui no relógio. Tenta contar os segundos.

CONCEIÇO
Ok. Dezessete, dezoito...

HD
Não, conta só na sua cabeça.

CONCEIÇO
Certo.

SILÊNCIO.

HD
Eu vou dizer uma palavrinha mágica. Quando eu disser você entrará num sono profundo e ouvirá apenas os comandos da minha voz.

CONCEIÇO
Ok, chefe, eu tô preparado.

HD
Só conta, não precisa responder agora. Essa palavra é uma palavra de muito poder cósmico. A supra inteligência, ou que se diga deus, funciona eletricamente com essas palavras, desde sempre, hoje e para sempre, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Mas não é só uma palavra, porque a palavra por si só soa até um pouco piegas e moralista, um tanto um pouco brega e religioso, meio auto ajuda. É uma palavra que exige a força do sentimento. E fica mais piegas ainda junto com sentimento, mas foda-se, porque no fundo você sabe que a profundidade e a força está realmente toda nela.

CONCEIÇO
Eu sei qual que é a palavra, a palavra é fé.

HD
Não, cara, a palavra é calma.

CONCEIÇO DESMAIA HIPNOTIZADO.

CONCEIÇO
Nossa. Nossa mesmo.

HD
Podemos começar o estudo. Não leve tão à sério tudo isso porque no fim das contas estar em paz é saber lidar com os prazeres da carne e da alma, tudo misturado. O prazer da comédia, do escracho, da superficialidade, das partes íntimas, tudo junto com o prazer da luz, da poesia, do divino, do ordinário e do extraordinário. Eu quero que você volte pra sua primeira existência aqui na Terra.

CONCEIÇO SE TRANSFORMA EM UM SER UNICELULAR.

HD
Agora adiante um pouco, alguns milênios.

CONCEIÇO SE TRANSFORMA EM UMA ÁGUA VIVA.

HD
Mais alguns milênios...

CONCEIÇO SE TRANSFORMA NUMA GALINHA; ELE CISCA CÔMICAMENTE PELO PALCO.

HD
Isso, amigo. É necessário um pouco de paz até na diversão estúpida! Eu me divirto aqui com esses caras fazendo cena de galinha. É esse o segredo da vida, meu amigo! Pra quê se preocupar! Você vai voltar pro braço da sua amada, só que não conscientemente. A energia que esteve aqui, está hoje e sempre estará! E isso não é pra você só ficar tranquilo na sua vida e parar de reclamar das coisas mais estúpidas e rir dessas coisas mais estúpidas, porque isso aqui não é um espetáculo de auto ajuda, é só uma coisa básica. Não existe outra opção. Ou cê corta os pulsos e você se propõe a vir pro teatro fazer e assistir um cara imitando uma galinha, porra! E tá tudo bem! E acidentes acontecem, mas olha só a grandiosidade dessa porra! Ou corta os pulsos ou lida com essa merda da melhor forma que dê pra lidar! Tem que seguir adiante! Segue a luz! Segue a luz, porra! Seu corpo físico de hoje nem é mais o mesmo corpo físico de quando você nasceu. Não sei se você sabe, colega, mas seu corpo se renova célula por célula a cada oito, nove anos, bicho. A reencarnação acontece até durante a vida, porra! E o que se segue por depois da morte é do mesmo jeitinho, só não há a capacidade mental pra se ilustrar e dar uma exatidão no formato de percepção da realidade que se virá, então me desculpe por conseguir chegar só até aqui. Por isso... vai ficar tudo bem. Calma.

CONCEIÇO ACORDA.

CONCEIÇO
E aí? Deu certo?

HD
Deu. Seu problema vem de quando você era uma galinha. Você viu seu galo ser degolado e correr com a cabeça pendurada no pescoço, isso abriu um vírus no seu HD espiritual. Há também algum trauma enquanto você era uma água viva, mas eu não tenho capacidade de compreender como é a percepção da realidade de uma água vida. Desculpe por isso.

SILÊNCIO.

CONCEIÇO
Rapaz, de onde vem tudo essas coisas? É só isso que eu queria saber.

HD
Você e todo mundo, né, filho? Você tá falando de onde tudo isso se originou, né? Deus?

CONCEIÇO
Luci. Ela era o galo?

HD
Todos somos o galo.

SILÊNCIO.

CONCEIÇO
Eu não tô entendendo nada.

HD
Não se preocupe com isso. No tamanho dessa porra, se você é só um ser humano, não há motivo e razão pra se perder tempo e espaço dessa vida com muita complicação existencialista. Não é questão de se conformar com a ignorância, longe disso. É que a eternidade dessa eletricidade tem chão ainda. Não precisa de desespero porque a busca vai continuar eternamente, cara. Não é pra parar de se perguntar, é só pra parar de se preocupar. Por isso que eu digo, só calma.

CONCEIÇO DESMAIA DE NOVO.

HD
Vai, showzinho gratuito. Olha que maçã deliciosa que eu trouxe pra você, Conceiço.

CONCEIÇO
Hum, adoro maçã!

HD ENTREGA UMA CEBOLA PARA CONCEIÇO QUE COME COM PRAZER.

BLACK-OUT.


CENA 5

LUCI ENTRA ENROLADA NUM ROUPÃO DE BANHO. SENTA-SE FRENTE A UM ESPELHO E COMEÇA A SE MAQUIAR.

LUCI
O experimento pós morte é feito a vida. Altos e baixos, segundos ordinários e segundos extraordinários coexistindo na mesma importância cósmica. Não há razão pra preocupação, apenas. Você acha que morreu por dentro, mas é exatamente a parte de dentro que continua viva e precisa continuar por instinto. Não é esquecer das coisas que foram pela saúde mental, é esquecer porque vem memória nova todo dia, e não há pecado nisso. (PAUSA) Eu tenho um encontro. A gente fica de luto por um tempo, ainda no sentimento humano da coisa, mas depois é cortar os pulsos ou seguir em frente. A gente não pode deixar parar de pulsar por conta da dor; é preciso deixar o calo das estrelas amadurecer.

TODOS OS PERSONAGENS ENTRAM EM CENA.

TODOS
Ah, mor
Quando eu te contava das memórias que passou
Você sentiu comigo
Viveu um grande amigo
A alma acalma porque não tem outra opção
Tem que esquentar o que é frio
Cooperar com o vazio e criar um universo
De evolução
Não existe ganho de frieza
Existe perda de calor
Coloca tudo ali na mesa
Experimenta, usa a língua, sente agora esse sabor

A alma acalma
Calma
Salva
Perde saliva e vira o DNA da criação
A alma acalma
Fala
Palma
O calo doeu
O galo sou eu
É um só deus com vários nomes de salvação
Você e eu

LUCI SE VESTE COM UM VESTIDO DE FESTA. DR. CARLO ENTRA, A CUMPRIMENTA CORDIALMENTE E ELES DANÇAM COLADINHOS. CONCEIÇO VÊ A CENA COM CIÚMES.

CONCEIÇO
Ela seguiu a vida depois da morte. Era de se esperar. Assim espero que seja. Eu tô sonhando com ela, não tô?

HD
A prática do desapego não é simplesmente papinho pra ter uma vida boa, amigão. É o básico da existência. Enquanto você botar foco apenas na memória que o consciente te traz, você nunca vai conseguir evoluir dessa pra uma melhor.

CONCEIÇO
Eu preciso de tempo só.

HD
Você tem todo.

LUCI
Dr. Carlo...

DR. CARLO
Pode me chamar de Carlo só.

LUCI
Claro. É normal esse tipo de culpa lá dentro?

DR. CARLO
Você tá pensando nele?

LUCI
Não consigo evitar.

DR. CARLO A BEIJA.

DR. CARLO
Ele está aqui com a gente. Era o que ele ia querer.

CONCEIÇO
Não! Filho da puta!

LUCI
Eu estava dirigindo, doutor. A culpa foi minha. Se eu não tivesse bebido aquelas taças de vinho...

DR. CARLO
Você não pode continuar vivendo assim...

CONCEIÇO
Ela acha... ela acha que fui eu quem morri!

HD
Depende do ponto de vista do que você acha que é a morte.

CONCEIÇO
O que? Espera! (ELE VAI ATÉ A LÁPIDE E LIMPA A PLAQUINHA; É SEU NOME QUE ESTÁ ESCRITO) Não! Não pode ser! Isso está errado. Foi ela quem...

HD
De certa forma foi sim. De certa forma foi não. É um grande mistério se quem vive é quem está vivo mesmo ou se quem morre que tem a vida real. Depende muito das escolhas elétricas que você decide fazer. Desse seu brinquedinho na cabeça...

CONCEIÇO
Isso não faz o menor sentido.

HD
Vai acostumando, nada faz... mas dependendo do ponto de vista até que faz um pouco.

CONCEIÇO
Cara, qual é o propósito disso tudo?

HD
Precisa ter um propósito? Você não consegue continuar amando sem ter? Sem a posse da carne?

CONCEIÇO
Não sei...

HD
Oras, se não consegue então se preocupe menos ainda porque aí nem amor é.

CONCEIÇO
Minha eternidade é ver ela com outro homem?

HD
Sua eternidade é você ser os outros homens também. E uma galinha e uma água viva, um dinossauro, uma pedra! Feche os olhos. (CONCEIÇO OBEDECE; UM BLACK-OUT RÁPIDO) Calma.

QUANDO AS LUZES SE ACENDEM CONCEIÇO ESTÁ DANÇANDO COM LUCI POR TODO O PALCO.

LUCI
Eu estou imaginando você, eu sei disso. Mas não importa.

CONCEIÇO
Só porque você está me imaginando isso não significa que não seja eu mesmo.

LUCI
Típico do que você diria do que eu lembro de você.

CONCEIÇO
Típico do que você diria do que eu lembro de você também.

LUCI
A gente pode dar um beijo de despedida?

CONCEIÇO
Por que despedida? Você está me dispensando?

LUCI
Eu preciso seguir em frente.

CONCEIÇO
Claro que precisa! Mas precisa ser uma despedida?

LUCI
Seria um até logo?

CONCEIÇO
Seria um até já. Ninguém vai pra lugar nenhum. Eu não sei de onde vem essas respostas. Não sou eu dizendo.

LUCI
Porque sou eu.

SILÊNCIO.

LUCI
Me desculpe...

CONCEIÇO
Pelo quê?

LUCI
Por ter botado fé na força do acaso. Foi culpa minha eu ter perdido o controle naquela noite... Eu nunca consegui deixar de pensar que o acaso também existe, por isso aconteceu.

CONCEIÇO
Foi o acaso quem me fez te encontrar uma vez. Acidentes e explosões que formam estrelas e novos mundos, meu amor. E nem por isso o que existia antes morre. Pelo contrário. Nada se cria, coração, tudo já está criado desde o início dos tempos. (PAUSA) Rapaz, aquele cara entrou mesmo na minha mente...

BLACK-OUT RÁPIDO. QUANDO AS LUZES RETORNAM, DR. CARLO ESTÁ DANÇANDO COM LUCI HIPNOTIZADA.

DR. CARLO
Dúvida.

LUCI ACORDA.

DR. CARLO
Deu certo?

LUCI
Não tenho certeza absoluta.

DR. CARLO
Essa é a resposta certa pra todas as coisas à partir de hoje.

LUCI
Obrigada, doutor.

DR. CARLO SAI DE CENA COM UM CUMPRIMENTO E LUCI VAI ATÉ A LÁPIDE. ELA DEIXA UM RAMO DE FLORES PARA O NAMORADO.

LUCI
Eu não estou seguindo em frente. Não existe esse negócio de seguir em frente. Nós que vemos o tempo e espaço desse jeito deturpado. Passado como passado, presente como presente e futuro como futuro. Eu acho que todo dia é aquele dia que a gente se conheceu e também aquele dia que você morreu. Todo dia é todos os dias das nossas vidas. E isso me conforta. Não por saber que a gente vai se encontrar todos os dias, mas por saber que você e eu nós somos tudo. Nós estamos em tudo e em todos. Feito a eletricidade, o rádio, o wifi – e olha porra!, que ironia, tem wifi até no cemitério! A morte não é real. Não existe ganho de frieza, existe a perda do calor. Mas há uma fonte matriz, e o calor deve de ir pra algum lugar que a gente não sabe o nome, não sabe de onde vem, não tem certeza exatamente como funciona, e isso até que é bom. O que a gente sabe é que a luz é a mesma. Dúvida. Calma. Vai ficar tudo bem.

LUCI BEIJA A LÁPIDE E E REPARA NUMA FALHA NA PLAQUINHA COM O NOME DE CONCEIÇO. ELA RETIRA A PLAQUINHA QUEBRADA E TEM OUTRA PLAQUINHA POR BAIXO. SEU NOME ESTÁ ESCRITO NELA. UMA MÚSICA DE SUSPENSE TRAGICÔMICO INVADE E FINALIZA O ESPETÁCULO.

BLACK-OUT.

FIM